Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

sábado, 2 de outubro de 2010

   Aborto e eleições

     Prezados amigos leitores

     Até que enfim acabou a propaganda eleitoral. Não aguentava mais as mesmas conversas, os debates insossos, onde as verdadeiras intenções ficavam todas disfarçadas, pra escondê-las dos ingênuos, já que qualquer pessoa com um pouco de experiência e honestidade sabe perfeitamente distinguir tudo que está por trás do marketing.
     E não se venha falar da desonestidade dos políticos. O que tenho observado e muito nessas eleições é uma imensa desonestidade da própria sociedade, como um todo, que nun jogo de faz de conta, se faz de indignada por um lado, enquanto apóia todo tipo de manipulações, de grupos de interesse, em torno de candidaturas e políticos.
     Dentre essas desonestidades coletivas a que me provoca maior mal estar é a polêmica em torno do aborto, estimulada pelas igrejas (todas elas). Na última semana a velha elite acuada e entrincheirada na candidatura moribunda de José Serra, apoiada pelo braço conservador verde de Marina Silva, lançou ataques contra Dilma, levantando suspeitas de que ela seria a favor do aborto.
     Não vou nem comentar a leviandade de fazer tais acusações no final da campanha eleitoral, sem dar a acusada o tempo suficiente para se defender, numa manobra para forçar um segundo turno, que seria péssimo para o Brasil, porque se transformaria numa baixaria geral, lançando nossa eleição na lama, numa atitude golpista desesperada.
     Mas o que me causa esse sentimento de asco, diante da manobra, é pensar nos abortos que induzi duas mulheres a fazer, nos meus tempos de juventude. E ver esse assunto tratado assim, como um movimento a mais num jogo sem regras definidas, onde o que importa é sujar a imagem do adversário, me parece um enorme desrespeito as vítimas do aborto no Brasil.
     Sim, queridos leitores, carrego na consciência esses dois abortos, mas minha dor não é apenas pelos meus filhos que impedi de nascer, pois espírita que sou, acho que eles me vieram por outros caminhos, inclusive por uma adoção.
     Não. A dor que sinto é pelas duas jovens, hoje senhoras na faixa dos 60 anos, que após as operações feitas em clínicas clandestinas, nunca mais puderam ter filhos.
     Muito jovens, em ambos os casos, não conhecíamos, nem praticávamos o que hoje se chama sexo seguro, num tempo em que não havia AIDS. Não tínhamos comprometimento afetivo para formar uma família e criar filhos e nem renda para sustentá-los. O aborto foi uma opção de vida para nós, no que parecia apenas um adiamento da formação de uma família.
     Hoje, uma delas se dedica a cuidar de animais abandonados, o que revela a dor não superada pela incapacidade de dar amor a um filho, enquanto a outra se refugia numa pretensa dureza intelectual, muito reveladora da sua extrema fragilidade e solidão. Me culpo pelas duas. Sinto-me como se tivesse arruinado suas vidas, embora elas tenham concordado com os abortos.
     Mas a verdade, queridos leitores, é que os verdadeiros culpados são esses que em nome de religiões obrigam milhares de mulheres a se expor nessas clínicas, sem nenhuma segurança, sem nenhum cuidado com suas vidas, porque um padre ou um pastor acham que elas não tem o direito de seguir uma decisão autônoma.
     Até quando vamos tolerar que religiosos tomem decisões por nós? Porque não decidem apenas pelos de sua religiâo? Até quando vamos tolerar essa hipocrisia de dizer que no Brasil não existe aborto, quando estamos cansados de saber que ele é uma prática comum e corriqueira, e que sempre foi assim, inclusive entre os nossos indios? Até quando vamos ver jovens morrerem ou perderem a fertilidade, em nome de uma moral estúpida, que proíbe também os anticoncepcionais (inclusive as camisinhas em época de epidemia global de aids) e condena a educação sexual nas escolas, porque quer negar a existência do impulso sexual humano que existe em todos nós?
     Que moral tem a Igreja Católica, fábrica de pedófilos, para combater o aborto que suas freiras podem praticar livremente em caso de estupro? Qual a diferença para um feto, fruto de estupro, ou um feto fruto de uma aventura irresponsável? Eles não sabem de nada, são apenas fetos. Porque uns podem ser retirados enquanto outros não? Que moral tem esses igrejas, que não fazem nada para prevenir a gravidez na adolescencia das nossas jovens, para obrigá-las a ter uma criança comprometendo muitas vezes seu futuro?
     O aborto não é uma coisa boa. Ninguém, em são consciência pode dizer que gosta de aborto. Ninguém diz: eu adoro abortar! Claro que isso é uma violência, contra o corpo da mãe e do feto. Tudo deve ser feito para impedir que isso aconteça, principalmente através da educação sexual nas escolas e na distribuição livre e gratuita de anticoncepcionais, especialmente as camisinhas, de uso fácil, baratas e sem contra-indicações.   
   Mas quando a gravidez indesejada ocorre, é preciso que a mulher tenha acesso a um serviço de saúde público que lhe garanta fazer o aborto (até os três meses, no máximo) de forma a garantir a preservação da sua integridade, impedindo a infelicidade futura, ou mesmo a sua morte prematura.
     Quantas mulheres morrem por ano em clínicas de aborto clandestino no Brasil, senhores padres e pastores, por vossa culpa? Quantas mulheres vocês continuarão matando por ano, em nome da defesa da vida, com apoio de gente como Marina Silva, que diz representar as mulheres brasileiras? Quantos candidatos vocês constrangerão a dizer que são contra o aborto esgrimindo os milhões de votos que manuipulam dos seus púlpítos e impedindo as brasileiras de se libertarem dos grilhões medievais dessas religiões ridículas? 
     Chega de religião na política, chega de cinismo, chega de conservadorismo hipócrita!     
     É hora de legalizar o aborto no Brasil.
   Histórias de outras vidas (30)
   
