Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 12 de setembro de 2010

Histórias de outras vidas (28)

    Reencontro

     Corria o ano de 1996, quando eu resolvi participar da conferência da ONU de habitação, Habitat II, em Istambul, na Turquia.
     Formamos um grupo de dez arquitetos, entre amigos da Bahia e de Brasília e fomos. O pessoal de Brasília arranjou a agência de viagens, que conseguiu ótimos descontos, e ficamos 10 dias em Istambul.
     Ao entrar na cidade uma emoção me subiu ao peito e fui reconhecendo tudo, como se já tivesse vivido ali. Ao passar embaixo de uns arcos de pedra de um aqueduto antigo, o sentimento foi muito forte, embora eu não entendesse o que estava acontecendo comigo. O hotel em que ficamos ficava perto desses arcos.
     Istambul é uma cidade linda, com 12 milhões da habitantes, cortada ao meio pelo estreito de Bósforo, com suas águas limpíssimas e azuis, que divide a Europa da Ásia. Assim a cidade se espalha pelos dois continentes, que se ligam por muitas pontes e por serviços de barcas de passageiros parecidas com as do Rio de Janeiro.
     Nos primeiros dias tentei participar da conferência, mas era uma chatice, cheia de autoridades de todo o mundo dizendo coisas que eu estava cansado de saber depois de tantos anos trabalhando com habitação popular.
     Então fui ver a igreja de Santa Sofia. Emoção total!
     A antiga igreja fica no meio de um parque, no centro de um gramado com pequenas ondulações. Passei um dia inteiro só olhando por fora. Sentava de um lado e ia vendo todos os detalhes, passsava pra outro lado e ia assim bebendo as informações que meus olhos conseguiam captar, sobre sua técncica construtiva, o que era mais antigo e mais novo, o que era um acréscimo, etc.
     No segundo dia me animei a entrar. A imensa cúpula de tijolos era tão alta que eu calculei que um edifício de 22 andares caberia debaixo dela, dentro da igreja. Ladeiras laterais abobadadas (em forma de túnel) levavam a pavimentos superiores.
     Me informando sobre a construção, soube que ela foi mandada fazer por Constantino, o imperador que dividiu o Império Romano em Ocidente e Oriente, dividindo também a igreja cristã em Católica Apostólica Romana e Ortodoxa (oriental). Isso ococrreu no ano 300 da era cristã.
     Portanto, a igreja teria mais de 1700 anos se não tivesse sido destruída por um incêndio e reconstruída por volta do ano 500. Pouca diferença. A velha igreja de Santa Sofia tem aproximadamente 1500 anos e seus tijolos ainda estão lá sustentando a maravilhosa cúpula, obra fantástica da arquitetura do mundo antigo.
     Com a conquista de Constantinopla (antigo nome de Istambul) pelo muçulmanos, a igreja foi transformada em mesquita, foram então construídos os quatro minaretes que a circundam e recobertos por um espesso reboco os maravilhosos mosaicos feitos pelos romanos que representavam o imperador como Cristo e outros membros da corte como santos. Quando estive lá Hagia Sofia já não era uma mesquita, mas um museu e o reboco estava sendo removido por restauradores e os desenhos antigos estavam começando a aparecer. Incrível.
     Alguns dias depois, acordei de madrugada com a sensação de que estava ouvindo uma música muito bonita. Mas não havia nada. Acordei meu companheiro de quarto e perguntei se ele tinha ouvido alguma coisa. Ele disse que não e me mandou dormir.
     Na noite seguinte acordei com a música de novo, mas desta vez ela ainda estava lá. Acordei meu colega e ele disse que também a ouvia. Fiquei encantado com a beleza, cantada por uma voz muito suave, as quatro da manhã, parecendo vir de muito longe.
     No café da manhã, uma jornalista brasileira me disse que também ouvira a música e me explicou que era o sacerdote muçulmano fazendo a primeira chamada para rezar, numa mesquita que havia alguns quarteirões do hotel.
     Na outra manhã, já intrigado com aquilo, resolvi ir conferir. Assim que clareou, por volta das cinco horas, saí por uma estrreita rua lateral que descia em direção à mesquita, uma cópia da Santa Sofia como são todas as mesquitas.
     Lá chegando fiquei observando como as pessoas agiam para entrar: tiravam os sapatos e lavavam os pés e as mãos numa fonte que havia na entrada. Os calçados ficavam na porta e ninguém mexia neles.
     Fiz do mesmo jeito e entrei, temeroso pelos muitas coisas ruins que ouvimos sobre o islamismo no Brasil, mas encontrei uma atmosfera de paz e silencio. Grupos de mulheres se reuniam na parte superior, enquanto no centro se concentravam os homens. Todos pareciam discutir os ensinamentos do Alcoorão, a Bíblia muçulmana.
     Fiquei muito impressionado com o tapete gigante que cobria todo o piso da mesquita, sem que eu pudesse encontrar uma só emenda. Como podem fabricar aquilo? Meus olhos de arquiteto também vasculharam seu interior e se maravilharam com o lustre, um aro circular, onde se prendem pequenas lâmpadas, pendurado por finos cabos de forma que parece flutuar sobre as nossas cabeças.
     Permaneci algum tempo no interior do templo, orando e meditando junto com aqueles homens e mulheres, que não me olharam, não me perguntaram nada, me deixando completamente à vontade.
     Dentro havia mulheres com vestes tradicionais, cobrindo-se dos pés à cabeça, todas de preto, outras com roupas cinzas mostravam os braços e ainda outras vestidas normalmente, com saias ou calças compridas, blusas coloridas, mas todas elas com o lenço na cabeça. Na Turquia não se usa véu para esconder o rosto.
     Novamente aquele sentimento de familiaridade tomou conta de mim e me emocionei mais uma vez.
     Dali fomos para a Grécia e vimos muitas coisas bonitas, mas nada que mexesse comigo daquele jeito.
     Até hoje sonho com Istambul, com suas torres às margens de águas tão azuis. Quando leio sobre os terroristas islâmicos, tenho certeza de que eles não tem nada a ver com aquela paz que eu senti. São extremistas, que usam o nome de Deus para matar inocentes, na sua luta contra os Estados Unidos.
     O Islã, na sua essência, não tem nada com isso. Acho que sei disso com muita profundidade. Acho que ja vivi lá um dia, em alguma vida e amei muito aquele lugar, aquela gente, aquela religião.

Boa segunda-feira à todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza

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