Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

segunda-feira, 3 de maio de 2010


Histórias de outras vidas (9)

     UM DENTE DE ALHO

     O ano? Acho que era fins de 1989 ou início de 90.
     O lugar, o bairro São Miguel, em Ilhéus, onde eu tinha minha pequena casa de pescador. A casinha era um charme: tijolo em baixo, madeira em cima, assoalhada, telha de barro, meia água, fundos para a foz do Rio Almada, que vinha cortando muitas cidades pela Bahia, passava pela Lagoa Encantada e vinha acompanhando o mar, por alguns tranqüilos quilômetros até desaguar ali.
     Comprei o terreno ao lado expandindo um pouco o sufoco de viver em três metros de largura e fiz um telhado para guardar o carro. Sem dinheiro para construir no restante do terreno plantei coqueiros, um pé de abacate, uma jaboticabeira e debaixo do telhado fiz um pequeno balcão, em semicírculo, onde montei um bar.
     Eu trabalhava em Itabuna, cidade vizinha a 26 quilômetros, e nos fins de semana abria o barzinho pra me divertir um pouco. Meu sócio era meu amigo José Mário, que morava ao lado e estava desempregado.
Ele era muito caprichoso em tudo que fazia. Arranjou umas toalhas amarelas, que mantinha sempre impecáveis, e preparava umas caipirinhas muito gostosas, além de um camarão ao alho e óleo que ficou famoso.
     Vinha gente de longe para curtir aquele cantinho escondido na beira do rio. Tínhamos até umas mesas bem fora da visão da rua, para agrado de certos executivos do Distrito Industrial de Ilhéus situado lá perto, senhores respeitáveis que vinham com umas moças muito jovens, parecendo secretárias.
     Uma noite de sexta-feira, meio chuvosa, não havia aparecido ninguém e nos preparávamos para fechar quando um desses senhores apareceu com uma bela garota e pediu duas caipirinhas e um camarão alho e óleo.
     Tudo parecia bem, até que José me fez sinal, com cara de preocupado e disse:
     _Acabou o alho, e não tenho mais nada para oferecer além do camarão.
     Respondi que não se preocupasse que eu iria pedir um dente de alho pela vizinhança. Saí pela rua à procura de alguma casa aberta mas não encontrei nada: tudo estava deserto.
     Percorri a rua do rio, que era a nossa, e todas as casas estavam fechadas. Na colônia de pesca todos se recolhem cedo, antes das dez, pois os pescadores saem para o mar às quatro da manhã.
     Preocupado, passei então para a rua do mar, que era a outra que havia, já que nosso bairro era uma espécie de língua de areia, entre o mar e o rio: tudo fechado, tudo apagado.
     Só o vento do mar batia, frio.
     Já desanimado dei a volta, retornando até a igreja, onde havia uma travessa que dava quase em frente a minha casa. Tudo quieto, só o barulho do vento e do mar agitado e já ia desistindo quando vi uma pequena luz vermelha sob uma imensa amendoeira. A princípio não distingui o que fosse mas logo identifiquei uma brasa de cigarro. Alguém estava ali fora fumando no meio daquela ventania.
     Meio cismado, ia virando a esquina quando uma voz me chamou:
     _Procurando o que, Seu Ricardo?
     Encabulado, retornei e fui até o cigarro. Era uma velha senhora que morava na casa bem debaixo da amendoeira. Já tinha falado com ela algumas vezes, mas não me lembrava seu nome.
     Sentada num banquinho a velha fumava, saboreando o vento e a fumaça.
     Expliquei a situação e ela rapidamente entrou, me trazendo não um dente, mas uma cabeça de alho.
     _Pode levar!
     _Quanto é?
     _Ôxe, o que é isso Seu Ricardo, não é nada não...
     Agradeci, dei boa noite e corri para levar o alho para José Mário, já desesperado com a demora.
     O camarão saiu e o cliente ficou satisfeito, custando a ir embora. Quando fechamos já passava de meia-noite.
     No outro dia, sábado, vi a aglomeração perto da igreja. Fui saber e me informaram que uma senhora havia morrido na outra rua. Fui lá e dei com a mesma casa da véspera. Assustado fui espiar: era ela.
     Perguntei às pessoas na porta e me disseram que ela havia ido dormir cedo e morreu durante o sono. Tive um arrepio.
     _Como durante o sono? Perguntei.
     _Ela foi dormir e não acordou mais. Me respondeu o filho, choroso.
     Não falei a ninguém o que ocorrera, afinal ela podia ter levantado à noite para fumar sem que ninguém visse. Mas tudo era meio estranho, ela sozinha à noite, seu chamado sem me conhecer muito, a oferta generosa do alho e a morte súbita.
     Eu que detesto velórios tratei de ir naquele e o povo de lá, que não me conhecia muito, não entendeu porque eu me sentei com eles e fiquei até a hora do caixão sair, rezando e pedindo por aquela alma.

     Abraço a todos
 
     Ricardo Stumpf