Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

sábado, 22 de maio de 2010

Histórias de outras vidas (12) 

 O LAGO

     Todos haviam ido embora e eu fiquei sozinho em Manaus. Na verdade havia deixado meu pequeno filho com meus pais, em Brasília, por causa de uma hepatite e voltei à Manaus para trabalhar, ainda em recuperação, com medo de perder o emprego.
     O tempo foi passando e acabei passando aquele ano, de 1992, praticamente sozinho. Nos finais de semana me aborrecia na cidade quente, ia ao cinema no shopping, sábado à noite, e aos domingos de manhã ao centro comprar a Folha de São Paulo para ler em casa.
     Um dia cansei daquilo e resolvi arriscar. Eu sabia que aos sábados saíam barcos do porto flutuante em direção às praias do Rio Negro, onde os aguardavam acampamentos previamente montados para receber os turistas de fim de semana.
     Pagava-se de acordo com a dormida. Levando rede para dormir no acampamento era bem barato. Barraca de camping era mais caro e cabine no barco mais ainda. Não era preciso comprar com antecedência. Era só chegar, escolher um e embarcar.
     Peguei minha rede e embarquei em um que já estava cheio, com uma turma animada. O barco saiu em festa com o som à toda no bar, que ficava no tombadilho superior, e depois de mais ou menos uma hora aportamos em uma imensa praia de areias brancas, numa das ilhas Anavilhanas, situadas ao norte de Manaus.
     O acampamento se dividia em duas partes. Uma mais alta, numa espécie de duna, uns cem metros à frente do barco e outra numa lateral à esquerda, onde a areia descia em direção a um braço do rio.
     Como todos, procurei também um lugar para me instalar, o que no meu caso significava procurar um lugar para atar minha rede. Eu já tinha aprendido que dormir na mata, mesmo no meio de um monte de gente, tem os seus segredos. Um deles é tratar de ficar a pelo menos 1,5m do chão, para evitar ser alcançado por cobras ou outros bichos peçonhentos que se arrastam por perto durante a noite.
     Tive sorte e encontrei duas árvores próximas, que cresciam numa encosta, de forma que suas raízes ficavam na beirada e os troncos se inclinavam sobre o declive. Assim, a rede ficava próxima o suficiente da beirada, para que eu pudesse subir, e suspensa sobre o pequeno abismo de areia criado pela duna, me deixando fora do alcance de qualquer animal que tentasse alcança-la à partir do solo.
     Era julho, mês de seca, e a probabilidade de chuva era remota.
     Ali me estabeleci e procurei logo fazer amizade com as pessoas que se instalaram ao redor, procedimento de segurança e também de integração, já que mais do que um acampamento, tratava-se de uma espécie de happening, uma verdadeira festa ao ar livre, atividade eminentemente coletiva. Dentre essas pessoas percebi logo uma moça gordinha e simpática.
     Durante a viagem visto que outra moça me olhava e comentava com os amigos. Sua turma parecia ter grande cumplicidade com ela, que exercia algum tipo de liderança sobre eles, e todos me olhavam esperando que eu aceitasse a paquera e ingressasse na sua tribo, como amante da sua líder.
     Estranhei aquela situação, me sentindo intimado a me submeter aos caprichos daquela liderança desconhecida. Como a gordinha também me olhava de modo bastante receptivo, resolvi ignorar o outro grupo e me aproximar dela.
     Nos entendemos bastante bem e tratamos de ir comprar cervejas e participar do luau que ia se armando em volta de uma grande fogueira, enquanto o som do barco enchia a praia com o som brega, então em moda em Manaus.
     Curiosamente ficamos sabendo que a parte baixa do acampamento era gay, e a de cima hetero. Achei engraçado e fiquei satisfeito de poder contar com a alegria contagiante daquele pessoal.
     Nossa noite foi alegre, mas sem intimidades, já que não tínhamos um espaço com a privacidade necessária. Entrar na floresta à noite, nem pensar. Dormimos cada um na sua rede, embora próximos e de manhã bem cedo nos levantamos para o banho de rio.
     O acampamento foi despertando aos poucos e reinstalando o clima de festa e brincadeira. Após o café, servido no barco, resolvemos explorar um pouco os arredores.
     Saímos pela lateral, atravessando o acampamento gay e fomos seguindo pela margem do pequeno igarapé que desembocava ali. Ficamos surpresos ao ver ao longe uma pequena cabana, com um morador idoso na porta, sem dúvida um pescador, pois lidava com uma rede de pesca. Ele nos acenou amigavelmente de longe, com um cigarro de palha pendurado na boca.
     Seguimos por uma trilha que certamente era usada por ele e pouco adiante, observamos que havia água. Seguimos em frente e fomos dar num lago. Era incrível a clareza daquelas águas cristalinas, em comparação com as do Rio Negro, a apenas uns 100 metros dali.
     Contornamos o lago, com suas bordas de areias brancas cobertas de uma relva macia e encontramos um lugar aprazível para o banho. Mergulhamos e sentimos o frescor daquelas águas.
     Era estranho estar ali, tão próximos do acampamento que ainda podíamos ouvir seus ruídos, e próximos também de um morador (como existem tantos às margens dos rios amazônicos, gente que cansou da cidade e resolveu viver sozinho), mas ao mesmo tempo nos sentíamos completamente isolados.
     Sentimos um conforto muito grande e também uma segurança estranha. Parecia que aquele lugar tinha sido feito para nós, que estava nos esperando. Ali permanecemos um bom tempo, a princípio nos banhando e depois nos entregamos ao amor, com uma calma que parecia vir daquele lago. Nos amamos dentro da água várias vezes, numa espécie de febre de sensualidade, uma energia tectônica, que aquelas águas nos transmitiam.
     Passamos ali a manhã toda e enfrentamos uma tormenta tropical repentina, cheia de raios de trovões, quando nos refugiamos sob a copa de uma árvore. Foi aí que vimos o estranho fenômeno dos raios horizontais. A faísca riscou o lago, saindo da margem que ia dar na cabana para a outra e continuou sobre a terra, em direção ao Rio Negro. Ficamos assustados e imóveis. Foi a única vez que aquele solitário habitante se dirigiu a nós. Saindo de sua pequena habitação veio ver se estávamos bem e disse que aquele tipo de descarga elétrica era muito perigosa, principalmente se estivéssemos dentro d´água, disse ele.
     Depois o sol reapareceu e nem vimos mais a hora passar. Não sentimos fome nem sede, e depois de um tempo que não conseguíamos mais medir, fomos despertados do torpor pelos apitos do barco.
     Resolvemos voltar e o encontramos já pronto para partir, parado na curva do igarapé, apenas esperando por nós.
_Estamos apitando há mais de meia hora. Já íamos embora, pensamos que vocês tivessem se perdido. Íamos chamar a polícia para procurar vocês! - nos gritou o capitão lá de cima.
     Subimos ao barco envergonhados, sob os olhares de todas aquelas pessoas, e fomos embora com a sensação de que havíamos vivido algo diferente, algo que durante a volta foi desaparecendo, como se despertássemos de um sonho.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf