Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 6 de fevereiro de 2011


   Diretas Já

     O movimento popular árabe, que luta contra as ditaduras implantadas pelos países imperialistas para controlar seus países, leia-se Estados Unidos, França, Inglaterra, Itália e Alemanha, as antigas potências coloniais, e mais Israel, herdeiro dos interesses delas, tem grandes semelhanças com o nosso movimento das diretas nos anos 80, que pedia a saída dos militares e eleições diretas para presidente.
     Do mesmo jeito que fizeram aqui, os imperialistas-colonialistas temem entregar esses países a seus próprios povos, para que eles decidam seus destinos e estão segurando o ditador no cargo enquanto buscam uma transição segura, ou seja, enquanto buscam alguém capaz de adiar ao máximo as eleições até que eles consigam retomar o controle do processo e colocar alguém da confiança deles no cargo.
     Foi assim também no Brasil, com a política de distensão lenta e gradual do ditador Ernesto Geisel, que depois desembocou no movimento popular pelas Diretas já, que demonstrava que a população brasileira queria comandar o seu próprio destino e estava cansada de ser manipulada por estrangeiros.
     Mesmo assim eles conseguiram adiar as eleiçõespor cinco anos (de1984 a 1989) enquanto emplacavam José Sarney como presidente eleito indiretamente por um Congresso dominado por eles, uma Constituinte dominada por eles e ainda conseguiram eleger Fernando Henrique por dois períodos consecutivos.
     Somando tudo, o Brasil ainda levou 18 anos, de 1984 a 2002, para se libertar do domínio imperialista, coisa que só conseguiu com a eleição de Lula e mesmo assim, sob muitos compromissos de "respeitar contratos" e não alterar muito o status quo do regime capitalista que eles implantaram a ferro e fogo no Brasil.
     A diferença entre 1984 e hoje é que as antigas potências estão enfraquecidas e o mundo caminha para uma multipolaridade que faz com que esse controle se torne cada dia mais difícil de ser mantido.
      Uma das consequências do fim das ditaduras na América Latina foi o surgimento do Mercosul e a ascenção dos nossos povos á prosperidade e ao desenvolvimento. O mesmo deve acontecer na região árabe, que quando democratizada tende a formar um gigantesco mercado, uma economia poderosa e um novo pólo de poder, ameaçando mais ainda a manutenção dos velhos projetos coloniais.
     Quanto aos discursos americanos de defesa da democracia, são apenas mentiras para encobrir as ditaduras que eles apóiam e os crimes que praticam pelo mundo, sequestrando e matando pessoas nas suas prisões secretas.
 
Fisiologismo e reformas

     Nossa imprensa, atrelada aos interesses da elite colonial brasileira, continua dando destaque à necessidade de reformas estruturais que atendam seus interesses. São sempre as mesmas: reforma tributária, reforma previdenciária (de novo?), reforma trabalhista (para retirar direitos dos trabalhadores) e reforma política. Tudo dentro da perspectiva de terminar a montagem de um Estado que atenda seus interesses, baseado no velho projetinho neoliberal do consenso de Washington (os 18 anos que comentamos acima ainda não foram suficientes para fazer tudo que eles queriam).
     Enquanto isso, a esquerda, ou o que restou dela, fica a reboque dessa campanha e esquece da sua própria agenda de reformas: reforma agrária produtiva (acabando com os latifúndios e apoiando efetivamente a produção agrícola nos assentamentos), reforma educacional (federalizando e laicizando a educação), reforma urbana (que acabe com a especulação imobiliária e o monopólio dos transportes urbanos) e a mudança da matriz energética brasileira, para fontes de energia limpa, que evitem o aquecimento global e o desmatamento descontrolado.
     Enquanto isso, nos partidos ditos "de esquerda", só se pensa em cargos, cargos e mais cargos.
     Até quando vamos esperar para retomar nossa própria agenda? Falta coragem ou honestidade? Ou será que o fisiologismo destruiu definitivamente nossos ideais de justiça e liberdade?

                                          Invasões em Rio de Contas

     A falta de uma política habitacional em Rio de Contas, na Chapada Diamantina, está levando a população a se organizar para invadir áreas públicas ociosas, com a finalidade de suprir a carência de oferta de imóveis a preços populares.
     A alta do preço dos imóveis na cidade tem criado uma pressão por novos investimentos, que não estão sendo feitos pela atual administração, marcada pela paralisia e pela desorganização, e a organização popular começa a substituir a ação do governo, permitindo que novas lideranças surjam na cidade.
     Infelizmente, alguns políticos inescrupulosos e até empresários locais tem se aproveitado da mobilização legítima da população para tentar obter lotes com finalidades eleitorais ou especulativas. Enquanto isso, os responsáveis pela elaboração do novo Plano Diretor Participativo aguardam o pagamento para enviar o texto definitivo à votação na Câmara, o que poderia mostrar um caminho para a solução técnica do problema.
     Esperamos que a pressão popular organizada leve a Prefeitura a tomar alguma iniciativa, de forma a atender as demandas por habitação, caso contrário todo o esforço feito na elaboração do Plano Diretor se perderá e nossa jóia da arquitetura colonial tende a se tornar mais uma cidade a crescer em meio ao caos da falta de planejamento urbano.
    
    


Histórias de outras vidas (39)


Um primo torto

     Ele era filho de um amigo de meu pai, a quem chamávamos de tio, um sujeito muito divertido, carecão, cabeça reluzente de bola de bilhar, óculos fundo de garrafa, bigodões e voz grossa. Sempre brincalhão, inventava mil histórias para divertir a gente.
     Ele e meu pai eram como irmãos. Um acudia o outro em qualquer aperto. Gostavam de viajar juntos com as famílias e assim nos aproximamos muito deles.
     A esposa do amigo do meu pai, a quem chamávamos de tia, era um tipo meio argentino: cabelos negros, pele muito branca e cozinhava muito bem. Tinham um casal de filhos.
     Quando ainda morávamos no Rio, na década de 1950, íamos passar os domingos na Barra da Tijuca, que naquela época era um local distante e ermo, com praias desertas e sem assaltos. Ficávamos até as oito da noite fazendo fogueiras na areia.
     O Filho deles, a quem chamávamos de primo, um primo torto, como se dizia, porque não era primo de verdade, era mais ou menos da idade de meu irmão mais velho e sempre foi meio atrapalhado, para não dizer desastrado.
     Nessa época passávamos férias em Araruama e às vezes ele ia com a gente.
     Araruama tinha muitos marimbondos, daqueles pretos, grandões, e eles faziam suas casas nos telhados. Tínhamos que derrubá-las com fogo, fazendo um chumaço de papelão ou de pano embebido em alcatrão, onde colocávamos fogo, aproximando-o da casa dos bichos várias vezes para assustá-los, o que produzia muita fumaça. Quando eles saiam então derrubávamos a casa vazia com um pau e pronto.
     Um dia o pai incumbiu meu irmão de tirar uma enorme casa de marimbondos de um barracão de palha de sapê, que usava como garagem. O primo estava lá e cismou de que ele iria fazer o serviço. Apesar de todas as explicações, não houve jeito: encostou o fogo na palha e queimou todo o telhado.
     Em outra ocasião, também em Araruama, meu pai deu um barco ao meu irmão. Meu irmão sempre adorou barcos e esse era o primeiro barco da sua vida, um pequeno bote a remo que ele passou meses calafetando com piche, lixando e pintando. Na viagem inaugural pela Lagoa de Araruama lá estava o primo, para sugerir a meu irmão que entrassem por um canal que atravessava a cidade e passava por baixo de uma pequena ponte. Na ida foi tudo fácil, mas na volta a maré subiu, o barco ficou entalado na ponte e à medida em que a maré subia, o bote se rebentou todo.
     Em 1960 nos mudamos para Brasília, e o tio também foi. Lá o primo continuou aprontando das suas. Foi acampar com sua turma da escola e sentou-se sobre um cupinzeiro. Os cupins fizeram tuneizinhos na sua bunda e ele teve que ir para o hospital.
     Depois, já no ensino médio resolveu que iria roubar a prova de matemática para evitar ficar de recuperação. Pulou a cerca do colégio Elefante Branco durante a noite e levou um tiro do vigia, na perna.
     Ficamos sócios do Iate Clube, um dos primeiros clubes de Brasília: eles também. Um dia o primo bebeu umas doses a mais e subiu com seu fusca na beira da piscina para impressionar as meninas: foi expulso.
     Seu pai logo morreu de enfarte e depois disso, meu pai é que sempre ia tirá-lo das confusões.
     Como era míope, sua carteira de motorista dizia expressamente que tinha que dirigir de óculos, mas para parecer mais bonitão para as garotas, ele nunca usava os tais óculos. Um dia viajando para o Rio cruzou com um carro que vinha na direção contrária, chocando-se na lateral, simplesmente por não enxergar direito. Sem ferimentos graves, mas o carro ficou imprestável.
     Depois disso resolveu seduzir a empregada e a moça ficou grávida. Sua mãe teve que criar sua filha.
     Durante muito tempo teve uma namorada, de quem parecia gostar muito. Um dia chegou lá em casa contando a história de que uma cigana havia previsto que ele nunca iria se casar com ela. Para provar que a cigana estava errada marcou casamento, mas na véspera a noiva fugiu com outro.
     Depois ele sumiu, voltou para o Rio e só fui vê-lo muitos anos depois, numa reunião familiar se jactando de que não precisava trabalhar, pois vivia de rendas. Instado a dizer que rendas eram essas, confessou que era apenas o aluguel de um quarto e sala que seu pai havia deixado.
     Pobre primo. Passados muitos anos soube dele. Casou-se e se aposentou como funcionário público. Numa visita a meus pais chorou muito vendo a foto de seu pai, de quem todos gostávamos tanto.
     Parece que a vida não lhe reservou nada de especial além das confusões que aprontava e do pai maravilhoso que teve e que só soube reconhecer muito tarde.
     Apesar de tudo as lembranças de suas trapalhadas deixaram uma nota de humor na memória daqueles tempos. Coisas que o tempo não apaga.

     Boa segunda-feira à todos

     Ricardo Stumpf Alves de Souza