Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 3 de abril de 2011

Rapidinhas


   Ficar doente em Conquista

     Cena da última quinta-feira na cidade de Vitória da Conquista.
     Um professor interrompe sua aula ao perceber que uma aluna está chorando. Perguntada sobre os motivos do choro a aluna mostra a mão arroxeada e diz que deu um jeito no pulso.
     O professor a dispensa para que vá imediatamente a um médico. A aluna perturbada diz que não tem dinheiro.O professor recomenda que ela procure um hospital público, mas ela diz que em Vitória da Conquista a única emergência em hospital público é a do Hospital de Base, que é conhecido por não atender ninguém. Não há um Pronto Socorro Municipal, numa cidade de mais de 300.000 habitantes.
     E isso que a cidade é administrada por um médico que já está no seu terceiro mandato.

A Obra de Chico

   Alguém deveria regravar toda a obra de Chico Buarque. Tem coisas lindas e muito atuais.
     Pra quem não conhece, aí vai a letra de "Bom Conselho".

Bom Conselho

Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa
Espere sentado
Ou você se cansa
Está provado, quem espera nunca alcança

Venha, meu amigo
Deixe esse regaço
Brinque com meu fogo
Venha se queimar
Faça como eu digo
Faça como eu faço
Aja duas vezes antes de pensar

Corro atrás do tempo
Vim de não sei onde
Devagar é que não se vai longe
Eu semeio o vento
Na minha cidade
Vou pra rua e bebo a tempestade


Histórias de outras vidas (43)

