Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Histórias de outras vidas (4)

Nunca acorde um sonâmbulo

     Sim, eu era sonâmbulo, na minha juventude. Sempre falei dormindo, assim como meus filhos, todos eles falam.
     Meu irmão, quando éramos pequenos e dormíamos no mesmo quarto, reclamava muito de que eu sentava na cama durante a noite e ficava conversando coisas incompreensíveis.
     Aos 18 anos fui acampar nos arredores de Brasília, num lugar que à época era ermo, mato mesmo. No local havia um tal de Volks Clube. Creio que devia ser uma espécie de clube de proprietários de fuscas, o modelo mais popular da Volkswagen na época. Mas não havia nada lá, a não ser um barracão onde morava um vigia.
     Alguém conhecia o local e, no início de 1969 (creio que era um mês de janeiro), lá fomos nós acampar. Naquela época não haviam barracas de camping para vender, e usamos um lona de caminhão. Os colegas que foram comigo eram, Romário, Valdez, Reinaldo, Aroldo, Pinduca e Murilo.
     O vigia nos meteu medo, dizendo que havia lobos no local e que não podíamos facilitar. Ele só andava armado com uma espingarda, até mesmo para ir poucos metros fora do seu barracão. Nos disse que tomássemos cuidado para ir tomar banho em uma bica que havia lá. Não ligamos muito e resolvemos ficar.
     Escolhemos um local próximo à bica e para garantir nossa segurança armamos um fogueira na entrada da barraca e para fechá-la, fizemos barreiras com tábuas e toalhas, de forma que não ficássemos expostos. Só deixamos aberta metade de um dos lados, para que pudéssemos entrar e sair.
     Como a barraca não era muito grande, dormíamos com a cabeça encostando numa das laterais e os pés na outra. Não sobrava nenhum espaço. Claro que ninguém queria dormir na beirada que ia ficar aberta, pois os pés ficariam expostos.
     Brincamos que o primeiro pé comido pelo lobo seria de quem ficasse ali. Para escolher o felizardo, fizemos um sorteio e caiu justamente para mim dormir no lugar perigoso. Armada a fogueira, bem na porta, nos recolhemos e assim se passou a primeira noite, sem nenhum incidente.
     Na segunda noite exigi ficar no meio. Já tinha dado minha cota de sacrifício e agora mereceria a maior segurança possível e assim foi feito. Havia três colegas de cada lado e nenhum espaço para circular.
     Todos adormeceram e só me lembro de um sonho estranho, em que eu caminhava no mato com alguma coisa na mão direita. Lembro que tive medo porque estava muito escuro e eu estava sozinho. Comecei a sentir frio e a chamar por Aroldo. Então aconteceu uma coisa incrível. O frio começou a se tornar real demais e eu, de repente, percebi que estava realmente caminhando do lado de fora da barraca, chamando por Aroldo.
     Ainda zonzo, olhei para minha mão direita e nela estava uma pequena toalha pegando fogo. Larguei a toalha e fui tomado por uma sensação muito estranha, muito ruim, onde sonho e realidade se misturavam e eu não sabia em qual delas eu estava.
     Tive imediatamente a consciência de que a gente sempre sabe que está sonhando, daí a surpresa quando o sonho vira realidade. Uma surpresa muito difícil. É como não poder mais confiar nos próprios sentidos para reconhecer o que existe e o que é imaginação. A loucura deve ser algo assim.
     Por sorte Aroldo havia escutado o meu chamado e acordou, vindo ao meu encontro. Ele que estava na extremidade fechada da barraca, derrubou a frágil parede de toalhas e tábuas para ver o que estava acontecendo. Eu ainda estava muito confuso quando ele viu que, não só a toalha que eu havia segurado estava em chamas, mas a própria barraca. Rapidamente acordou a todos e os retirou de dentro da cobertura de lona, que em poucos minutos foi consumida pelo fogo.
     Pinduca, que estava enrolado em um cobertor, junto à entrada da fogueira, certamente teria sofrido queimaduras graves, se não tivesse sido retirado na hora certa. Muitas mochilas foram perdidas com tudo dentro. Logo em seguido o dia amanheceu e ficamos olhando para aquela mancha escura no chão, onde antes estivera o nosso acampamento.
     Ninguém entendeu o que acontecera. Uns levantaram a hipótese de que eu teria posto fogo no acampamento durante o meu sonambulismo, outros que eu teria salvo o acampamento do incêndio, que teria se alastrado a partir da fogueira. Ninguém conseguiu entender, porém, como eu havia conseguido sair da barraca, passando por cima de três colegas, sem despertar ninguém, e ainda por cima, dormindo.
     Fomos embora naquele dia sem entender o que acontecera e até hoje não achei a explicação. Só me lembro do frio do sonho se tornando real na minha pele e daquele terrível despertar.
     Às vezes sonho com o episódio e julgo ver, naquela noite, no escuro do mato, alguém com botas brancas e uma espécie de uniforme também branco. Mas não tenho como saber se isso é apenas parte de um sonho ou de uma estranha realidade.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf