Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

sábado, 1 de janeiro de 2011

Sou índio

     Apesar do meu sobrenome meio alemão, meio português, tenho descendência indígena, de parte do meu pai, que era paraense. Como se sabe os índios do Pará não são tupi-guranis, mas do tronco Karib, que deu nome àquela parte do Oceano Atlântico que banha a América Central. Talvez pelas artes desconhecidas da genética que nos transmite o inconsciente coletivo, de que falava Young, eu tenha herdado um pouco da memória atávica deles.    
     Talvez por isto, quando eu era muito jovem, sonhava em ser índio.
     Sim, prezado leitor, meu ideal de vida era viver no meio da floresta, usando apenas o essencial, me dedicando a obter apenas o que eu precisasse para sobreviver e participando de uma comunidade, de seus rituais e dos papéis que reservasse para mim.
     Como homem jovem seria um caçador, depois escolheria uma linda cunhantã e teria filhos, índiozinhos que cresceriam livres brincando nos rios enquanto eu caçaria o seu sustento. Depois que envelhecesse, me tornaria um sábio que daria conselhos e por fim me afastaria para morrer em meio aos espíritos da natureza, que assim absorveria de volta meu corpo, me libertando dessa existência material.
     Desnecessário dizer que esse ideal se revelou impossível para mim, nascido numa família civilizada que esperava de mim outra performance, como curso superior, casamento burguês, dinheiro e prestígio. 
     Mas na prática, nunca fui nem um, nem outro.
     Sempre que me aproximei do sucesso ou da possibilidade de ter o tal prestígio e fortuna, me afastei em direção a mim mesmo, buscando dentro de mim o velho índio que me dizia que tudo aquilo não representava nada. E sempre que estudei (e gosto muito de estudar) foi para entender melhor o mundo e não para obter posições mais vantajosas na sociedade. Como os índios, nunca aceitei um saber fragmentado, mas sempre quis entender o cosmo do qual fazia parte, não aceitando que especializações me mantivessem dentro de um escaninho estreito de conhecimentos, como se o resto do mundo não me interessasse.
     A rigor tudo me interessa, mas nada que me interesse pode me afastar do amor pela minha própria liberdade e desprendimento. Assim, pertenço a tudo e ao mesmo tempo não pertenço a nada, o que provoca reações irritadas de incompreensão entre os que esperam de mim atitudes  ditas normais de luta pelo poder ou de preservação de prerrogativas conquistadas.
     Apenas uma coisa me fascina nesse mundo dos não índios, que é conhecer e procurar transmitir o conhecimento aos mais jovens. Talvez por isso, ser professor foi uma das experiências mais gratas da minha vida, assim como ser pai.
     Cuido dos meus filhos, a quem procuro abrir a cabeça para que não se transformem em idiotas egoístas, mas em participantes lúcidos, pelo menos conscientes desse universo do qual fazem parte.
     Quase sempre tive sucesso nessa empreitada, embora amargue pelo menos um insucesso com um filho que não me compreende, mas ainda tenho esperança de que isso possa mudar, porque a compreensão é aliada do tempo e vem com ele, apesar de tudo.
      Por isso também escrevo, porque escrever é uma forma de transmitir as coisas que já vivi e também de aprender, pois ao compor as palavras, as idéias vão se arrumando na cabeça da gente e tomam forma de entendimento, embora ninguém esteja livre de errar e escrever bobagens.
     Dia 27 de dezembro assisti a uma entrevista no programa Roda Viva da TV Brasil (muito bem repaginado agora, sob o comando de Marília Gabriela) com a crítica de teatro Barbara Heliodora e ela falou uma coisa que me fez pensar muito. Disse que a sociedade brasileira vive um momento de tensão entre posições políticas, ideológicas, éticas e morais.
     Concordo com ela e confesso que enxergar isso com tanta naturalidade me fez ver que não é necessário se angustiar tanto e que é possível vivenciar essa situação numa sociedade democrática, de forma mais tolerante e ir levando nossas posições, na dialética do debate, embora os que eu considero meus adversários, nem sempre pensem assim.
     E quem são esses adversários? Com certeza são aqueles que acreditam numa sociedade de empilhamentos e vertigem. Explico: são aqueles que acham que ser feliz é empilhar coisas, seja dinheiro numa conta bancária, sejam troféus da fama em qualquer ramo de atividade, seja acumular poderes. São  também os que acreditam nas vertigens da sociedade do espetáculo e das celebridades, da velocidade e das drogas, das ilusões do consumo e das aparências.
     Mas na minha contradição de meio índio numa sociedade que se pretende europeizada, admiro muito o progresso da ciência e da tecnologia e procuro lutar pelo meu país. Sou, portanto, um guerreiro, mas não não sei competir por meus próprios interesses, embora saiba ir à guerra por minha tribo. E infelizmente esses que considero meus adversários só pensam em competir por si próprios e não pela nação, o que gera o embate político-ético-moral, que citei anteriormente.
     A todos eles olho com muita pena, porque acho que não vão a lugar nenhum  e enquanto, como meio-europeu, sonho com a poesia aventureira do meu lado português e sigo em frente com a determinação do meu legado alemão, minha alma índia se entristece e se recolhe, cismando, e pedindo apenas que enterrem meu coração na curva do rio,
Boa segunda-feira a todos

Feliz 2011.

Ricardo Stumpf Alves de Souza


    

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