Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

sábado, 10 de abril de 2010

Histórias de outras vidas (3)



OLHOS



     O ano era 1985, a cidade, Itabuna no sul da Bahia.
     Eu tinha vindo de Brasília, a convite daquela prefeitura, para fazer uma urbanização de favela. O convite partiu de um ex-integrante do governo de Lajes, em Santa Catarina, onde eu havia estagiado e feito uns projetos de habitação popular, inclusive urbanização de favelas.
     A equipe era responsável pelo trabalho comunitário nos bairros pobres de Itabuna. Trabalhávamos de terça a domingo, descansando na segunda-feira, devido às reuniões na periferia da cidade, que ocorriam aos sábados e domingos, inclusive à noite.
     O principal trabalho da Secretaria de Desenvolvimento Social, era a transferência da Favela do Bode, para o morro onde já havia uma outra favela, conhecida como Pau do Urubu.
     A esposa do chefe era assistente social, responsável pela resolução dos mais diversos problemas que surgiam naquele tipo de trabalho, problemas de doença, de brigas de família, de casamento, pais e filhos.
     Meu trabalho era planejar o bairro e fiscalizar as obras de urbanização, enquanto ao mesmo tempo, controlava a transferência dos moradores do Bode, de modo a impedir que novos barracos fossem erguidos na área que ia se abrindo, com a transferência dos barracos.
     Assim, eu transitava entre as duas favelas, a nova, que eu ia reorganizando, destruindo e reconstruindo casas para implantar ruas e terrenos regulares, e a velha, que ia sendo destruída aos poucos, na medida em que as famílias eram transferidas.
     Os moradores do Bode eram levados em Kombis, aos domingos, para escolherem seus terrenos entre os disponíveis. Seus barracos eram demolidos e eles transferidos com seus pertences para casas de aluguel, pagas pela prefeitura, enquanto novas casas eram erguidas no novo bairro, para o qual escolheram o nome de Novo Horizonte
     Muitas vezes na mudança para as novas casas, os trabalhadores da prefeitura eram instruídos secretamente por nós, da equipe, para jogarem de cima do caminhão objetos muito velhos e cheios de baratas, de forma que eles se partissem, dando a desculpa que precisávamos para acionar as assistentes sociais e comprar móveis novos para os moradores, principalmente camas e guarda-roupas.
     Às vezes eu ia ao Bode acompanhar o trabalho de remoção das famílias e dos barracos, cuja madeira era separada, naquilo que podia ser reaproveitado para a construção das novas casas, também de madeira, e o que não prestava, que era queimado ali mesmo. Tábuas com as pontas podres eram serradas ao meio.
     Numa dessas visitas, anoiteceu e ainda estávamos às voltas com famílias que seriam removidas e alguém veio me chamar. Havia uma emergência. Fomos ver do que se tratava e nos deparamos com uma mãe, em um barraco de um único cômodo, às voltas com uma criança doente. Perguntei o que a criança tinha, a mulher me olhou, com vergonha e não respondeu.
     Alguém, no pequeno grupo que se formou na porta, respondeu por ela.
     _A criança está morrendo de fome!
     Espantado, pedi para ver a criança, que estava em um berço, iluminado por um fifó. Quando me aproximei, meu espanto aumentou. A criança, que devia ter um ano e meio mais ou menos, tinha uma cabeça desproporcional, mas não era nenhuma doença. Apenas a cabeça tinha o tamanho normal para a idade, enquanto o corpo, esquelético, mostrava todos os ossos, revelando desnutrição e subdesenvolvimento.
     Mas o mais impressionante eram os olhos. Olhos de adulto, olhos que conheciam a dor da fome e do desespero, olhos que clamavam, faiscavam, me fitaram fixamente e me pediram ajuda urgente.
     Muito perturbado me afastei e perguntei à equipe o que fazer. Me disseram para chamar a esposa do chefe, que estava na favela. Mandei chamá-la e ela veio logo. Entrou, examinou a criança e com ares de quem estava acostumada a ver de tudo, me disse que ia providenciar a ajuda.
     Poucos dias depois perguntei pela criança e me disseram que havia morrido. Incrédulo fui falar com a assistente social e ela me disse calmamente que o pedido para a compra do leite não havia sido assinado à tempo pela secretária.
     Odiei aquela mulher e me odiei mais ainda por não ter simplesmente enfiado a mão no bolso e dado algum dinheiro àquela pobre mãe para comprar o leite. Meu respeito pela hierarquia havia deixado aqueles olhos desesperados sem uma resposta. A burocracia da Prefeitura havia condenado aquela mãe a ver seu filho morrer de fome.
     Ainda hoje vejo aqueles olhos e seu terrível apelo silencioso e, nos meus momentos mais difíceis, choro por eles e pela minha fraqueza de não ter sabido ajudá-los.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf