Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 10 de julho de 2011

Brasília e a corrupção
     Fui criado em Brasília e acompanhei todas as etapas da evolução da cidade, mesmo depois que deixei de viver nela permanentemente, em 1972, pois sempre estou de volta para visitar minha família ou até mesmo para trabalhar, como fiz entre 1983 e 1987, entre 1993 e 94 e entre 2001 e 2004.
     Chegamos em setembro de 1960. Meu pai era do antigo IAPI e a cidade acabava de ser inaugurada e vivia-se numa espécie de acampamento de obras, uma mistura de esperança, solidariedade, modernidade e desafios para o futuro.
     Assisti a posse e à renúncia de Jânio Quadros, a posse conturbada de João Goulart e à chegada dos campeões do mundo de 1962, recebidos por Jango no Palácio do Planalto. Depois ao golpe de primeiro de abril de 1964. Nessa época minha mãe já era funcionária da Câmara dos Deputados e me levava para ver as sessões tumultuadas, das galerias do Congresso. Na véspera do golpe, impossível esquecer o debate entre o deputado golpista Padre Godinho e o deputado líder das ligas camponesas, Francisco Julião. Das galerias assisti também a posse de Castelo Branco, o primeiro presidente militar e depois assisti de perto à invasão da UnB e ao AI5, Ato Institucional que fechou o Congressou e instaurou o mais triste período da história moderna do país. Foi quando resolvi deixar a cidade, indo para o exterior.
     Assisti colegas de colégio fazerem fortuna do nada, como Luís Estevão e Paulo Octávio, ou assumirem o poder político, como Fernando Collor e Teotônio Villela, o filho. Vi muita gente subir e descer a ladeira da fortuna e da fama com a mesma velocidade e me acostumei a enxergar Brasília como uma terra de aventureiros. Qualquer um podia chegar na cidade e ter sua chance de subir na vida, pois não havia uma elite local tradicional, como nas outras cidades. Brasília sempre foi um campo aberto para os oportunistas.
     Também assisti a muita gente talentosa se perder nos meandros da burocracia, trocando vocações artísticas por um emprego seguro, um apartamento, casamentos quase sempre desfeitos, filhos e muito álcool nos bares aos sábados à noite.
     A percepção da desesperança que foi tomando conta da cidade me incompatibilizou cada vez mais com ela, até que em 2004 resolvi abandoná-la definitivamente, me mudando para a chapada diamantina e carregando comigo todas as frustrações das tentativas de viver lá.
     Antes disso tentei viver no Rio de Janeiro, onde nasci, em São Paulo, no Rio Grande do Sul, onde me formei, em Manaus, onde pude conhecer as maravilhas da Amazônia trabalhando para a Shell, mas foi a Bahia que me prendeu, apesar de todos os seus problemas, pela simpatia e generosidade de sua gente.
     Lá me casei, me separei, tive filhos, saí para tentar mais uma, duas, tres vezes viver em Brasília, mas sempre retornei. Morei em Salvador, Itabuna, Ilhéus, Vitória da Conquista e Rio de Contas, trabalhei, fiz política, amei, fui amado, me separei, chorei amores perdidos, mas plantei raízes da minha alma. Lá vivo até hoje, apesar de visitas frequentes à Brasília para acompanhar os anos difíceis da velhice de minha mãe, cercada por três dos meus cinco filhos, que permanecem ao lado dela.
     Posso dizer que conheço profundamente a alma de Brasília e me entristeço muito em dizer aos leitores, que a corrupção plantou raízes profundas na cidade, não apenas na burocracia estatal, mas na própria população que, vindo na sua maioria de pequenas cidades, enxerga nas oportunidades de pequenos golpes a possibilidade de atalhos para o enriquecimento rápido, na ausência de partidos políticos verdadeiros, capazes de guiar o povo através de princípios, de bandeiras reais de luta, em busca da construção de uma nação organizada e próspera.

     Ouso dizer que se no Brasil ainda existem valores democráticos, eles são fruto de velhas tradições, alicerçados na herança das famílias, sejam elas ricas ou pobres, criadas nos valores do respeito. Ética e cidadania são apenas palavras vãs na boca de políticos, empresários e burocratas, todos em busca de enriquecimento rápido numa sociedade que só valoriza o dinheiro e o poder.
     Por isso não me espanto com os escândalos, como o do Ministério dos Transportes. Não se trata do ministro Nascimento, ou de seu partido, o PR, como quer a grande imprensa. A corrupção está instalada em toda a Esplanada dos Ministérios e centenas de pequenas quadrilhas se eternizam, sobrevivendo ás mudanças de governo, sejam eles de esquerda ou de direita, militares ou civis, formados por gaúchos, mineiros ou paulistas.
     Cito apenas dois casos que vivi pessoalmente.
     Em 2001 entrei para o Ministério da Integração Nacional, no governo FHC. A Integração era da "cota" do PMDB. Lá trabalhei até 2003 no Programa Faixa de Fronteira, analisando orçamentos de pequenas obras e fazendo viagens de inspeção nos municípios das fronteiras do Brasil.
     Os preços das obras eram determinados por uma tabela do Sinduscon (Sindicato das Indústrias da Construção Civil), segundo uma lei promovida pelo governo de Fernando Henrique. As tabelas do Sinduscon acompanhavam mais ou menos os preços de mercado, conforme aferíamos pela revista Construção, da editora PINI, publicação séria e respeitada. A única excessão era o Acre, terra do senador Nabor Junior, que detinha grande influência na indicação do ministro.
     Lá, a tabela era muito mais elevada e não adiantava discutir isso com nosso chefe, porque ele falava que isso não nos dizia respeito e tínhamos apenas que obedecer, naquela base do "quem pode manda e quem tem juízo obedece".
     Recebíamos ordens absurdas, e houve vários conflitos e ameaças de demissão entre os funcionários, até que Lula ganhou a eleição. Na véspera de sair do poder queriam que aprovássemos uma quantidade enorme de orçamentos, sem tempo hábil para examinar nada. Tive que inventar uma doença para me livrar da pressão e só retornei após a posse. Aí tudo parou. Ciro Gomes assumiu como ministro e colocou um sujeito para bisbilhotar tudo, tentando descobrir quem deveria sair e quem deveria ficar. Me chamaram e expliquei o que sabia, que a corrupção estava ligada ao Acre. Foram desmontando a quadrilha toda. Todo dia um era demitido até que, quase no final, um deles, conseguiu ficar, pois era casado com uma petista.
     Logo tudo voltava a funcionar, com novos chefes tomando conta do butim e mantendo a mesma lambança. A quadrilha tinha conseguido sobreviver.
     Pedi demissão e fiz concurso para o MEC. Passei e fui trabalhar com um programa de escolas estaduais. O trabalho era semelhante: analisar orçamentos. Logo me jogaram um imenso processo, que já tinha três volumes, sobre uns equipamentos de video-conferências para Universidades Estaduais da Bahia. O processo era uma loucura. Começava num volume, passava para o segundo, voltava para o primeiro, continuava no terceiro... Parecia ter sido embaralhado propositalmente para que ninguém entendesse nada.
     Com a experiência acumulada na Integração Nacional, estabeleci um roteiro paralelo, onde ia seguindo os despachos até conseguir entender onde estava a falcatrua. Tinham comprado um equipamento para cada Universidade Estadual ( a Bahia tem quatro) e dois para duas faculdades particulares de Salvador.
     Questionei meu chefe e ele me disse que isso não era de nossa alçada.
     Prossegui e finalmente encontrei um imenso superfaturamento. Pagaram R$200.000,00 por um programa windows, que custava R$600,00 e muito mais. Indeferi o projeto, citando no meu despacho todas as irregularidades encontradas. Foi um corre-corre. No outro dia o representante da Bahia (eram tempos de ACM), sempre tão solícito comigo, passou por mim sem me cumprimentar. Aí começaram as pressões. Eu tinha que aprovar o processo.
     Meus colegas falavam que a quadrilha lá era antiga, formada por ex-militares (meu chefe era um deles) e que vinha desde os tempos da ditadura. Pedi demissão novamente e fui para a Chapada Diamantina, onde cheguei num nível de stress que me fez ficar seis meses estafado. Antes de sair fiz a denúncia a uma superior que me disse ter protocolado a reclamação. Nunca houve nenhuma resposta.
     Depois disso foram tantos escândalos. Mensalão, as roubalheiras de Roriz e sua turma, a queda de Arruda, e outros tantos. O Ministério dos Transportes é apenas mais um e outros com certeza virão.
      O Procurador Geral da República tinha razão quando pediu uma intervenção no DF. A corrupção não é privilégio dessa cidade, que um dia foi chamada de Capital da Esperança, mas por aqui se tornou endêmica.

     Abraço a todos