Bolão

     Tem coisas que as novas gerações não sabem, simplesmente porque foram se apagando da memória coletiva. Uma delas é a origem do apelido bolão, muito comum quando eu era pequeno para os meninos gordinhos, numa época em que quase ninguém era gordo.
     A causa era um jogador do Vasco da Gama, cujo apelido era Bolão, ou melhor, Bolão do Vasco. Coisa rara até hoje, um jogador gordinho. E parece que ficou famoso por ser muito bom mesmo assim, o que prova que nem sempre a famosa barriga de tanquinho, tão endeusada hoje seja pré-requisito para um bom desempenho físico.
     Mas eu tive um amigo cujo apelido era bolão e que era magrinho. Ele explicava que quando era pequeno era muito gordinho e depois que cresceu continuou sendo chamado ele assim.
     Na verdade seu nome era (ou é ainda, pois há muitos anos que não o vejo) Ricardo, como eu.
     Bolão era uma figura. Eu o conheci quando voltei do Chile, em 1973 e fiquei alguns meses morando no Rio, antes de ir para a Bélgica, fugindo novamente da ditadura que nos oprimia.
     No Chile me apaixonei por uma jovem, separada do marido brasileiro, que por acaso vinha a ser o irmão do Bolão. Nosso namoro não foi muito à frente, ela voltou com o seu ex, e depois do golpe nos encontramos todos no Rio. Foi aí que conheci Bolão.
     Ficamos muito amigos e íamos à praia todos os domingos, fazendo o percurso a pé de Copacabana até o Leblon, ida e volta, descalços, como era costume na época, Saíamos de casa assim mesmo, só de sunga, com o dinheiro enfiado do lado, sem sapato, chapéu, protetor solar, chinelo nem nada. Quase nus, numa boa. Pegávamos ônibus e isso era normal no Rio. Ninguém ficava olhando, nem havia nenhuma conotação sensual nisso. Era apenas o exercício da liberdade de ir à praia com o corpo exposto.
     Discutíamos muito a política, influenciados pelos acontecimentos no Chile e pela luta contra a ditadura no Brasil.
     Mas meu amigo não era muito certo da cabeça. Aliás, todos na sua casa eram meio pancadas. Eles eram uma espécie de ramo pobre de uma família tradicional carioca e tinham herdado da família uma pequena vila de casas no bairro de Laranjeiras.
     As vilas no Rio marcaram época, pelo seu aspecto pitoresco e pela ambiente muito agradável que criavam. Eram locais de moradia popular no início do século XX e reuniam poucas casas, todas semelhantes, geralmente numa rua sem saída.
     Até hoje algumas existem, não só no Rio, mas também em São Paulo.
     Aliás, as novelas da Globo usam muito esse artifício, de colocar os pobres em casa de vilas (com aqueles telefones antigos), porque se os colocassem nas favelas onde realmente moram hoje, tudo se tornaria muito chocante.
     Pois a família de Bolão tinha herdado uma vila de casas onde em cima era uma residência e embaixo outra. A casa dele era em cima e ele morava só lá, já naquela época, com pouco mais de 20 anos.
     Trabalhar não trabalhava, mas recebia algum dinheiro dos pais e vivia perambulando pelo bairro. Era um cara bonito, embora meio maltratado. Branco, meio alourado, muito magro e sempre com as roupas meio esculhambadas, numa época em que isso era uma moda da esquerda que significava desapego aos bens materiais.
     Em 1974 saí do Rio e só fui rever meu amigo quase 10 anos depois, quando havia me separado e saído de Salvador para mais uma temporada no Rio. Eu estava muito sozinho naquela época, curtindo a dor de cotovelo do fim de um casamento, já com mais de 30 anos e um dia, enquanto examinava um livro numa livraria no Largo do Machado, ouvi uma voz ao meu lado:
     _Oi Álvaro.
     Era ele. Bolão me chamava de Álvaro devido ao meu sobrenome, Ricardo Alves, que ele trocava por Ricardo Álvaro, não sei por quê.
     Custei um pouco a reconhecê-lo, pois estava muito magro e acabado. Mas logo voltamos a nossa velha conversação de sempre e a amizade ressurgiu, numa época em que eu precisava muito de amigos.
     Voltamos às caminhadas na praia e as conversas sobre política e sobre a vida. Mas percebi que ele estava mais perturbado. Me convidou à sua casa e fiquei impressionado com o estado da residência. Faltavam telhas, chovia dentro, tudo muito sujo, na pia se acumulavam pratos e panelas de semanas, mas ele não parecia se importar.
     Parecia a casa de um mendigo.
     Costumávamos sair eu, ele e outra amiga que eu havia conhecido no Chile. Íamos tomar um chope à noite ou ver algum espetáculo musical com outros amigos.
     Bolão se vestia mal, suas roupas eram grandes demais e pareciam ter sido dadas por algum parente preocupado com seu estado. Às vezes chegava com a braguilha aberta, sem cuecas e tínhamos que chamá-lo a atenção. Ele ria, fechava o zíper e parecia não ligar. Continuava sem trabalhar.
     Acabamos formando uma turma e nessas saídas conhecemos uma menina meio hippie que ficou logo muita amiga dele. Ela parecia meio doidona também e logo eles formaram um casal. Ela se mudou para sua casinha na vila e todos ficamos muito esperançosos de que ela pudesse dar um jeito naquela bagunça e ajudá-lo a tomar um rumo na vida.
     Fiquei poucos meses no Rio e depois saí em busca de trabalho e acabei voltando para a Bahia, quando fui morar em Itabuna.
     Nunca mais ouvi falar dele. Em 2006, passando uns dias no Rio, tive vontade de visitá-lo e fui procurar sua pequena rua sem saída, perto do túnel Santa Bárbara. A Vila estava lá. Fui até a porta da sua casa, mas já haviam se passado mais de 10 anos desde a última vez que o vi. Fiquei parado embaixo sem saber se subia e batia naquela porta, tão acabada estava a casa.
     Será que ele me reconheceria? Será que tinha pirado de vez? Estaria vivo ainda?
     Não tive coragem de subir e me afastei me recriminando pela minha timidez, mas minhas pernas queriam sair dali e se afastar de vez daquele passado, guardando na lembrança aquela amizade do jeito que eu havia deixado, sem coragem de saber o desfecho que teve aquele jeito maluco de viver e de se deixar cair, como se a vida fosse um abismo aberto ao qual alguém se atira, indiferente à sua sorte.