Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 4 de julho de 2010

Brincando de se preocupar

     O Correio Braziliense do domingo, 04 de julho, publicou editorial enfocando a baixa qualidade do ensino no Brasil, comprovada pelo IDEB, Índice de Educação Básica, divulgado esta semana pelo MEC.
     Às constatações de níveis insuficientes, comparados com países vizinhos e outros mais desenvolvidos, segue-se o tradicional esperneio, de que é preciso melhorar, de que disso depende o futuro do Brasil no mundo, de que este é, enfim, o calcanhar de Aquiles, o ponto fraco do Brasil. Segue-se o também tradicional apelo para que os eleitores pensem nisso nas próximas eleições e escolham candidatos que tenham propostas na área de educação.
     Mas curioso, o jornal não apresenta nenhum caminho, nenhuma proposta. Se observarmos os candidatos a Presidente da República ou a cargos legislativos, veremos que tampouco há propostas concretas, que saiam do mero esperneio do tipo precisamos melhorar a educação. Ninguém diz como, nem o que fazer. Porque?
     O debate sobre educação estacionou desde a nova Lei de Diretrizes e Bases de 1996, capitaneada por Darcy Ribeiro. Crítico e adversário político do PT, Darcy foi duramente combatido por professores e sindicalistas petistas que colocaram seus interesses corporativos e eleitorais acima dos interesses nacionais, contaminando um debate que poderia ter sido mais amplo e mais eficaz. De lá pra cá, não se pode tocar em alguns pontos chaves da educação brasileira sob pena de ser acusado pelo petismo inconsequente de ser darcysista ou brizolista.
     Talvez agora que os dois, Darcy e Brizola, não estão mais entre nós, se possa recuperar um pouco do bom senso e retomar o debate, procurando soluções para a educação longe de interesses político-partidários. O fato é que a educação brasileira padece de um mal crônico, ao qual Darcy sempre se reportava, e que irrita profundamente os sociais-democratas do PT: a municipalização.
     Houve um debate intenso entre Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, arquiteto de toda essa estrutura de descentralização da educação implantada hoje no Brasil, que delega a educação primária (sim, ainda é assim que eles falam) aos municípios e a secundária aos Estados, restando à União o ensino superior.
     Darcy não concordava com a descentralização por saber que as forças políticas municipais, na maior parte do Brasil, eram (e ainda são) extremamente retrógradas, não tendo nenhum interesse em educar o povo. A mesma coisa acontecia em alguns governos estaduais de regiões mais atrasadas. Entregar a educação a eles era o mesmo que negar a educação ao povo pobre, trabalhador, explorado pelos fazendeiros e pelas famílias tradicionais dessas regiões.
     Anísio se baseava em ideais importados dos Estados Unidos onde as comunidades protestantes do interior zelavam muito pela educação, porque o elo que os mantinha unidos e vivos era a leitura da Bíblia. Era, portanto, preciso saber ler e interpretar. Daí a importância da educação.
     Mas num Brasil historicamente escravocrata esse princípio da comunidade não prevalece, pelo contrário, qualquer iniciativa comunitária é vista com suspeição pelos coronéis do interior, que ainda subsistem nos nossos grotões e nas mentes de muitos políticos de atuação estadual ou nacional.
     Desde a primeira Constituição Brasileira, outorgada por D. Pedro I, que esse debate subsiste. A Constituição tornou obrigatória e leiga a educação, o que teria transformado radicalmente a ex-colônia se os adeptos dos coronéis da política não tivessem aprovado uma emenda passando a responsabilidade sobre a educação para as antigas Províncias, onde nunca foi levada a sério.
     No debate sobre a primeira Lei de Diretrizes e Bases, finalmente aprovada em 1961, tentou-se estabelecer o monopólio do Estado sobre a educação, mas a direita raivosa, capitaneada por Carlos Lacerda e pela Igreja Católica, conseguiu impedir e manteve esse sistema de duplo ensino, público e privado, que permitiu transformar a educação em um negócio lucrativo, que limita a atuação do Estado ao atendimento dos mais pobres, empobrecendo todo o sistema.
     Os problemas, no entanto, continuam os mesmos, só que ninguém quer tocar no assunto. Tudo vira um problema de gestão na ótica gerencialista neoliberal, e ninguém mais discute os fundamentos.
     Mas é só olhar para os resultados e ver que esse sistema não funciona. As melhores escolas são todas federais, as piores são todas municipais, junto com muitas outras estaduais.
     A solução para a educação no Brasil é federalizar as escolas, como propunha Darcy Ribeiro. Isso não quer dizer necessariamente centralização. As escolas podem ser geridas pelas comunidades escolares, que elegeriam um único conselho escolar composto por pais, professores e alunos maiores e votantes (em lugar dos vários conselhos existentes hoje), que por sua vez elegeria um professor como diretor e assim seria feito.
     As Prefeituras não teriam nada a ver com isso e caberia às Secretarias Municipais de Educação apenas fiscalizar o sistema. Darcy deixou um espaço aberto para isso dentro da lei, criando à alternativa do Sistema Ùnico de Educação, baseado no SUS, como forma de retirar o controle das elites conservadoras do interior sobre a educação. Mas pergunte ao movimento sindical dos professores se eles querem discutir isso?
     O outro ponto necessário seria a estatização de todo sistema de ensino, acabando com as escolas particulares. Aí sim, com todo o ensino público e federalizado teríamos a revolução na educação que o Correio Braziliense reclama, e colocaríamos o país no século XXI, alavancando nosso desenvolvimento.   
     Mas teríamos que enfrentar a fúria da Igreja Católica e dos que fizeram fortunas com cursinhos e universidades caça-níqueis e, com certeza, também da social-democracia representada pela maioria dos partidos políticos brasileiros de hoje, capitaneados pelo PT e, com certeza, do próprio Correio Braziliense.
     Enquanto ninguém tiver coragem de topar essa briga continuaremos brincando de que estamos preocupados com a educação e ela continuará sendo esse teatro do absurdo que é hoje.

Abraço a todos

Ricardo Stumpf









Histórias de outras vidas (19)


SAM


O ano era 1972. Eu morava em uma república de estudantes, na superquadra 110 sul, em Brasília.
     Tinha brigado com a família, saído de casa e, depois de bater cabeça por várias pensões e quartos de aluguel, fui chamado por um ex-colega de trabalho do Banco Regional de Brasília, para dividir um quarto na tal república.
     O dono do apartamento era funcionário de um tribunal, solteiro e precisando de dinheiro. Ele ocupava o maior quarto. No fundo do corredor dois quartos, um que dava para a frente do edifício, ocupado por um solteirão, já aposentado e outro que eu dividia com meu colega.
     No pequeno quarto de empregada, morava o irmão do dono.
     Na sala apenas uma mesa com algumas cadeiras. Na cozinha, nada além da pia. Ninguém cozinhava ali. Uma vez por semana uma faxineira fazia uma limpeza muito mal feita, certa de que nenhum daqueles rapazes iria notar a má qualidade do serviço.
     À noite a circulação de mulheres era intensa, com uma característica: ninguém via ninguém. Era só chegar com alguma menina, deixá-la esperando, entrar e avisar o pessoal. Todos se recolhiam aos seus quartos e não apareciam enquanto não fosse dado o sinal. As moças podiam jurar que ali não morava ninguém.
     Apenas eu e meu colega precisávamos combinar a hora, pois dividíamos o mesmo quarto. Ele, porém, não levava mulher pra lá. Tinha uma namorada, Rita, havia muitos anos, e se encontravam no apartamento dela.
     Eu a conhecia bem. Era moça pobre, do interior, batalhadora, já passando da idade, vivia na esperança de se casar, mas ele só enrolava, desfrutando do amor dela enquanto permanecia solto.
     Quanto a mim, vivia muito só numa cidade vocacionada à solidão, em um tempo sem aids e praticava o sexo olimpicamente, como um esporte.
     Estudando na Universidade de Brasília, eu havia deixado o Banco, meu primeiro emprego, devido à instabilidade em que vivia, e fui ser vendedor para um fundo de investimentos, o Fundo Halles. Um emprego horrível. Andava muito e só ganhava o que vendia. Mesmo assim, tinha que esperar que os compradores pagassem em dia sua prestações.
     Era uma época ruim. Ditadura militar, governo Médici, auge da repressão política.
     Eu, um estudante de arquitetura revoltado com tudo aquilo, tinha ainda que aturar uma família que apoiava a ditadura e só pensava em status e dinheiro, tentando me comprar com presentes caros para que eu abandonasse aquelas idéias de comunista e voltasse ao que eles chamavam de realidade.
     Tudo muito ruim.
     A república, as meninas e as bebedeiras no Beirute, bar que ficava em frente ao edifício (e que na época ainda não era um bar gay), eram uma forma de escapar de tanto sufoco e da falta geral de perspectivas.
     Eu freqüentava uma outra república, onde morava Rita, junto com outras meninas e rapazes. Lá tudo era muito diferente. Os rapazes eram todos gays e as meninas, Rita e Regina, conheciam muitas pessoas com a cabeça aberta, gente de outros países, pós-graduados, gente de esquerda, místicos, enfim, de tudo.
     Lá eu conseguia conversar e conhecer gente interessante, me libertando um pouco do sufoco machista autoritário, da ditadura e da classe média fascista.
     Um dia apareceu uma garota, trazida por um dos meninos. Eles a chamavam de Sam e ela era do interior de Minas. Gostei logo dela. Conversamos muito e ela me disse que queria ir para os Estados Unidos.
     Como todos nós ali, ela procurava um meio de escapar da triste realidade que se vivia no Brasil dos anos 70.
     Nossa amizade cresceu. Um dia, acostumado à prática desportiva do sexo, levei Sam para o apartamento e...surpresa, descobri que ela era virgem. Deixei que ela decidisse, mas ela quis e tivemos um relacionamento muito bonito, intenso, apaixonado.
     Alguns dias depois Sam se foi, deixando em mim o gosto do amor. Sam foi o primeiro amor da minha vida. Sua passagem pelo meu mundo triste e solitário iluminou tudo, me mostrando um sentido para a vida.
     Vi que não valia a pena permanecer ali e que o único caminho era o que ela havia escolhido: deixar o Brasil. Alguns meses depois eu partiria também, para o Chile, onde vivi durante um ano e um mês, e depois para a Bélgica, onde fiquei mais um ano.
     Sam foi uma porta que se abriu, me mostrando que era possível viver e ser feliz, me resgatando das mãos da tristeza e da desesperança. Ela nunca se foi do meu coração. Sua lembrança ainda mora lá.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf