Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 27 de junho de 2010

     Histórias de outras vidas (18)

     A VACA MANTEIGA


     Corria o ano de 1968 quando eu e meu irmão fomos convidados para passar as férias na Ilha do Marajó, na fazenda de um primo de meu pai. Aquelas  foram férias marcantes para mim, que estava em época de afirmação, em plena adolescência, perto de completar 17 anos. Meu irmão tinha 21.
     A sede da fazenda era uma casa de dois andares, com instalações de apoio no andar de baixo e residência no segundo pavimento, situada próximo a um rio e sua mata ciliar, nos fundos, e aberta para a imensa planície marajoara, que se escancarava à frente da casa.
     Em época de afirmação, me soltei no Marajó. Como sempre gostei de montar, logo arranjei um cavalo do meu agrado, que os peões já separavam para mim pela manhã. Saía com eles para pastorear o gado e o cavalo era treinado nisso. Aprendi a campear uma novilha rebelde ou mesmo um touro valente, que teimavam em se afastar da boiada.
     Os peões gostavam da minha companhia e eu da deles. Me sentia finalmente um homem, liberto das pressões familiares e prestigiado como jovem que eu era, pelos homens da casa.
     Muitas manhãs pegava o cavalo, a vara de pescar e algumas iscas e saía sozinho, em direção a um rio próximo, para pescar. Voltava carregado de peixes, traíras que eram preparadas no jantar pela esposa do primo, a quem chamávamos tia.
     O primo era um homem interessante. Grandalhão, administrava os bens herdados por sua esposa, principalmente aquela fazenda, onde criava búfalos. Tinha um avião bimotor, um Piper, que nos levava e trazia de Belém, e gostava de carros grandes, como que para mostrar seu poderio econômico.
     Tinha também um gosto pela pesquisa histórica e gostava muito de conversar com os jovens, como éramos. Mas seu aspecto mais intrigante era a necessidade de se impor aos empregados, à natureza, ao mundo. Parece que sob aquela natureza meio abrutalhada, havia uma alma mais refinada que, no entanto, se envergonhava disso.
     Talvez por isso, procurava nos ensinar a não ter pena dos animais. Me lembro de uma vez que nos levou à caça. Mandou que atirássemos em urubus, só para treinar pontaria e depois atirou em algumas garças que estavam pousadas por perto. Garças, evidentemente, não servem como caça, já que quase não tem carne. Uma delas caiu ferida próximo a nós. Ele, então, armou-se de um porrete e nos ordenou que matássemos o bicho a pauladas.
     Tentamos, eu e meu irmão, dar umas pauladas na ave que se debatia, ferida na asa, mas com pena, não batíamos forte o suficiente. Flávio então nos tomou o porrete e acertou três ou quatro pauladas na cabeça da pobre garça. Foi horrível, mas ele vitorioso com a morte do animal, proclamou sua superioridade dizendo que não se podia ter pena de animais.
     Era época de ditadura no Brasil, uma ditadura sustentada, em grande parte pelas oligarquias rurais, como a que ele representava. A afirmação do direito de vida e morte sobre qualquer animal era uma espécie de símbolo do poder oligarca, que se estendia também ao povo. Aliás, ele se orgulhava em dizer que tinha comprado uma ilha no Rio Amazonas, a ilha Mexiana, que fica acima do Marajó, com tudo dentro, inclusive o povo.
     As atitudes de afirmação de nosso primo repercutiam em mim de outra maneira. Me sentindo mais forte e livre, senti ali também um espaço de afirmação masculina. Talvez percebendo isso ele resolveu me testar.
     Havia o hábito, na fazenda, de sacrificar a melhor vaca para o consumo dos proprietários. Era a vaca manteiga. Essas vacas eram mortas nos fundos, entre a casa e o igarapé que passava a uns 200 metros. Não havia matadouro. Tudo era feito no campo aberto.
     Um dia ele me disse que eu é que teria que matar a vaca. Me perguntou se eu seria capaz. Embalado na minha afirmação juvenil, aceitei o desafio. Meu irmão me estranhou e duvidou:
     _Você não vai ter coragem!
     No dia seguinte, pela manhã, os peões vieram me chamar. Muitos já eram meus amigos e me estimulavam, outros me olhavam duvidosos. O capataz me explicou o que eu tinha que fazer. Me mostrou um enorme terçado, um facão muito comprido, e me disse que eu teria que enterrá-lo entre as omoplatas da vaca, que são aqueles ossos que nos humanos ficam nas costas (as asas) e nos bois ficam entre as pernas da frente.
     A técnica era dar um só golpe, certeiro e mortal, que levaria o terçado até o coração do bicho, matando-o instantâneamente. Me explicaram que se eu hesitasse, a vaca ficaria ferida, sofreria muito e não morreria, e para matá-la depois, seria mais difícil, devido à agitação do animal.
     Sentindo a responsabilidade, aceitei, entendi como devia empunhar a faca e desferi o golpe certeiro no coração, matando corretamente a vaca manteiga, que caiu fulminada a meus pés. Seguiu-se um silêncio e senti o respeito entre os peões e também por parte do primo. Depois vieram as exclamações de admiração e respeito e me senti aprovado numa espécie de ritual de passagem.
     A força e a segurança do golpe desferido, não foram só contra a vaca. De um só golpe me livrei de todos os medos e inseguranças da adolescência e iniciei ali minha vida de adulto, sabendo que teria que seguir sozinho meu caminho.

