Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 24 de junho de 2012

    

Prezados amigos leitores.
     Recebi de meu amigo Esmeraldo Filho, de Vitória da Conquista, esta história incrível. Um mestrando de psicologia social da Universidade de São Paulo, se disfarçou de gari para comprovar a sua tese sobre "invisibilidade pública". Vale a pena ler.
     E tem gente que ainda diz que a luta de classes não existe.
     Sua experiência é uma lição para todos nós.
     A entrevista foi transcrita do Diário de São Paulo.

PSICÓLOGO GARI


Psicólogo varreu as ruas da USP para concluir sua tese de mestrado da
"invisibilidade pública". Ele comprovou que, em geral, as pessoas enxergam
apenas a função social do outro. Quem não está bem posicionado sob esse
critério, vira mera sombra social.

Fonte: Plinio Delphino,
Diário de São Paulo.

"A moral e os costumes que dão cor à vida, têm muito maior importância do que as
leis, que são apenas umas das suas manifestações.
A lei toca-nos por certos pontos, mas os costumes cercam-nos por todos os lados,
e enchem a sociedade com o ar que respiramos. 
Toda ação repetida gera hábito.
O hábito muda o caráter.
O caráter muda a existência.
Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível"


O psicólogo social Fernando Braga da Costa vestiu uniforme e trabalhou oito anos
como gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo. Ali, constatou que, ao
olhar da maioria, os trabalhadores braçais são "seres invisíveis, sem nome". Em
sua tese de mestrado, pela USP, conseguiu comprovar a existência da
"invisibilidade pública", ou seja, uma percepção humana totalmente prejudicada e condicionada à divisão social do trabalho, onde enxerga-se somente a função e
não a pessoa. Braga trabalhava apenas meio período como gari, não recebia o
salário de R$ 400,00 como os colegas de vassoura, mas garante que teve a maior
lição de sua vida:

"Descobri que um simples bom dia, que nunca recebi como gari, pode significar um
sopro de vida, um sinal da própria existência", explica o pesquisador.

O psicólogo sentiu na pele o que é ser tratado como um objeto e não como um ser
humano. "Professores que me abraçavam nos corredores da USP passavam por mim,
não me reconheciam por causa do uniforme. Às vezes, esbarravam no meu ombro e,
sem ao menos pedir desculpas, seguiam me ignorando, como se tivessem encostado
em um poste, ou em um orelhão", diz. Apesar do castigo do sol forte, do
trabalho pesado e das humilhações diárias, segundo o psicólogo, são acolhedores
com quem os enxerga. E encontram no silêncio a defesa contra quem os ignora.

Diário - Como é que você teve essa idéia?

Fernando Braga da Costa - Meu orientador desde a graduação, o professor José Moura Gonçalves Filho, sugeriu aos alunos, como uma das provas de avaliação,
que a gente se engajasse numa tarefa proletária. Uma forma de atividade
profissional que não exigisse qualificação técnica nem acadêmica. Então,
basicamente, profissões das classes pobres.

Com que objetivo?

A função do meu mestrado era compreender e analisar a condição de trabalho deles
(os garis), e a maneira como eles estão inseridos na cena pública. Ou seja,
estudar a condição moral e psicológica a qual eles estão sujeitos dentro da
sociedade. Outro nível de investigação, que vai ser priorizado agora no
doutorado, é analisar e verificar as barreiras e as aberturas que se operam no
encontro do psicólogo social com os garis. Que barreiras são essas, que
aberturas são essas, e como se dá a aproximação.

Quando você começou a trabalhar, os garis notaram que se tratava de um estudante
fazendo pesquisa?

Eu vesti um uniforme que era todo vermelho, boné, camisa e tal. Chegando lá eu
tinha a expectativa de me apresentar como novo funcionário, recém-contratado
pela USP pra varrer rua com eles. Mas os garis sacaram logo, entretanto nada me
disseram. Existe uma coisa típica dos garis: são pessoas vindas do Nordeste,
negros ou mulatos em geral. Eu sou branquelo, mas isso talvez não seja o
diferencial, porque muitos garis ali são brancos também. Você tem uma série de
fatores que são ainda mais determinantes, como a maneira de falarmos, o modo de
a gente olhar ou de posicionar o nosso corpo, a maneira como gesticulamos. Os
garis conseguem definir essa diferenças com algumas frases que são simplesmente
formidáveis.

Dê um exemplo.

Nós estávamos varrendo e, em determinado momento, comecei a papear com um dos
garis. De repente, ele viu um sujeito de 35 ou 40 anos de idade, subindo a rua
a pé, muito bem arrumado com uma pastinha de couro na mão. O sujeito passou
pela gente e não nos cumprimentou, o que é comum nessas situações. O gari, sem
se referir claramente ao homem que acabara de passar, virou-se pra mim e
começou a falar: "É Fernando, quando o sujeito vem andando você logo sabe se o
cabra é do dinheiro ou não. Porque peão anda macio, quase não faz barulho. Já o
pessoal da outra classe você só ouve o toc-toc dos passos. E quando a gente está
esperando o trem logo percebe também: o peão fica todo encolhidinho olhando pra
baixo. Eles não. Ficam com olhar só por cima de toda a peãozada, segurando a
pastinha na mão".

Quanto tempo depois eles falaram sobre essa percepção de que você era diferente?

Isso não precisou nem ser comentado, porque os fatos no primeiro dia de trabalho
já deixaram muito claro que eles sabiam que eu não era um gari. Fui tratado de
uma forma completamente diferente. Os garis são carregados na caçamba da
caminhonete junto com as ferramentas. É como se eles fossem ferramentas também.
Eles não deixaram eu viajar na caçamba, quiseram que eu fosse na cabine. Tive de
insistir muito para poder viajar com eles na caçamba. Chegando no lugar de
trabalho, continuaram me tratando diferente. As vassouras eram todas muito
velhas. A única vassoura nova já estava reservada para mim. Não me deixaram
usar a pá e a enxada, porque era um serviço mais pesado. Eles fizeram questão
de que eu trabalhasse só com a vassoura e, mesmo assim, num lugar mais
limpinho, e isso tudo foi dando a dimensão de que os garis sabiam que eu não
tinha a mesma origem socioeconômica deles.

Quer dizer que eles se diminuíram com a sua presença?

Não foi uma questão de se menosprezar, mas sim de me proteger.
Eles testaram você?
No primeiro dia de trabalho paramos pro café. Eles colocaram uma garrafa térmica
sobre uma plataforma de concreto. Só que não tinha caneca. Havia um clima
estranho no ar, eu era um sujeito vindo de outra classe, varrendo rua com eles.
Os garis mal conversavam comigo, alguns se aproximavam para ensinar o serviço.
Um deles foi até o latão de lixo pegou duas latinhas de refrigerante cortou as
latinhas pela metade e serviu o café ali, na latinha suja e grudenta. E como a
gente estava num grupo grande, esperei que eles se servissem primeiro. Eu nunca
apreciei o sabor do café. Mas, intuitivamente, senti que deveria tomá-lo, e
claro, não livre de sensações ruins. Afinal, o cara tirou as latinhas de
refrigerante de dentro de uma lixeira, que tem sujeira, tem formiga, tem
barata, tem de tudo. No momento em que empunhei a caneca improvisada, parece
que todo mundo parou para assistir à cena, como se perguntasse: "E aí, o jovem
rico vai se sujeitar a beber nessa caneca?" E eu bebi. Imediatamente a ansiedade parece que evaporou.
Eles passaram a conversar comigo, a contar piada, brincar.

O que você sentiu na pele, trabalhando como gari?

Uma vez, um dos garis me convidou pra almoçar no bandejão central. Aí eu entrei
no Instituto de Psicologia para pegar dinheiro, passei pelo andar térreo, subi
escada, passei pelo segundo andar, passei na biblioteca, desci a escada, passei
em frente ao centro acadêmico, passei em frente a lanchonete, tinha muita gente
conhecida. Eu fiz todo esse trajeto e ninguém em absoluto me viu. Eu tive uma
sensação muito ruim. O meu corpo tremia como se eu não o dominasse, uma
angustia, e a tampa da cabeça era como se ardesse, como se eu tivesse sido
sugado. Fui almoçar, não senti o gosto da comida e voltei para o trabalho
atordoado.

E depois de oito anos trabalhando como gari? Isso mudou?

Fui me habituando a isso, assim como eles vão se habituando também a situações
pouco saudáveis. Então, quando eu via um professor se aproximando - professor
meu - até parava de varrer, porque ele ia passar por mim, podia trocar uma
idéia, mas o pessoal passava como se tivesse passando por um poste, uma árvore,
um orelhão.

E quando você volta para casa, para seu mundo real?

"Eu choro. É muito triste, porque, a partir do instante em que você está inserido
nessa condição psicossocial, não se esquece jamais. Acredito que essa
experiência me deixou curado da minha doença burguesa. Esses homens hoje são
meus amigos. Conheço a família deles, freqüento a casa deles nas periferias.
Mudei. Nunca deixo de cumprimentar um trabalhador. Faço questão de o
trabalhador saber que eu sei que ele existe. Eles são tratados pior do que um
animal doméstico, que sempre é chamado pelo nome. São tratados como se fossem
uma 'COISA".

2 comentários:

Claudete Eloy disse...

Incrível a experiência deste mestrando. Lembrei que jamais dei bom dia a um varredor de rua. Me achava o máximo por dar bom dia e sorrir para os funcionários da limpeza da Universidade onde trabalho. Estarei mais atenta a partir de hoje.

Ricardo Stumpf disse...

A verdade é que geralmente não enxergamos as pessoas de uniforme, sejam varredores, empregados domésticos, garçons, etc