Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

sábado, 1 de janeiro de 2011

Dilma e o futuro

     Acabo de vir da posse de Dilma.
     Muita chuva e uma multidão considerada pequena para a Esplanada dos Ministérios, que é excepcionalmente grande e não se enche assim à tôa.
     Tirando as tradicionais  e chatinhas claques petistas, foi uma posse bonita e marcada pela emoção do presidente que saía e da presidente que entrava. Os discursos de Dilma não trouxeram nada de novo e apenas pontuaram seus compromissos gerais de campanha, marcando o estilo gerencialista que deve imprimir ao seu governo, o que não é necessáriamente ruim. Se Dilma for uma boa administradora e conseguir fazer avançar a economia com eficiência, vencendo os gargalos que já se apresentam à nossa frente, o Brasil poderá alcançar um patamar de desenvolvimento definitivo, nos libertando dos anda-pára da economia que adiou por tantas vezes nossos sonhos de nos tornarmos uma nação livre, justa e próspera.
     Mas além dos gargalos de infraestrutura e da deficiência dos serviços públicos, a agenda dos nossos presidentes precisa incorporar algumas reformas, que nunca foram aunciadas e nem fazem parte das suas agendas. Há anos, quando se fala em reformas, pensa-se sempre nas reformas neoliberais, voltadas para fortalecer o mercado e enfraquecer o estado, e que estão na base do contencioso entre PT e PSDB, esquerda e direita no Brasil e no mundo.
     Há anos atrás, quem pedia reformas era a esquerda. Lutava-se pela reforma agrária e outras, o que chegou a embasar o slogan brizolista reforma ou revolução, dos anos 60. Hoje, com a vitória da social-democracia e a crise do neoliberalismo, ambas, esquerda e direita, parecem ter perdido seu poder de magnetizar as multidões.
     Mas para aprofundar nossa democracia, precisamos de mudanças de rumo importantes, o que implica em algumas reformas que eu não vejo em nenhum programa de governo. A primeira é uma reforma da educação. Não adianta ficar falando em educação de qualidade se não mudamos nosso sistema educacional, cuja base está entregue aos entes mais pobres e desinteressados pela educação do povo, os municípios.
     Esse é um debate antigo e ninguém tem coragem de mexer nele. Confunde-se municipalização com descentralização. É democrático descentralizar, mas entregar a educação básica às prefeituras tem o efeito contrário de transformar as escolas e o patrimônio de conhecimento brasileiro em instrumento de barganha política da mesquinha política do interior, centralizando as decisões nas mãos dos prefeitos. A verdade é que é preciso federalizar as escolas brasileiras, todas elas, e dar a cada uma uma autonomia financeira e curricular capaz de criar uma verdadeira descentralização, envolvendo as comunidades na sua administração em lugar das prefeituras.
     Outra necessidade é a de retirar qualquer ranço religioso que ainda paire sobre as escolas públicas, como aulas de religião e outras formas disfarçadas de reintroduzir o conrole das igrejas, especialmente da igreja Católica, sobre a formação do povo brasileiro, o que infelizmente ainda está muito presente e é muito facilitado e até estimulado pelas prefeituras, que temem perder o apoio dos padres nas eleições municipais do interior.
     Outra reforma importante é a reforma carcerária. Até quando vamos continuar fingindo que não vemos o que acontece dentro dos nossos presídios, que tratam nossos apenados como animais? Não existe democracia sem jutiça e o sistema prisional faz parte dela. Nossas prisões estão na idade média. São verdadeiros campos de extermínio. Como podemos querer eliminar a criminalidade a aplicar a lei se não damos a mínima garantia de sobrevivência ao cidadão que é jogado ali dentro?
     Por fim, outra mudança de rumo fundamental está no meio ambiente. Não basta crescer e distribuir renda, é preciso construir uma outra economia, que não seja a do desperdício e do consumismo desenfreado. O PV começou falando nisso, nas eleições, mas depois Marina Silva deixou de ser a candidata do Partido Verde e virou a candidata da Assembléia de Deus, se voltando para posições moralistas retrógradas que só serviram para amesquinhar o debate, perdendo a oportunidade de rediscutir essa economia do crescimento sem fim e sem responsabilidade.
     Na postagem passada, linkei um artigo de um economista mexicano que propõe um socialismo ecológico e fiquei muito satisfeito de ver que suas posições correspondem ao livreto que lancei no ano 2000, intitulado Uma nova agenda para a esquerda. É bom saber que eu não falei besteiras, mas infelizmente o contencioso político brasileiro ainda está muito atrasado, às voltas com as tentativas de José Dirceu de impor um voto em lista na tal reforma eleitoral, cujo único objetivo é eternizar o PT no governo, uma reforma tributária que já deveria ter sido feita há 20 anos e outros itens de uma agenda do século XX.
     Não me parece que Dilma seja capaz de alçar voo sozinha e perceber a necessidade dessa nova agenda para a sociedade brasileira. Se isso não ocorrer, e com a mesmice do PSDB e da direita, temos a chance de ver durante o seu mandato, novos atores e novas idéias começarem a circular pela sociedade brasileira, preparando a sucessão do PT e desses partidos que ainda se proclamam de esquerda.



Sou índio

     Apesar do meu sobrenome meio alemão, meio português, tenho descendência indígena, de parte do meu pai, que era paraense. Como se sabe os índios do Pará não são tupi-guranis, mas do tronco Karib, que deu nome àquela parte do Oceano Atlântico que banha a América Central. Talvez pelas artes desconhecidas da genética que nos transmite o inconsciente coletivo, de que falava Young, eu tenha herdado um pouco da memória atávica deles.    
     Talvez por isto, quando eu era muito jovem, sonhava em ser índio.
     Sim, prezado leitor, meu ideal de vida era viver no meio da floresta, usando apenas o essencial, me dedicando a obter apenas o que eu precisasse para sobreviver e participando de uma comunidade, de seus rituais e dos papéis que reservasse para mim.
     Como homem jovem seria um caçador, depois escolheria uma linda cunhantã e teria filhos, índiozinhos que cresceriam livres brincando nos rios enquanto eu caçaria o seu sustento. Depois que envelhecesse, me tornaria um sábio que daria conselhos e por fim me afastaria para morrer em meio aos espíritos da natureza, que assim absorveria de volta meu corpo, me libertando dessa existência material.
     Desnecessário dizer que esse ideal se revelou impossível para mim, nascido numa família civilizada que esperava de mim outra performance, como curso superior, casamento burguês, dinheiro e prestígio. 
     Mas na prática, nunca fui nem um, nem outro.
     Sempre que me aproximei do sucesso ou da possibilidade de ter o tal prestígio e fortuna, me afastei em direção a mim mesmo, buscando dentro de mim o velho índio que me dizia que tudo aquilo não representava nada. E sempre que estudei (e gosto muito de estudar) foi para entender melhor o mundo e não para obter posições mais vantajosas na sociedade. Como os índios, nunca aceitei um saber fragmentado, mas sempre quis entender o cosmo do qual fazia parte, não aceitando que especializações me mantivessem dentro de um escaninho estreito de conhecimentos, como se o resto do mundo não me interessasse.
     A rigor tudo me interessa, mas nada que me interesse pode me afastar do amor pela minha própria liberdade e desprendimento. Assim, pertenço a tudo e ao mesmo tempo não pertenço a nada, o que provoca reações irritadas de incompreensão entre os que esperam de mim atitudes  ditas normais de luta pelo poder ou de preservação de prerrogativas conquistadas.
     Apenas uma coisa me fascina nesse mundo dos não índios, que é conhecer e procurar transmitir o conhecimento aos mais jovens. Talvez por isso, ser professor foi uma das experiências mais gratas da minha vida, assim como ser pai.
     Cuido dos meus filhos, a quem procuro abrir a cabeça para que não se transformem em idiotas egoístas, mas em participantes lúcidos, pelo menos conscientes desse universo do qual fazem parte.
     Quase sempre tive sucesso nessa empreitada, embora amargue pelo menos um insucesso com um filho que não me compreende, mas ainda tenho esperança de que isso possa mudar, porque a compreensão é aliada do tempo e vem com ele, apesar de tudo.
      Por isso também escrevo, porque escrever é uma forma de transmitir as coisas que já vivi e também de aprender, pois ao compor as palavras, as idéias vão se arrumando na cabeça da gente e tomam forma de entendimento, embora ninguém esteja livre de errar e escrever bobagens.
     Dia 27 de dezembro assisti a uma entrevista no programa Roda Viva da TV Brasil (muito bem repaginado agora, sob o comando de Marília Gabriela) com a crítica de teatro Barbara Heliodora e ela falou uma coisa que me fez pensar muito. Disse que a sociedade brasileira vive um momento de tensão entre posições políticas, ideológicas, éticas e morais.
     Concordo com ela e confesso que enxergar isso com tanta naturalidade me fez ver que não é necessário se angustiar tanto e que é possível vivenciar essa situação numa sociedade democrática, de forma mais tolerante e ir levando nossas posições, na dialética do debate, embora os que eu considero meus adversários, nem sempre pensem assim.
     E quem são esses adversários? Com certeza são aqueles que acreditam numa sociedade de empilhamentos e vertigem. Explico: são aqueles que acham que ser feliz é empilhar coisas, seja dinheiro numa conta bancária, sejam troféus da fama em qualquer ramo de atividade, seja acumular poderes. São  também os que acreditam nas vertigens da sociedade do espetáculo e das celebridades, da velocidade e das drogas, das ilusões do consumo e das aparências.
     Mas na minha contradição de meio índio numa sociedade que se pretende europeizada, admiro muito o progresso da ciência e da tecnologia e procuro lutar pelo meu país. Sou, portanto, um guerreiro, mas não não sei competir por meus próprios interesses, embora saiba ir à guerra por minha tribo. E infelizmente esses que considero meus adversários só pensam em competir por si próprios e não pela nação, o que gera o embate político-ético-moral, que citei anteriormente.
     A todos eles olho com muita pena, porque acho que não vão a lugar nenhum  e enquanto, como meio-europeu, sonho com a poesia aventureira do meu lado português e sigo em frente com a determinação do meu legado alemão, minha alma índia se entristece e se recolhe, cismando, e pedindo apenas que enterrem meu coração na curva do rio,
Boa segunda-feira a todos

Feliz 2011.

Ricardo Stumpf Alves de Souza