Abraço a todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza



   Razão e Espírito

     Em Brasília, acompanhei minha mãe, já idosa, à igreja que ela frequenta há mais de trinta anos, uma religião japonesa que faz muito sucesso por aqui. Ouvindo seu fantástico coro e depois as palavras de um reverendo sobre a necessidade de espiritualização das pessoas, fiquei pensando ne velha pergunta: porque uma cidade moderna conmo Brasília, construída para ser o exemplo acabado do domínio do homem sobre a natureza, se tornou a capital nacional do misticismo?
     Quem já morou e trabalhou aqui, como eu, sabe a resposta. Dentro da burocracia federal, instalada no Planalto Central, instalou-se a mais mesquinha das máquinas humanas, baseada numa competição injusta, onde quem tem o poder pode tudo e quem é funcionário pode apenas obedecer.
     A relação de funcionários públicos com seus chefes, ministros e partidos políticos que os nomeiam, é uma coisa completamente neurótica. Se o capitalismo já é extremamente competitivo, por natureza, a burocracia, à serviço do capitalismo, ainda por cima regulada por um código completamente ultrapassado, baseado nas idéias verticalistas de Taylor, o homem que inventou a linha de produção, é uma loucura completa.
     Já falei aqui sobre o estatuto do funcionalismo público, que regula as relações de trabalho dos funcionários públicos. Um artigo desse estatuto é emblemático, o que diz que o funcionário tem obrigação de obedecer ao seu chefe sob pena de ser demitido. Ou seja, o funcionário não pode contestar uma ordem errada, tem de obedecer. Não tem direito à uma opinião, nem à mínima dignidade de pelo menos registrar seu desacordo.
     É claro que isso é a base para todo tipo de corrupção, já que, para denunciar um chefe o ônus da prova cabe ao acusador e tem de ser montada uma comissão de inquérito, cuja composição frequentemente fica à cargo do próprio acusado. Some-se isso ao discurso de produtividade e competitividade, incorporado à mente obscura dos nossos administradores na década neoliberal de 1990 e teremos o caldo de cultura para produzir neuróticos em série.
     Obriga-se as pessoas a serem competitivas, num ambiente anti-democrático, onde só o que é perrmitido é obedecer.
     E existe todo um discurso em cima disso, como se daí dependesse o bom desempenho da máquina federal, quando na verdade é aí que mora o erro. Uma máquina mais enxuta, democrática, com menos consultores e mais executores, seria muito mais produtiva e quem sabe, produziria sobre os funcionários um efeito mais relaxante, permitindo que a criatividade aflorasse e, aí sim, a produtividade aumentasse.
     Talvez outro efeito fosse o de esvaziar as igrejas, cujo principal trabalho por aqui está em desfazer o serviço perverso que a máquina administrativa produz sobre os espíritos dos pobres funcionários. No emprego mandam competir, na igreja mandam cooperar. De um lado o egoísmo extremado, do outro o altruísmo total.
     É claro que por trás dos dois discursos existe oportunismo também. Os administradores se beneficiam da fragilidade psicológica dos seus comandados para auferirem suas vantagens. Os padres, reverendos, pastores e outros líderes espirituais também veem suas igrejas se encherem de gente aflita, procurando saídas para suas vidas sem sentido.
     Mas na verdade o que está por trás de tudo isso é o conflito contra a injustiça.
     Sim, muita gente que não aceita injustiças padece muito em todo lugar e não aceita também que elas sejam resolvidas com consolos espirituais, sabendo que tudo isso, no fundo é a mesma coisa, uma grande enganação e que as empresas ou repartições públicas que oprimem seus trabalhadores são apenas um lado da página injusta da verdade, cujo verso são as igrejas que oferecem bálsamos para as vítimas do sistema.
     Países desenvolvidos aprenderam a lidar com injustiças de maneira corajosa, o que infelizmente não é o caso do Brasil. Pergunte a um americano ou a um europeu se ele aceita entregar uma injustiça às mãos de Deus.
     Não.
     Eles aprenderam que só lutando as coisas mudam. Criaram um imenso movimento sindical, fizeram revoluções e movimentos pelos direitos civis, cujos benefícios nós desfrutamos por aqui também, apesar de não termos participado deles.
     No Brasil, uma pessoa que gosta das coisas certas, que não aceita se calar diante de situações erradas, é considerado um chato e logo aparece alguém para lhe aconselhar entregar a Deus. Não é à tôa que os maiores corruptos estão profundamente ligados a movimentos religiosos, que lhes servem como cortina de fumaça para seus negócios escusos e para anestesiar suas vítimas.
     Razão e espírito não precisam andar em direções opostas, mas ao contrário, devem compartilhar uma visão de justiça que liberte o ser humano de espertezas de ambos os lados. A vida após a morte não resolverá os problemas na terra e viemos para esta vida para aprender, para aperfeiçoar o planeta, para progredir e, portanto, para lutar, mesmo que renunciemos à violência. O conformismo religioso e o falso altruísmo que estimula a passividade diante das coisas erradas, só servem aos que não querem mudar nada. 

Abraço a todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza
    
    

segunda-feira, 21 de junho de 2010


Segunda-feira

     Prezados amigos

     Devido a algumas observações de leitores deste blog de que eu estava enchendo suas caixas de mensagens de tanto escrever e de que não estava sendo possível acompanhar direito o blog, com a leitura e posteriores comentários, resolvi publicar somente às segundas-feiras, e por isso mesmo, resolvi mudar o nome do blog para Segunda-feira.
     Passei também a usar meu nome inteiro Ricardo Stumpf Alves de Souza, ao invés de apenas Ricardo Stumpf pois, por incrível que pareça, existem vários Ricardos Stumpf na internet brasileira (procurando rapidamente achei seis).
     Espero que os leitores gostem e continuem mandando críticas e sugestões.


Trevas e meio-ambiente

     Viajando pela chapada neste final de semana, pude observar a grande transformação que a pavimentação de uma estrada pode causar. Povoados antes isolados, servidos por caminhos de terra, se transformam com a chegada do asfalto.
     Tudo muda e com a estrada chegam inúmeros outros benefícios, trazidos pelo trânsito de veículos e pessoas que vão passando, interagindo com aquelas povoações antes esquecidas, comprando, vendendo, trazendo novas idéias.
     O asfalto vai acabando com uma civilização antiga, que estava ali há séculos, parada, evoluindo muito lentamente e dá lugar ao choque do progresso. Sem dúvida pode-se dizer que o progresso é uma coisa boa na vida das pessoas que estavam longe dele. Mas junto com ele chega um novo padrão civilizatório que no Brasil é muito descuidado com o meio-ambiente e possui padrões culturais e estéticos muito precários.
     Se os antigos povoados e vilas se caracterizam pelas casas de adobe, com seus beirais, seus quintais, sua simplicidade digna, que dialoga muito bem com a rua ou caminho que lhe passa defronte, formando um conjunto harmônico, cujos signos principais, baseados em tradições antigas, são a base para o reconhecimento mútuo dos seus cidadãos, no novo padrão desaparece a harmonia, substituída por uma estética oportunista, feita de caixotes sem nenhuma beleza, surgem os muros, os portões de garagem, que vão bloqueando o visual do interior das propriedades, e a rua vai se tornando isolada das casas e as pessoas isoladas umas das outras, e vem o lixo, o descuido com o que está do lado de fora e o egoísmo, que só se importa com o que é de cada um, deixando o coletivo para o poder público, incapaz de substituir com seus poucos recursos, a responsabilidade comunitária que havia antes, sobre tudo e todos.
     Se é preciso vencer as trevas com o progresso, é preciso também estabelecer novos padrões de civilização e urbanização, com normas muito mais rigorosas a respeito das construções e também implementando iniciativas que reforcem o espírito coletivo das comunidades, evitando que as famílias se isolem e passem a agir de forma predatória, prejudicando o meio-ambiente natural e social de onde vivem.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Histórias de outras vidas (17)    

RUA ANDRÉ DA ROCHA

     Era uma pensão, quase no centro de Porto Alegre. Eu havia abandonado Brasília e a casa de meus pais para tentar me encontrar e construir uma vida própria. O ano era 1969 e eu tinha apenas 18 anos.
     Nessa pensão conviviam estudantes, vendedores, jovens do interior cheios de esperança em busca de uma vida nova na capital e senhores de meia idade, já sem esperança de construir alguma coisa na vida, arrastando suas lembranças e frustrações.
     Preenchi logo meus dias com várias atividades, mas os domingos eram especialmente parados. No segundo andar da pensão, no quarto da frente, havia um pequeno balcão em frente ao qual ficava minha cama. Lembro que a porta do balcão tinha um vidro quebrado, através do qual eu via a lua à noite, numa Porto Alegre ainda romântica.
     Aos domingos, me sentava em frente ao balcão para observar a vida na rua André da Rocha, onde se localizava um quartel do exército, dentro do qual um jovem capitão chamado Lamarca, se preparava para desertar e tentar começar uma revolução armada no Brasil. Eram tempos difíceis, de ditadura.
     O Rio Grande do Sul tinha para mim um fascínio de uma cultura diferente, cheia de tradições que preenchiam o vazio cultural que se sentia em Brasília uma cidade nova, com pessoas de várias partes do país, ainda sem tradições próprias e que apenas começava a sua história.
     Algumas coisas, no entanto, eram estranhas para mim. Coisas que eu entenderia melhor nos anos que ainda conviveria no Rio Grande. Aquele dia eu veria uma dessas coisas.
     Era final do ano, uma tarde quente de domingo, já quase verão, quando me postei no balcãozinho a apreciar a pachorra daquele dia, que parecia não reservar nenhuma surpresa possível.
     Foi quando ouvi uma gritaria vindo da parte baixa da rua. Uma mulher vinha subindo a rua e parecia despertar um tumulto por onde passava. Gente surgia nas janelas e se tomava de grande excitação à sua passagem, gritando e xingando. Eu não entendia o que estava acontecendo e fiquei atento.
     O tumulto veio crescendo na minha direção e percebi então que se tratava de uma mendiga, uma mulher negra e andrajosa. Suspeitei então que fosse uma dessas tristes figuras que povoam nossas cidades, enlouquecidas pela miséria e que despertam a crueldade natural das crianças, que lhes atiram coisas, debochando delas e das coisas sem sentido que dizem.
     Mas à medida em que o tumulto se aproximava, percebi que não era bem isso. Era apenas uma mulher negra e pobre que estava passando pela rua, talvez catando lixo por ali, e as pessoas que estavam lhe hostilizando não eram crianças, mas homens e mulheres brancos, adultos racistas, que riam e debochavam dela, por ser negra e pobre.
     Fiquei chocado. Pensei em descer e ir protegê-la, mas fiquei com medo da turba que se formava ao seu redor, atiçando-a com paus, ofendendo-a com gritos de macaca e outras expressões racistas.
     Outros jovens da pensão, atraídos pelos gritos vieram olhar e também se incorporaram, excitados, à bagunça que se fazia em torno da pobre mulher. Ela reagia como podia, respondia aos impropérios dizendo coisas que eu não conseguia ouvir, mas a turba respondia com mais agressões e deboches.
     Era uma demonstração explícita de racismo. A primeira contradição exposta da cultura riograndense, entre muitas outras que eu conheceria até me formar em Porto Alegre, doze anos depois.
     Custei para entender que nem sempre tradições são uma coisa boa. Na maioria dos casos apenas impedem que a sociedade evolua, embora às vezes também preservem bons valores. No caso do Rio Grande, várias tradições se misturam, entre elas às dos descendentes de imigrantes europeus, que trouxeram esse racismo em suas bagagens e a dos gaúchos da fronteira, mescla de índios com portugueses e espanhóis, que formam os CTGs, ou Centro de Tradições Gaúchas, com suas mulheres vestidas de prendas, seus homens de bigode e bombachas e muito machismo.
     Nada disso me agrada.
     Depois desse episódio, toda vez que alguém vem defender algum tipo de conservadorismo, em nome de alguma tradição, me lembro da mulher, acossada, lutando para não cair, fugindo daquela gente que se achava tão civilizada e penso em como é bom mudar, como é importante evoluir.

Abraço a todos

Ricardo Stumpf

segunda-feira, 14 de junho de 2010

    


Histórias de outras vidas (16)


HÉLIA

O ano era 1973, o lugar, Santiago do Chile.
     Eu estudava arquitetura em Santiago, fugido do ambiente político da ditadura brasileira, e arranjei um apartamento, que dividia com meu amigo Juca.
     Diga-se de passagem, que conseguir um apartamento em Santiago era tarefa quase impossível e tivemos que tomar, como se dizia na gíria revolucionária, aquele imóvel, usado pela organização política a que Juca pertencia, só para fazer reuniões, uma vez por semana.
     Quiseram nos expulsar, mas Juca os convenceu de que era um absurdo manter o imóvel vazio com tanta gente necessitada, no caso ele mesmo, que não queria mais morar com os pais, e então nos cederam o espaço, com a condição de que na hora das tais reuniões semanais, eu saísse uma meia hora antes, para não ver quem estava chegando.
     Vivemos ali por alguns meses, até o golpe militar de Pinochet.
     O apartamento era muito freqüentado por amigos e namoradas, minhas e de Juca. Algumas, amigas, vinham nos visitar em duplas, e acabavam ficando, uma comigo e outra com ele. Dentre essas, me veio um presente especial: Hélia.
     Era uma morena, alta e muito bonita, se não me engano de Goiás, descendente de árabes. Seu pai, do Partido Comunista Brasileiro, havia conseguido que ela fosse estudar medicina na URSS e ela havia ido para Santiago, para pegar o vôo da Aeroflot, a empresa soviética que fazia a linha Santiago-Moscou.
     Hélia teve que ficar algum tempo em Santiago, esperando a hora e a turma com a qual ela embarcaria. A Universidade Patrice Lumumba, de moscou era só para estrangeiros, e recebia muitas turmas de toda parte. Entrar para aquela universidade era um privilégio que os russos distribuíam aos filhos de dirigentes comunistas ou a líderes revolucionários pelo mundo afora.
      Sua primeira visita foi como a de tantas outras. Temperada pela interesse mútuo e pelo sexo, que praticávamos livre e revolucionariamente, num mundo ainda sem aids e sem camisinhas. Ela voltou muitas vezes e entre nós foi nascendo algo maior.    
      Começamos a nos ver sempre, saíamos juntos e as pessoas começaram a nos reconhecer como um casal. Juca ficava com a amiga dela, mas logo mudou para outra. Eu, sempre em busca de amores, muito mais do que de sexo, permanecia com Hélia.
     Um dia a chamaram. Levei-a ao aeroporto de Pudahuel. Lá um rapaz russo, estranhamente parecido com um americano, dava ordens e exigia uma série de coisas. Hélia me disse que os russos eram assim mesmo, tinham fixação por organização e tudo tinha que sair perfeito.
     O alto-falante chamou seu vôo. Nos beijamos longamente, fizemos promessas de reencontros e cartas e ela embarcou. Fui para a varanda do aeroporto (naquela época os aeroportos tinham varandas abertas, de onde se podia apreciar os aviões).
     O Iliushin 62, um jato com 4 turbinas grudadas na cauda, um par de cada lado, foi para a cabeceira da pista e lá ficou parado, por um tempo que me pareceu interminável. Logo se movimentou e sumiu no céu, buscando um destino do outro lado do planeta.
     Para mim a União Soviética era quase um outro planeta e de lá nunca pude receber nenhuma notícia, pois o golpe militar me pegou de férias no Brasil e não pude retornar.
     Por onde andará Hélia, tantos anos depois? Terá ela se formado, será um médica em Goiás, será ainda uma socialista, agora que a URSS nem existe mais?
     Aquela foi uma das inúmeras vezes que a felicidade pareceu escapar de minhas mãos. Consegui tudo que queria na vida, menos um grande amor para dividir a existência, coisa que não é fácil para ninguém.
     Às vezes ainda vejo aquele avião levando Hélia da minha vida, uma vida que nunca mais seria a mesma.
     Abraço a todos    
     Ricardo Stumpf

domingo, 13 de junho de 2010


    Histórias de outras vidas (15)


     UM LUGAR TRANQUILO

     O ano era 1996. O lugar, uma cidadezinha da Chapada Diamantina, um verdadeiro presépio: Mucugê. Eu vinha de Salvador, com meus filhos de 7 e 8 e um amigo, indo para Brasília e resolvemos cortar caminho pelo Parque Nacional, numa estrada belíssima, que acabava de ser asfaltada. 
     Ficamos hospedados na Pousada Santo Antonio, muito simples e limpa, onde fomos atendidos com muita simpatia. Passamos um dia inteiro em excursões pelos arredores, banhos em poços misteriosos, passeios em grutas e ruínas de garimpos. À tarde, ao retornarmos, a cidade repentinamente ficou sem luz.
     Resolvi tomar banho logo, já que a cidade é fria e não queria correr o risco de tomar um banho gelado.
     Eu e os meninos nos banhamos no chuveiro frio, mas meu amigo resolveu esperar a luz voltar.
     Saímos para jantar mas o único restaurante self-service que havia na cidade tinha aquela tipo de bandejas aquecidas eletricamente, onde ficam as comidas para os clientes se servirem. Sem luz, a comida estava fria. Descobri um bar que tinha uma chapa a gás e resolvi comer uns hamburguers, com os meninos. Meu amigo disse que não ia comer aquilo, que preferia esperar a luz voltar.
     Assim, banhados e alimentados, com a cidade na mais completa escuridão (era uma noite sem lua), voltamos à pousada e coloquei os meninos para dormir. Meu amigo, irritado, sem tomar banho e sem comer, resolveu se deitar também. Como ainda era cedo fui para a porta ver o movimento, como todo mundo faz quando fica sem luz e não há TV para nos entreter. Sentei num banco de madeira na calçada, onde muitas outras pessoas, sem ter o que fazer, vieram se sentar também e começou a conversa.
     O dono da pousada era um jovem e logo se formou uma turma de rapazes e moças, seus conhecidos. Ao meu lado sentou-se uma moça que disse ser enfermeira. Nos apresentamos e ela me disse que Mucugê era um lugar muito tranqüilo, coisa que eu não duvidava. Em seguida me contou que lá apareciam regularmente uns discos voadores, que muita gente já tinha visto e que ela havia atendido no hospital um garimpeiro todo queimado por um raio que teria sido lançado por tripulantes de um disco, surpreendidos pelo tal sujeito, de madrugada, em volta de sua cabana.
     _Lugar tranqüilo? Pensei comigo.
     Depois ela passou a me contar sobre o assalto ao Banco do Brasil, quando bandidos armados tinham invadido a pequena cidade, rendido os poucos homens da polícia militar, esvaziado o cofre e seqüestrado o gerente.
     _Muito tranqüilo o lugar, pensei já meio cismado.
     Passado algum tempo alguém surgiu do escuro, alvoraçado, contando que um armazém havia sido roubado no centro da cidade, próximo dali. Disse que haviam visto o vulto sair de dentro do velho casarão com um casaco comprido, golas levantadas, andando rapidamente. Só depois que ele desapareceu no escuro, viram a porta aberta e a caixa registradora vazia.
     Excitados, passaram a discutir sobre quem poderia ser o ladrão que se aproveitara do apagão para atacar. Pela descrição, alto e magro, chegaram à conclusão que só poderia ser um tipo que chegara à pouco de São Paulo e tinha hábitos meio reclusos, logo identificados como de um drogado.
     Passado algum tempo, no meio da conversa animada, alguém apareceu com uma garrafa de licor de genipapo e a animação aumentou. A essas alturas meu amigo que não conseguia dormir, sujo e com fome, levantou-se e veio ver o que estava acontecendo, tomando também seus golinhos de licor.
     À toda hora chegavam notícias de gente que surgia do nada, na escuridão, excitados com novas teorias sobre o caso do roubo. Não demorou muito para que alguém viesse com a notícia explosiva: o ladrão tinha entrado pelo telhado do armazém, pulado sobre o balcão e, nesse gesto, deixado cair sua carteira com todos os documentos! E não é que eles estavam certos? Era mesmo o tal sujeito esquisito.
     Achei engraçado, um ladrão deixar cair os documentos assim.
     Logo a polícia civil encostou para ouvir a opinião do grupo.
     Alguém disse que o ladrão deveria estar escondido numa das pequenas grutas (que eles chamam de locas) que existem às centenas nas belas formações rochosas em torno da cidade. Outro discordou dizendo: aposto que ele está lá no anel viário pedindo carona pra fugir.
     O policial disse que iria fazer uma ronda pra ver se achava o cidadão, mas um dos jovens argumentou que ao ver o carro da polícia, provavelmente o ladrão se esconderia. Alguém sugeriu que eles fossem num carro particular e que se ele pedisse carona o deixassem entrar, então poderiam prendê-lo. Logo o delegado apareceu com um Gol creme, particular, e seguiu com o proprietário ao volante, com mais um policial no banco de trás.
     A conversa se animou novamente, enquanto a escuridão total prevalecia. Muitas hipóteses eram levantadas enquanto a garrafa de licor não parava de correr. A primeira já se esgotara e alguém se encarregara de trazes mais duas.
     Logo a bomba correu: o ladrão havia pedido carona ao carro com os policiais, que pararam para que ele entrasse e em seguida deram voz de prisão. Exatamente como aquele grupo de jovens havia previsto.
A essas alturas já eram duas horas da manhã e eu começava a ficar muito sonolento apesar de toda aquela agitação. Com o caso resolvido, achei melhor ir dormir antes que acontecesse mais alguma coisa.
     A energia elétrica só voltou às cinco da manhã, mas como eu estava bem banhado e alimentado, dormi sossegado, ao contrário do meu amigo, que reclamava arrependido de não ter se banhado e jantado e nem aproveitou direito uma noite tão interessante, naquela cidadezinha tão tranqüila.

Abraço a todos

Ricardo Stumpf

sábado, 12 de junho de 2010



Rapidinhas de Rio de Contas


Zofir

A destruição da Nega do Zofir, obra de arte pintada sobre uma pedra às margens da estrada Livramento-Rio de Contas, apenas revela o descaso com que a cultura é tratada no município.
O Acervo do fantástico artista riocontense Zofir Brasil continua abandonado, deixado por conta da família, como se aquele não fosse um patrimônio de todo o município. A Nega do Zofir deveria ter tido algum tipo de conservação e tombamento, para que fosse evitada sua ruína. Existem outras obras do artista pintada em pedras, na mesma estrada. Será que elas vão passar a merecer alguma onservação?
Essa é a cidade baiana da cultura abandonada, ou melhor, vendida para os fariseus do turismo.

Crimes ambientais
Lixão de Rio de Contas: o outro lado do paraíso  

Muita reclamação na Associação dos Pequenos Produtores Rurais, pela atuação de fiscais ambientais do IMA, sob supervisão da Secretaria local do Meio Ambiente. Muita arrogância e violência contra os pequenos agricultores, mas o maior crime ambiental do município, o lixão, cometido pela própria Prefeitura, não é objeto de fiscalização e multa. Como sempre é fácil ser duro com quem não tem poder político. Abrem-se porteiras, invadem-se residências, sem mandado judicial e até destampar panelas pra ver se estavam cozinhando caça ilegal já fizeram. Enquanto isso, não temos uma gaiola para guardar embalagens de agrotóxicos no município, nem uma política para incentivar a agricultura orgânica. Isso é o que dá entregar o meio ambiente para ongueiros, com visão fragmentada, incapazes de formular uma verdadeira política pública.
Teatro











Projeto de reforma e ampliação do Teatro São Carlos

 Incluída no PAC das cidades históricas, será liberada verba para reforma e ampliação do Teatro São Carlos. O blog Notícias de Rio de Contas e outros meios divulgaram a notícia. Naturalmente ninguém se lembrou que o projeto arquitetônico é meu e que a inclusão do teatro no PAC é fruto de uma luta minha dentro e fora do IPHAN e, faça-se justiça, uma luta começou por iniciativa de Jorge Sá, que elaborou o primeiro dossiê sobre o teatro e o entregou em mãos ao governador Jaques Wagner, já com o projeto.
Agora o mérito é da Prefeitura? Reclamam das minhas críticas, mas se essas coisas estão acontecendo é porque pessoas se empenharam para consegui-las, apesar do notório desinteresse dos nossos atuais gestores.

Política

Correm rumores insistentes na cidade da aproximação entre Dr. Pedro (DEM) e Neto do PT local, ou melhor, da facção que controla o PT atualmente, pois parte do partido está no governo de Márcio. Se houver um fundo de verdade nisso, corremos o risco de ver uma polarização entre um candidato apoiado pelo PT e o DEM, contra o PMDB de Márcio, que por sua vez é ex-PT.
Parece que não existem mais partidos, idéias nem princípios, Tudo virou uma salada geral, um leguedê político. E a população como é que fica?

Abraço a todos

Ricardo Stumpf


quarta-feira, 9 de junho de 2010



    
Histórias de outras vidas (14)

DORMINDO NA RUA

     O ano era 1972. Eu morava em Brasília, recebi uns atrasados e resolvi ir à Bahia ver o carnaval. Aquele foi o primeiro carnaval badalado da Bahia, parecia que o Brasil todo resolveu ir pra lá. Foi o ano de Chuva, suor e cerveja, sucesso de Caetano Veloso.
     Eu conhecia Salvador mas nunca tinha ido lá sozinho. Estava naquela fase em que a gente se solta no mundo e começa a viajar e de repente me resolvi: peguei um ônibus para Belo Horizonte e de lá outro para Salvador.
     Na poltrona ao lado, no segundo ônibus, um rapaz da mesma idade, Agnelo, com o mesmo destino. Nos tornamos amigos e dividimos algumas coisas nessa aventura maluca de ir pra Salvador ver o carnaval.
     Naquela época a rodoviária de Salvador ainda era outra, situada em um bairro muito feio. Aliás a rodoviária também não era bonita. Esse foi o primeiro choque que tive com a Bahia, que eu ainda idealizava das canções de Caymi. Descemos do ônibus em pleno carnaval, com gente cantando pelas ruas, onde imperava uma mistura de cheiro de urina com lixo apodrecido pela chuva. Tudo muito louco.
     Depois de conseguir chegar ao centro, rodei por todos os hotéis e não achei uma vaga, até que consegui um lugar para dormir no sofá do corredor de um hotel antigo, na Avenida Sete. Com o pouco dinheiro que tinha comprei uma mortalha, que naquele tempo era uma espécie de camisolão de tecido muito fino que ia até os pés (hoje não passa de uma camiseta) e saí pelo centro vestindo apenas uma sunga por baixo.
     Naquela época não havia esses blocos particulares que hoje dominam o carnaval e mantém os foliões que não pagam (pipocas) fora de suas cordas.Tudo era público e democrático e podia-se ir atrás do trio elétrico, brincando e dançando sem maiores riscos de sofrer algum tipo de violência.
     No meio da folia encontrei um amigo de Brasília que era sobrinho do Arcebispo Primaz do Brasil, cuja sede ficava no Campo Grande em um belíssimo casarão antigo de azulejos brancos. Ele me chamou para ir ao encontro de seu tio e fui com ele, vestido como estava, de mortalha. Fiquei sozinho esperando na sala, olhando toda aquela arte da época colonial, que enchia meus olhos de estudante de arquitetura da UnB.
     Foi uma sensação estranha. Eu sozinho na casa do Arcebispo do Brasil vestido para o carnaval, perambulando por aqueles salões enormes. Não aparecia ninguém e fui ficando meio sem graça. Depois cismei que estava sendo observado e resolvi ir embora, sem esperar mais.
     Reencontrei Agnelo e conhecemos umas meninas que nos convidaram a ir a sua casa. Naquela época era fácil se hospedar em Salvador. Havia uma enorme hospitalidade por parte da população, que abria suas casas para os visitantes, de uma forma que encantava quem era de fora.
     Os dias se passaram e eu ficava na Avenida Sete tomando cervejas, comendo ovos cozidos coloridos (aqueles de botequim) e pulando o carnaval até o amanhecer. Quando tudo acabou fui convidado a ir a Arembepe para conhecer a colônia hippie. Fomos eu e Agnelo, juntos mais uma vez.
     Chegando lá, encontrei o amigo de Brasília novamente com outros conhecidos. Alguns deles me olhavam de modo estranho, porque eu, sendo filho de uma família classe média, havia rompido com meus pais e morava sozinho numa república, vivendo do meu trabalho. Era como seu eu tivesse rompido com o mundo que eles conheciam e me lançado em um universo paralelo que eles temiam.
     Engraçado, porque alguns desses rapazes se diziam progressistas, o que na época queria dizer de esquerda, ou seja, adeptos do socialismo, mas não lhes agradava que alguém como eu passasse das idéias aos fatos e rompesse de verdade com aquele mundinho pequeno-burguês ao qual eles também pertenciam. Esses mesmos progressistas,gostavam de revelar seu desprendimento do mundo fumando maconha e a erva rolava solta por lá.
     Ficamos, eu e Agnelo, num casebre de pescador, alugado por um conhecido desse pessoal de Brasília, para curtir a ressaca de carnaval com amigos, num estilo bem despojado. Ele era o chefe e nos recebeu para fazer parte da sua tribo. Mas não gostei dele, achei que nos olhou com um ar superior, como se fossemos gente comum demais. 
     Eram filhinhos de papai curtindo uma de hippie, mas na verdade apenas a fim de consumir drogas. Era evidente que quando acabasse o verão aqueles caras voltariam para suas vidas habituais, suas faculdades, carros e empregos, suas ambições de ganhar dinheiro e conquistar um lugar importante naquela sociedade que eles fingiam desprezar.
     Durante o dia saíamos para a praia convivendo com alguns hippies verdadeiros. Conheci também os pescadores, alguns já viciados na droga que os hippies traziam. O lugar era lindo, mas havia um problema: não havia muita comida. Eu tinha gasto quase todo o meu dinheiro e não havia nada para comprar.
     De noite, fazia-se uma roda dentro do casebre e corria a maconha, que eu recusava, criando um constrangimento geral. Então eu saía para caminhar e voltava tarde da noite. Às vezes rodava também uma garrafa de cachaça e dessa eu bebia um pouco.
     Fiquei três dias sem comer. No primeiro senti muita fome, depois o estômago foi amortecendo. Tomava uma água de coco e comia a polpa, depois um gole de cachaça e ia levando.Uma vez, percebi que eles haviam posto alguma coisa na cachaça, pois estavam oferecendo e rindo. Recusei e saí. Depois encontrei Agnelo dançando nas dunas, completamente alucinado e acompanhado por uns sujeitos que riam dele.
     Resolvi ir embora. No dia seguinte, cedo, peguei minha trouxa e fui para o ponto de ônibus. Eu tinha 16 cruzeiros para ir até Brasília, numa viagem de mais de 2.000 Km. Cheguei a Salvador e fui andando em direção a saída para Feira de Santana. Peguei uma carona até o entroncamento com a Rio-Bahia. De lá fui numa carreta vazia, junto com outros jovens, até Governador Valadares e depois consegui que me levassem até Ipatinga.
     Cheguei em Ipatinga à noite e não tinha onde dormir. Como eu estudava arquitetura na UnB e tinha minha carteira de estudante, me ocorreu pedir abrigo na casa do estudante local, onde esperava ter a solidariedade dos colegas mineiros. Bati e fui atendido por uns rapazes da faculdade de agronomia. Expliquei minha situação, mostrei a carteira da UnB e eles ficaram gozando com a minha cara. Um dizia pro outro:
     _E aí cara, o que vc acha, a gente deixa esse sujeito dormir aqui?
     E davam risada.
     Depois de alguns minutos percebi que não iam me abrigar e ainda estavam debochando da minha dificuldade. Saí caminhando pela rua, sem destino e sem dinheiro. Já era tarde. Passei num ponto de ônibus e vi uma família inteira dormindo enrolada em panos brancos. Percebi que não eram mendigos porque os panos estavam limpos e havia umas trouxas por perto. Eram retirantes e deviam estar vindo do nordeste, como eu, sem dinheiro, provavelmente rumo a São Paulo.
     Eu estava muito cansado e desanimado e senti naquela família, pai, mãe e filhos pequenos, uma possibilidade de encontrar um pouco do calor humano que eu precisava. O problema era não assustá-los. Me deitei bem quieto, perto de uma das crianças, e adormeci sem fazer barulho. Acordei com os primeiros clarões, me levantei em silêncio e parti, agradecendo mentalmente a acolhida involuntária daquela família.
     Com dificuldade consegui outras caronas que me levaram próximo à Belo Horizonte. Me lembro que anoiteci num posto de gasolina, na serra, fazia frio. Eu fumava e fui pedir um cigarro a um casal que estava jantando. O homem me tratou mal:
     _O que você quer?
     _Um cigarro, respondi.
     _pegue logo seu cigarro e saia daqui!
     Peguei  e saí pensando que talvez eu já tivesse tratado alguém necessitado com a mesma arrogância daquele sujeito. Quando o posto fechou um funcionário da lanchonete me deixou dormir em cima do balcão. De manhã me deu café com leite e pão com manteiga.
     De lá segui com minhas caronas até Paracatu, já próximo à Brasília. Uma camionete Chevrolet parou para abastecer, com uma família. Mostrei minha carteira de estudante e o homem falou:
     _Se você é mesmo estudante de arquitetura, me diga o teorema de Pitágoras!
     _A2=B2+C2, respondi sem titubear.
     Ele sorriu e me mandou entrar. Era um professor da UnB e me deixou na porta de casa. Cheguei na minha república extenuado, faminto, mas satisfeito. Eu tinha visto coisas que não conhecia. Vi a solidariedade dos pobres, o escárnio dos ricos, a falsidade dos discursos libertários dos maconheiros, vi um Brasil em movimento, vi a Bahia, com todas as suas alegrias e tristezas, sua compaixão e sua crueldade e senti que aquela noite em que dormi na rua entrei em contato com algo profundo, uma força que aquelas pessoas adormecidas me transmitiram e que eu nunca mais perdi, uma fé que me reconstruiu o sentido da existência.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf

terça-feira, 8 de junho de 2010

O Gueto de Gaza

     Os fins justificam os meios, dizem aqueles que acham que podem tudo.
     Os meios condicionam o fim, dizem os mais sábios, que sabem que por caminhos errados não se chega a nada de bom.
     O sonho judeu de reconstrução de uma pátria começou errado, com os terroristas de Menahen Begin explodindo hotéis, com hóspedes dentro, para forçar a saída dos ingleses e do seu mandato sobre a Palestina e expulsando famílias inteiras de suas casas para explodi-las em seguida, criando milhões de refugiados e expulsando um povo inteiro de sua terra.
     O holocausto não foi só de judeus, mas também de ciganos, de comunistas, de homossexuais e teria se estendido aos negros e latinos, considerados raças inferiores pela loucura nazista. E hoje essa imensa tragédia serve de desculpa para as atrocidades cometidas pelo Estado de Israel contra os palestinos e contra todos que os apoiem.
     Israel pode tudo, protegido pela grande irmão Estados Unidos, que dá guarida aos seus crimes. Não respeita nenhuma resolução da ONU, ao contrário, debocha das Nações Unidas bombardeando suas escolas e usando seus funcionários como escudos humanos em Gaza. Não se submete a Agência Internacional de Energia Atômica e todos sabem que tem armas nucleares, mas exige cinicamente que o Irã se submeta, que respeite as ONU e a AIEA.
     Decretaram o bloqueio à Faixa de Gaza, porque não gostaram que os palestinos tenham eleito um governo do Hamas, como se eles pudessem decidir quem vai ganhar as eleições palestinas.
     Agora sequestraram embarcações que levavam ajuda humanitária para romper o cerco à Faixa de Gaza, transformada em um triste remake do Guetto de Varsóvia (onde os nazistas mataram milhares de judeus lentamente, de fome) e ao matarem nove civis desarmados, ainda afirmaram que eles mesmos foram os culpados, porque tiveram a audácia de resistir ao sequestro.
     O impressionante é a conivência da grande imprensa. Ao sequestro de navios em águas internacionais, estão chamando abordagem com mudança de rota. Imagine se isto fosse feito pelo Irã ou pela Venezuela, como não estaria sendo chamado pelos nossos jornalões e pelas TVs submissas aos interesses do decadente império americano.
     Tristes tempos. E são esses os que dizem defender a democracia.
     Duas grandes forças atuam hoje na cultura humana; uma quer a união dos povos e outra insiste em manter nações armadas, dominadoras e militaristas.
     Graças a Deus estamos no primeiro grupo, nós que somos descendentes dos navegadores lusos que há 600 anos abriram as portas de todos os mares; dos tupis, por sua vez descendentes dos que descobriram e conquistaram o continente americano há mais de 40.000 anos e dos reis africanos, que resistiram a 300 anos de escravidão nas américas e que descendem, eles mesmos, da raça fundadora da humanidade, dos primeiros homo-sapiens que saíram da África para conquistar o mundo há mais de 200.000 anos.
     Somos herdeiros de muitos impérios, muitas conquistas e muitas derrotas também. Herdeiros de sofrimentos e guerras, aprendemos que a melhor maneira de viver é a paz e que só na fraternidade é possível construir um futuro. Os que pensam em vencer escravizando, dominando, conquistando, não aprenderam nada.
     Israel apenas repete nos outros, o que sofreu. Aprendeu com seus algozes a oprimir, matar, negar o direito de povos inteiros à vida. Não tem futuro, assim como não terão futuro os descendentes dos bárbaros que conquistaram Roma e ainda sonham com novos impérios.
     Israel se encaminha novamente para um desfecho trágico, porque seu povo escolheu o caminho errado, porque se tornou apenas instrumento de um projeto de dominação imperialista.
     Muito sangue ainda correrá até que a justiça seja feita e as coisas voltem para o seu lugar, até que os próprios judeus se libertem desse projeto sionista, expansionista e opressor, mas já passa da hora do Brasil mudar sua posição em relação à Israel. Está na hora de repensar as relações com um governo que age como bandido.

     Abraço a todos
     Ricardo Stumpf