Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

sábado, 15 de janeiro de 2011

Histórias de outras vidas (36)

     Seu Portinho

     Em 1975, voltei de um exílio voluntário na Europa e fui morar em Porto Alegre, com minha companheira. Ela, gaúcha, havia saído de lá para morar no Rio, onde a conheci. Depois fomos para a Bélgica onde ficamos um ano. Na volta decidimos ficar no Rio Grande do Sul e sua família nos recebeu muito bem.
     Me lembro que ao chegarmos, a guerra do Vietnã estava no auge e eu, que torcia pelos vietnamitas, tinha medo de comemorar, em plena ditadura militar, as vitórias que eles alcançavam contra os Estados Unidos.
     Um dia, ao ouvir no rádio que os comunistas finalmente estavam tomando Saigon e expulsando os americanos não me contive e disse:
     _Que coisa boa, precisamos comemorar! 
     Seu pai me olhou, então, como se estivesse me vendo pela primeira vez e disse:
     _Que bom, eu tenho um genro comunista!
     Pois é, Seu José Porto, ou Seu Portinho para os amigos, era um velho combatente da revolução brasileira dos tempos de João Goulart, e à partir desse dia ficamos muito amigos. Ele, porém, já havia sido ferido de morte pelo golpe militar. Haviam tomado suas tres casas na cidade de Alegrete e distribuído entre os ricos. Seu Porto teve a audácia de ganhar dinheiro numa cidade de grandes fazendeiros e famílias que se consideravam tradicionais e onde os pobres tinham que ficar recolhidos ao seu lugar. Ele, que era apenas um pedreiro autodidata, transformou-se num empreiteiro de sucesso e colocou as filhas no melhor colégio da cidade, junto com os velhos sobrenomes. Além disso era comunista, lutava pela justiça social numa época em que a esquerda sacudia as massas, mostrando que o povo não precisava se curvar à arrogância dos ricos, mas podia sim tomar o poder e construir um outro mundo, onde os burgueses não teriam lugar.
     Lula foi filho dessa luta. Sem ela, ele não teria sido possível. E mesmo agora que saiu do poder a imprensa golpista não lhe dá trégua, reclamando por ninharias como um secador de cabelo e um bangalô oferecido a sua família numa base militar. A velha direita não lhe perdoa por ter realizado no Brasil o sonho do operário no poder, que ousou melhorar a vida das massas trabalhador, num país de escravocratas.
     Pois é, depois de 64 tiraram tudo de Seu Porto menos sua coragem. Teve que bater em retirada para a capital com a família, no gigantesco êxodo rural que se seguiu ao golpe, causado em parte pela vitória dos grandes proprietários de terra que voltaram a pagar salários miseráveis no campo.
     Suas filhas herdaram sua coragem e disposição para o trabalho e logo conseguiram se aprumar. Uma virou enfermeira, outra funcionária pública e outra é hoje alta funcionária da Petrobrás. Seu filho mais novo é funcionário federal, embora na época fosse uma criança.
     De uma forma ou de outra todos se ajeitaram, mas o desencanto de Seu Porto, ferido na alma pela derrota para a direita e pelas injustiças que sofreu, até hoje os afeta. Nunca mais foi o mesmo, dizem, e se tornou uma sombra do que era. Talvez por isto alguns filhos não o perdoem, mas eu que o conheci já assim, entendi logo sua dor. Seu profundo senso de justiça não lhe permitia ser feliz naquele mundo de injustiças em que o Brasil se converteu. Era uma realidade dura demais para ele.
     Na impossibilidade de construir o mundo que sonhou, se dedicava a coisas divertidas nas horas de folga, como criar morcegos em uma caixa, no fundo do quintal, aos quais dava tocos de cigarro só para vê-los fumar até queimarem seus pequenos dedos. E como fumavam!
      Adorava cozinhar. Me chamava e dizia com enorme orgulho:
      _Vamos comer um arroz? Como se fosse a iguaria mais rara do mundo.
       Me ensinou a fazer arroz colocando água aos poucos e até hoje, quando ainda tenho a oportunidade de cozinhar, o vejo ao meu lado com sua alegria triste.
     Não era homem de muitas palavras mas sabia dar uns bons murros em que o ofendia. Sim, ele sabia ser violento quando acuado, mas sabia ser um pai zeloso que revelava aos filhos as verdades deste mundo.
     Nenhum de seus filhos, mesmo os que nunca compreenderam suas posições políticas, se tornou um alienado. Impossível se alienar convivendo com a derrota política dentro de casa. Alguns voltaram as costas para suas posições, outros simplesmente seguiram em frente ignorando como podiam sua dor, mas todos eles carregam em si a capacidade de se indignar com erros e injustiças, além do virus da sua inteligência perspicaz, capaz de advinhar nos menores gestos os preconceitos e as burrices crônicas entranhadas na cultura nacional, seja entre ricos ou pobres.
    São gente inteligente. Talvez não percebam, mas são dotados da melhor forma de inteligência que existe, a transmitida pela cultura de um pai, que os ensinou a observar e a enxergar as coisas que a maioria não vê, anestesiados pela televisão, neste Brasil ainda dominado pela velha burguesia, apesar dos governos ditos de esquerda.
     Seu Porto morreu cedo, como não podia deixar de ser. Carregava dentro de si tanto desencanto que fumava e bebia muito. O câncer corroeu sua garganta e levou primeiro suas cordas vocais, para depois devorar-lhe os pulmões. Mas antes de morrer me escreveu algumas cartas que guardo até hoje, como guardo a lembrança da amizade que nos unia. Nelas me falava de um outro mundo que estava vislumbrando em meio a sua doença. Ele, que nunca foi religioso, começara a ver através da realidade material um outro lado, espiritual. Mas não se encheu de piedade por si mesmo nem se arrependeu de nada, apenas aguçou seus olhos cansados e começou a ver do outro lado, mesmo antes da partida.
     Era sua inteligência se voltando para o desconhecido e já começando a ver o que a maioria dos mortais não via. Em 1986 ele se foi mas deixou plantadas muitas sementes de coragem, criatividade e especialmente de amor próprio, não por si mesmo, nem apenas pela sua família, mas pela humanidade que ele sabia ser capaz de se libertar das mentiras que a sujeitavam.
     Assim como soube inventar máquinas, nos seus tempos mais produtivos, assim como soube construir uma luta política e formar uma bela e unida família, junto com sua esposa que ainda nos alegra e sua velha mãe que se foi muito depois dele, Seu Portinho deixou marcas profundas na minha vida, me ensinando que cada passo é importante, que longas caminhadas se fazem lentamente e que a alegria de viver pode estar nas coisas mais simples, como uma panela de arroz. Mas principalmente, me ensinou que a arrogância é apenas uma arma, usada por aqueles que não aceitam que o povo seja dono de seu destino e que não é preciso se deixar abater por ela.

     Boa segunda-feira a todos

     Ricardo Stumpf Alves de Souza

    
    

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