Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

sábado, 8 de maio de 2010

     

     Histórias de outras vidas (10)

     O MAR DA VARANDA



     O ano era 1998, a cidade: Ilhéus.
     Foi um ano difícil, como costumam ser os anos pares para mim. Em agosto defendi minha dissertação de mestrado, em Salvador, me libertando do laço mais forte que me prendia ali (meu estudo de caso era Ilhéus), mas minha casa ainda estava lá e meus filhos pequenos, que moravam comigo, ainda tinham alguns meses até o fim do ano na escola.
     Há muito eu já vinha me preparando para partir. Muitas lutas políticas, que resultaram até em ameaças de morte e algumas desilusões pessoais, selaram definitivamente o meu rompimento com aquela cidade, para a qual dediquei um livro de poesias: Uma Lágrima para Ilhéus.
     Uma vez, ao me preparar para atravessar a rua com os meninos em frente ao colégio,  um carro parou ao meu lado e dele saiu um sujeito corpulento, uns 40 anos. Apontou para eles, primeiro um, depois o outro, e fez um sinal de faca na garganta, depois entrou no carro e saiu cantando os pneus.
     Poucos dias depois, um tipo meio soturno entrou na minha lojinha de xerox, no bairro do Pontal e pediu cópias de seu cartão bancário e de sua identidade. Achei estranho, ninguém tira cópias de cartão de banco. Enquanto eu atendia o pedido ele manuseava uma máquina fotográfica e de repente... um flash.
     Olhei para ele.
     _Ah, disparou, desculpe...
     Já desconfiado continuei e de novo outro flash. Aí encarei o problema:
     _Você está tirando fotos de mim, afirmei.
     _O que você quer? Quem é você?
     O cara ficou nervoso.
     _Vou ficar com a cópia da sua identidade, disse eu.
     Ele se levantou e tentou tirar a cópia da minha mão. Consegui desviar. Ele pegou os documentos e saiu correndo.
     Desse dia em diante a situação ficou muito difícil, porque vivíamos num condomínio na beira da praia, cuja construção ainda estava no final, e éramos os únicos moradores. Não havia ainda cercas e apenas o vigia da obra dava umas voltas de vez em quando, preocupado mais com os materiais de construção.
     À noite, depois que os meninos adormeciam, carregava o dois para a minha cama e ficava na varanda vigiando. Antes que as primeiras luzes do dia aparecessem no horizonte eu os colocava novamente em suas camas, para que eles não percebessem minhas preocupações. Então dormia um pouco, entre 5 e 7 horas da manhã.
      Andava exausto, cansado de tudo aquilo. Nos finais de semana, às vezes, dormia de dia, enquanto os meninos iam para a praia com os amigos fazer o que eles chamavam de excursões de bicicleta.
     Passei a ficar muito tempo na varanda, vigiando durante à noite e cuidando de observá-los de longe durante o dia. Não agüentava mais ler depois do esforço do mestrado e só queria esvaziar a cabeça e descansar.
     Então comecei a olhar o mar.
     O oceano estava ali em frente, imenso. Há anos eu morava ali e nunca tinha parado para olhar o mar, pelo menos não do jeito que comecei a olhar. Comecei a perceber que eu olhava apenas a praia. Sim, a praia é uma coisa e o mar, lá dentro, lá no fundo, é outra.
     Passei a ficar horas admirando aquelas ondas imensas que se formavam longe da costa e comecei a tomar consciência da imensidão, das profundezas, do potencial de toda aquela água.
     E se aquilo tudo se levantasse contra nós? E se viesse nos arrastar? E se fossemos lá, como seria? O que seria a vida nas profundezas, que mistérios se escondiam sob aquele deserto líquido? Como podíamos viver à beira de uma coisa tão grande e desconhecida sem nos inquietarmos?
     Por aqueles dias conheci um homem que havia caído de um barco de pesca e que agora era entregador em um caminhão. Seu colega me disse que ele nem chegava mais perto da praia.
     Não resisti e perguntei. Ele contou que era um pescador experiente e um dia, numa tempestade, caiu do barco de pesca e ficou 10 dias à deriva no mar, sozinho, sem uma tábua para se agarrar.
     Como não se afogou?
     Meio constrangido ele me disse que não sabia, apenas lutou pela vida procurando boiar. Passou fome e sede, dormia boiando mas às vezes era despertado, no escuro, por animais enormes passando junto dele, coisas que ele nem soube reconhecer.
     Dez dias depois foi resgatado.
     Sua história me impressionou e o medo que ele demonstrava do mar mais ainda.
     Eu admirava as extraordinárias mudanças naquela enorme massa líquida que variava de cor, movimento e volume com as mudanças do tempo, a lua e as marés.
     Nos dias de chuva e vento, quando se tornava cinza e violento, eu também mudava de humor. Ficava mais melancólico, mais sonhador, conformado em esperar passar aqueles meses para poder sair dali. E quanto mais olhava o mar, mais coisas surgiam. Dei pra fazer pesquisas na internet sobre o fundo dos oceanos e descobri coisas interessantes.
     Descobri a imensa cordilheira submersa que divide o Oceano Atlântico, de norte a sul, e que muitas ilhas são picos dessa imensa massa de montanhas submersa. Descobri que a ilha de Santa Helena, onde morreu Napoleão, fica em frente a Ilhéus, no meio do oceano e também que o movimento das águas molda as montanhas submersas, tornando-as roliças e pontiagudas.
     Um almirante aposentado, que freqüentava minha xerox para copiar livros, me explicou que a plataforma submarina ali é a menor da América do Sul, tendo apenas 3 Km em média, e que no seu limite havia um enorme paredão onde os submarinos inimigos se encostavam durante a segunda guerra, quietinhos, para emboscar os navios brasileiros que passavam para a Europa.
     Ilhéus tem muitas histórias de guerra relacionadas ao mar.
     Ele contou que após o paredão havia uma profundeza abissal de 5 km, que ainda estava sendo mapeada.
     Cada descoberta ia me revelando um mundo novo e eu olhava para as pessoas na praia aos domingos, crianças brincando, velhos passeando, totalmente alheios àquele universo fantástico em cuja fronteira vivíamos. Sim, a praia era apenas a borda daquele mundo gigantesco e desconhecido.
     Olhar o mar e perceber a extensão dos seus mistérios me ajudou a enfrentar aqueles dias tão difíceis, até que finalmente chegou o fim do ano. Em dezembro já estávamos em Vitória da Conquista.
     As lutas políticas que tanto me desgastaram em Ilhéus pareciam que nunca dariam resultado e que haviam sido apenas uma perda de tempo e energia para mim e tantos outros que lutaram, mas as sementes lançadas frutificaram.
     Hoje Ilhéus e a Bahia tem governos democráticos e continuo frequentando o mesmo apartamento e a mesma praia. O mar continua lá, imenso, misterioso, insondável e, às vezes, olhando aquele universo estranho parece que ele está me dizendo que não basta chegar até a praia, é preciso mergulhar nos mistérios do mundo se queremos mudar alguma coisa.

Abraço a todos

Ricardo Stumpf