Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Histórias de outras vidas (41)


Pressentimentos na estrada


     Desde a minha juventude comecei a ter pressentimentos. Percebia quando alguma coisa grave havia acontecido, quando algo se aproximava, via objetos à distância, embora nunca tenha dado muita importância a isso, nem tenha conseguido alguma vez controlar esse dom. Era, e ainda é, uma coisa que se manifesta quando quer, de forma imprevista.
     Me lembro, quando morei um ano na Bélgica entre 1974 e 75, que tinha de esperar um tran, um pequeno bonde urbano, para ir para casa, em Bruxelas. Era o bonde 32 Forest, que demorava muito a passar a depender da hora. Às vezes, eu e minha companheira voltávamos tarde da noite para casa e o 32 levava 30, 40 minutos para aparecer. De tanto esperar aquele tran, comecei a perceber sua aproximação antes que ele fizesse a curva, depois da qual ficava o ponto onde o tomávamos.
     Eu dizia: ele já está vindo, vai virar agora, e voilá: lá estava ele.
     Muitos anos depois, quando me formei, em 1981, fui morar em Salvador e aluguei uma caixa postal numa agência dos Correios no shopping Iguatemi. Passava por lá pelo menos uma vez por semana (numa época em que não haviam, e-mails) e ao entrar no grande corredor que ia dar na agência, que se localizava ao fundo, imagens apareciam na minha mente com os objetos que me aguardavam lá dentro.
     Em 1984 morei alguns meses em São Paulo, onde fui procurar emprego. Alugava um quarto numa pensão e saía de manhã cedo para me candidatar aos anúncios que apareciam no jornal. À tarde não tinha o que fazer e frequentava a biblioteca Mário de Andrade, onde ficava lendo.
     Muitas vezes, durante a leitura, era assaltado por uma imagem. Um envelope me esperava na pequena mesa ao lado da porta da pensão. Corria para lá e lá estava o envelope, da mesma cor e tamanho que eu havia visto.
    Esses pressentimentos também se manifestavam em relação à pessoas. Às vezes a simples presença de alguém me causava enorme aflição, coisa que eu não entendia. Só mais tarde tinha condições de verificar que aquela não era uma boa pessoa, ou por ser oportunista, ou por ter sentimentos negativos, os mais diversos.
     Essa última qualidade foi se acentuando com o passar dos anos, o que me levou a uma certa necessidade de me isolar, já que muitas pessoas me causavam sensações desagradáveis de incômodo, principalmente em ambientes de trabalho.
     Ultimamente esse dom, que não sei se é benéfico ou não, tem se manifestado de outra forma muito desagradável: através da comida. Ao ingerir alimentos preparados por outra pessoa posso perceber os sentimentos que aquela pessoa tinha ao prepará-los. Assim frequentemente passo mal ao comer coisas feitas por pessoas com sentimentos ruins, sejam em relação à mim ou ao mundo. Uma pessoa que cozinha com raiva, ou com tristeza, me transmite sentimentos através da comida que prepara, o que me provoca constantes mal-estares. Daí às vezes eu preferir comer na rua ou preparar meus próprios alimentos.
     Como os leitores podem observar esse dom nem sempre é uma coisa boa, pois na maioria das vezes provoca transtornos, que não ocorreriam a quem não tivesse essa percepção. Mas pelo menos uma vez ele me salvou a vida de uma forma impressionante.
     Como sempre viajei muito de carro desenvolvi uma técnica de viagem que inclui muitas formas de prevenção de acidentes, como nunca ultrapassar sem ter certeza absoluta que não vem um carro no sentido oposto, manter um velocidade que considero segura para o veículo, a estrada e a hora em que estou viajando etc. Mas ma vez, há muitos anos, eu seguia de Salvador para Recife pela chamada Via Parafuso, uma estrada sinuosa que corta caminho pelo Pólo Petroquímico da Bahia. Era uma tarde, num dia de semana, e o dia estava claro, bem iluminado, a estrada vazia, o carro em ordem, tudo tranqüilo, me convidando para aumentar a velocidade e aproveitar a delícia de uma viagem despreocupada.
     Porém, aos poucos um sentimento de inquietação começou a me assaltar. Era uma angústia que eu não sabia de onde vinha. Primeiro pensei em algo que poderia ter acontecido à minha família ou a alguém próximo, mas logo tive a certeza de que não era isso. Era algo na estrada, algo indefinido, e o sentimento foi se acentuando e me levando a tirar o pé do acelerador, até reduzir a velocidade do veículo a pouco mais de 50 Km por hora. Até que ao atingir o cume de uma pequena ladeira, dei de cara com dois caminhões parados lado a lado, um na mão e outro na contramão. Eles haviam parado no meio da pista e desligado os motores. Os motoristas tinham saído e se afastado dos veículos como se estivessem esperando alguém vir em alta velocidade para se chocar e se preparassem para assistir à tragédia.
     Como eu vinha em baixíssima velocidade pude parar antes e fiquei observando aquela cena insólita. O motorista que estava estacionado na contramão, então, sorriu para o outro como quem diz “não deu certo”. Foi para seu caminhão e retirou-o da estrada.
     Nunca me esqueci daquele sorriso malicioso, de uma malícia assassina.
     Eles estavam decididos a matar alguém para se divertir. Depois poderiam alegar que tinha havido um acidente para, quem sabe, receber o seguro do caminhão.
     Agradeci a Deus, então, pelo dom que permitiu salvar minha vida daqueles assassinos de estrada e nunca mais deixei de prestar atenção nos sinais que recebo quando estou dirigindo.
     Às vezes, até hoje, recebo esses sinais de forma confusa: algo errado vem por aí. Então trato de me prevenir, parando um pouco para esticar as pernas, ou reduzindo a velocidade e redobrando a atenção.
     E até hoje também, não tenho a liberdade de escolher minhas amizades ou as pessoas do meu convívio, já que o pressentimento faz as escolhas por mim.



Boa segunda-feira a todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza

Um comentário:

Jailson S.Sousa (Aluno - Arquitetura) disse...

Fui tomado por sentimento de alta reflexão enquanto lia seu comentário.Na verdade eu até podia reverter estes escritos em sonoridade ... a marcante calma e paciência que consegui transmitir enquanto lidar com o compartilhar, ensinar, acompanhar!
Minha mente religiosa sempre fará associações quando o assunto é DOM, aceitando e comprendendo com a mais naturalidade suas experências que vai da alegria à tristeza.
Confesso que tive curiosidade como é suas reflexões ao lhe dar com as diversas pessoas de contato na sua vida profissional, principalmente na que estou diretamente envolvido , mas não vou atrever a perguntar.Entretanto uma de minhas filosofias diz que o bom intercale espiritual é o resultado da aceitação de ambas as partes, e até que me prove ao contrario é este o sentimento que me acompanha quando estamos na situação de fornecer e receber luz no nosso espaço acadêmico.