   O canto na gruta

     Corria o ano 2.000, quando minha amiga Hanne veio do Rio Grande do Sul para fazer um passeio na Chapada Diamantina, na Bahia..
     Nessa época eu morava em Conquista e tinha uma velha camionete Ford Pampa. De lá saímos e fizemos um circuito grande, passando primeiro pela barragem de Anagé, depois Livramento e Rio de Contas, com todos os passeios que existem por lá.
     De lá saímos bem cedinho em direção à Jussiape, quando a estrada ainda era de terra, onde fomos conhecer um fantástico painel de pinturas pre-históricas. Um sujeito muito interessante nos levou lá pra ver. Ele era uma espécie de adido cultural do município, por conta própria. Era cineasta, tinha um museu particular que tinha cedido à Prefeitura e era também guia turístico. Realmente o interior do Brasil tem coisas incríveis. Num lugar tão pequeno e esquecido como aquela cidade, ali estava a inquietação cultural a nos esperar e guiar para ver aquela maravilha.
     Depois de rodar por pequenas estradas de terra, esburacadas, escalamos uma encosta íngreme e fomos dar numa imensa rocha, que formava um abrigo, sob o qual estava o painel. Um espetáculo! Figuras em vermelho, ocre e preto se misturavam na pedra empoeirada, protegida por um enorme enxame de abelhas que nos obrigava a andar cuidadosamente em silêncio.
     Curioso como em todos os sítios rupestres que conheci, lá estavam elas, as guardiãs da mensagem dos tempos pre-históricos: abelhas.
     Depois de caminhar por ali algum tempo, me sentei numa pedra e fiquei observando o painel, tentando entender aquelas figuras que pareciam brincar na minha frente. Figuras humanas, riscos aparentemente sem sentido, figuras de animais como cervos, e outros até que, de repente, ficou bem clara na minha frente a figura de nítida de um ...mamute. Sim, não podia haver dúvida. Muito bem desenhado, em vermelho, lá estava ele, o representante da megafauna, dada como desaparecida há pelo menos 5.000 anos no Brasil.
     Mas teria tanto tempo assim aquela pintura, bem à nossa frente?
     Um recado direto de alguém que viveu ali há milênios.
     No dia seguinte rumamos para Mucugê e Igatu. Depois fomos visitar as grutas do Poço Encantado e o Poço Azul, já no município de Itaetê. Engraçado: o Poço Encantado é que é azul e o Poço Azul é verde. Não entendo. Eu já conhecia o Encantado, mas desci com minha amiga. Lá nos encontramos com uma excursão que havia descido antes. Eram alemães e em determinado momento todos se sentaram sobre as pedras e ficaram admirando a extraordinária luz que entrava pela abertura acima da caverna, formando aquela imagem tão conhecida do facho de luz na água e que só acontece em determinada época do ano.
     De repente, uma das alemãs começou a cantar. Sua voz foi crescendo na gruta enquanto todos silenciavam e surgiu então uma lindíssima ária em alemão, numa voz fantástica. Arrepio geral. Não sei quantos minutos durou, mas quando cessou todos permaneceram, em silêncio, conscientes de que haviam presenciado um momento único.
     De lá fomos para Lençóis e depois Itaberaba, onde visitamos outro painel na chamada Pedra de Itaberaba, este um pouco depredado por visitantes que insistem em riscar seus nomes sobre as antigas inscrições. Nenhuma dessas inscrições tinha nenhuma proteção, a não ser a das abelhas, que também estavam em Itaberaba.
     A Chapada Diamantina, além de suas belezas naturais que encantam os turistas é também um testemunho de civilizações antigas que nos antecederam. Daquelas pedras imensas, os espíritos de nossos desconhecidos ancestrais  parecem nos olhar e não entender o que fazemos com a natureza e com os fabulosos recursos tecnológicos de que dispomos.
     Para quem viveu vidas tão primitivas quanto eles e foram capazes de nos deixar obras tão belas, feitas com a finura e a sensibilidade de verdadeiros artistas, só o canto na gruta talvez tenha sido uma resposta adequada à solidão de suas almas.

Boa eleição à todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza