Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

segunda-feira, 17 de maio de 2010




Histórias de Outras Vidas (11)

O HOMEM QUE CABIA ENTRE OS MEUS DEDOS


     O ano? Nem sei. 1957, 58...
     Só sei que eu era pequeno e ficava em casa de manhã com minha mãe, enquanto meu irmão mais velho ia para a escola e meu pai ia trabalhar. Meu avô morava com a gente e gostava muito de sair e nunca dizia aonde ia.
     Nosso apartamento, do antigo IAPI, na Rua Marquês de Abrantes, zona sul do Rio, ficava em um enorme edifício que começava de frente para a rua e ia se desdobrando em quatro, cinco portarias, cada uma com seu elevador, sendo que a última era a nossa, virada para o Morro Azul, nos fundos.
     O terreno do edifício subia pelo morro até um imenso muro, que devia ter uns cinco metros de altura.
     Do lado de cá do muro o Rio de Janeiro branco, de classe média, do lado de lá, o mundo do trabalho. Negros pobres, misturados a brancos e mulatos igualmente pobres, se espremiam numa favela que crescia pelas encostas de rocha nua, rumo às árvores da mata atlântica, situadas no alto, onde havia uma chácara.
     Nosso apartamento era grande, três enormes quartos, como já não se fazem hoje. A sala, avarandada, se debruçava sobre o morro, indiferente à pobreza e ao sofrimento daquela população, carregando latas d’água na cabeça como em algum pitoresco samba antigo.
     Da lateral da varanda observávamos a centenária Casa dos Expostos, conhecida antigamente como A Roda, onde mães que tinham filhos de amores proibidos deixavam as crianças recém-nascidas na porta, numa plataforma giratória, que permitia o abandono sem que a pessoa fosse vista de dentro. Depois era só tocar o sino que as freiras vinham recolher o enjeitado.
     Meu quarto, que eu dividia com meu irmão, tinha uma janela lateral de onde se via uma nesga da rua, por onde passavam bondes na mão e na contramão, ônibus, automóveis, aqueles carrinhos com duas rodas puxados por um homem, conhecidos no Rio como burros-sem rabo, e outros prestadores de serviço que já não se vêem mais, como os afiadores de faca, vendedores de vassouras e carvoeiros, na sua maioria portugueses. Dali via-se também a entrada da favela com seu burburinho incessante, hoje substituída pela entrada da estação Flamengo do metrô.
     O grande edifício de 12 andares era uma invasão de modernidade no que restava do Rio antigo, colonial, presente ali em todos aqueles negros e portugueses. Talvez por isso foi morada de pessoas importantes:   Clarisse Lispector e seu filho Pedro, os irmãos Assis Brasil, gêmeos geniais, um pianista e o outro saxofonista, a primeira garota propaganda da TV carioca, que anunciava as lojas Tonelux.
     Depois de tomar café e fazer meus deveres do colégio, que minha mãe transformava num exercício militar de obrigações e horários rígidos, eu brincava sozinho. Meu armário de brinquedos, situado no meu lado do quarto, era embaixo da janela, convenientemente protegida por uma grade de madeira.
     Eu gostava de pegar os carrinhos e colocar no parapeito de mármore. Me abaixava e olhava por dentro e as pessoas que passavam na rua ficavam do mesmo tamanho dos brinquedos. Tinha a sensação de que os brinquedos eram de verdade, os carrinhos misturados aos automóveis da rua e aos transeuntes.
     Às vezes, também, acompanhava pessoas que iam passando, colocando-as entre meu indicador e o polegar, como se fossem também meus brinquedos e falava com eles como velhos conhecidos.
    Um dia, sozinho no quarto, peguei entre os meus dedos um homem que ia passando e fui conversando com ele, imerso no meu mundo infantil. Mas de repente: surpresa! O homenzinho se materializou, daquele tamanho mesmo, e ficou em pé entre meus carrinhos. Me olhou e falou comigo.
     Desperto da brincadeira, fiquei paralisado olhando para ele.
     Me olhava e falava comigo com uma certa malícia, como se estivesse se divertindo com aquilo.
     Assustado gritei pela mãe. Ela respondeu:
     _Que é? Mas não veio.
     O homenzinho continuava ali, andando e falando comigo, com uma voz baixa e rouca. Com medo corri para chamá-la.
     _Mãe, tem um homenzinho na janela!
     Ela me disse, um pouco irritada, que estava ocupada, mas veio até o quarto. Não havia mais nada.
     _Ele estava ali! Apontei.
     _Ele quem?
     _O homenzinho que ia passando na rua e eu peguei ele!
     Ela resmungou alguma coisa sobre imaginação e hora de tomar banho e se foi.
     Desconfiado, revistei todos os brinquedos para ver se ele não havia se escondido por ali. Guardei tudo e tratei de ir tomar banho e me aprontar para a escola.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf