Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 26 de dezembro de 2010

Histórias de outras vidas (35)

   Araripe

     O lugar? Araruama. O ano? Talvez 1956 ou 57.
     Pra quem não sabe, Araruama é um município no litoral norte do Estado do Rio, cuja sede se situa às margens de uma imensa lagoa salgada, do mesmo nome. Nessa época, a Lagoa de Araruama ainda era cheia de salinas, com seus diques rasos e seus cataventos.
     Passávamos dois ou três meses por ano por lá, nas férias de verão, enquanto meu pai permanecia trabalhando no Rio, indo ao nosso encontro nos finais de semana.
     Nossa casa ficava na saída para São Vicente, em meio a um coqueiral. Os constantes ventos nos livravam de qualquer praga de mosquitos e passávamos dias maravilhosos naquela pequena chácara, de mais ou menos um hectare, onde tínhamos um cavalo e uma charrete, que nos levava aos banhos na lagoa.
     Minha mãe tinha parentes por lá, uns primos, o que nos dava um suporte familiar naqueles dias em que ficávamos longe de meu pai.
     Pois justamente esses parentes é que nos apresentaram Araripe. Ele era engenheiro naval e trabalhava em Niterói, nos estaleiros que já haviam por lá. Os estaleiros fluminenses são muito antigos e tem uma tradição que remonta à época da colônia.
     Naquela época não havia a ponte Rio-Niterói e quem trabalhava do outro lado da baía de Guanabara, precisava morar por lá mesmo. De Niterói a Araruama eram apenas 80 Km, pela antiga rodovia Amaral Peixoto, uma faixa estreita de asfalto precário e esburacado.
     Araripe tinha uma casa de veraneio em Araruama, para onde, suponho, fugia nas suas folgas, já que naquela época Niterói não apresentava grandes atrativos. Mas não era uma casa qualquer.
      Sendo um solteirão, de cabelo cortado à escovinha, como se dizia, típico dos militares, ele se dedicava a inventar coisas, que até hoje me parecem incríveis, e que eram mais incríveis ainda para a época, no atraso em que vivíamos no Brasil.
     Foi com ele que andei pela primeira vez num fusca. Era um daqueles primeiros modelos importados no pós-guerra, com duas janelinhas traseiras. Nos mostrava orgulhoso o engenho alemão com motor traseiro refrigerado a ar: uma novidade.
     Foi nesse modelo antigo dos primeiros volkswagens, que fui visitar sua casa, com minha mãe e uma prima. Me lembro que era uma rua larga, de areia, como quase todas na cidade, e que ficava ao final, à direita. Paramos em frente a um galpão, que mais parecia um depósito. Ao entrarmos: surpresa! Não havia nada. Apenas um chão liso e vazio com um banheiro e uma cozinha. 
     Araripe então apontou para o teto, onde pudemos observar muitas coisas estranhas. Estruturas metálicas e engrenagens, junto com alguns painéis de madeira. Depois foi para uma parede, onde havia uma espécie de painel de controle e começou a apertar alguns botões.
     De início acionou os painéis de madeira, que para surpresa minha foram descendo e se inclinando até se tornarem as paredes internas da casa. Em minutos, o galpão vazio, tinha sala e quartos. Depois, acionando outros botões, começaram a brotar os móveis das paredes, camas e mesas com cadeiras, se desdobravam, como por encanto, e em minutos a casa estava mobiliada.
     Claro que os móveis eram todos presos entre si e não se podia arrastá-los.
     Araripe ria do nosso espanto. Depois acionou novamente os botões e os móveis se recolheram para dentro das paredes e as paredes subiram novamente, deixando o espaço vazio de antes.
     Parecia coisa de filme americano.
     Algum tempo depois ele resolveu fazer um carro. Desmontou um velho ford 1929 e remontou-o, com muitas partes novas fabricadas por ele mesmo, dando origem a uma especie de jipe, muito simpático. Mas aí teve um problema: na hora do emplacamento a prefeitura exigiu que ele declarasse a marca do veículo. Como ele mesmo era seu criador, inventou uma marca que não foi aceita. Então os técnicos do departamento de trânsito local, fazendo uma inspeção detalhada no veículo, concluíram que a maioria das peças era fabricada pela Ford, e que por isto, esta marca prevalecia. O jipinho foi registrado como um Ford e foi exigido que ele fosse identificado como tal. Não se conformando com essa decisão, Araripe inverteu as letras na dianteira e batizou o seu carrinho de DORF, com o qual circulava alegremente pela cidade.
     Em 1960, nos mudamos para Brasília e nunca mais soube dele, mas até hoje me lembro da sua capacidade inventiva e tecnológica, tão pouco estimulada no Brasil.
     Quamtos talentos como ele não se perderam e ainda se perdem por aí, num país ainda submetido a interesses estrangeiros, que não querem nossa emancipação tecnológica?
     Até hoje não temos uma marca nacional de automóveis. A única que tivemos, a Gurgel, fechou em 1986 e já fabricava carros elétricos que agora são apresentados como novidade por aqui.
     Quando teremos uma verdadeira política industrial que incentive a inovação e estimule a criação de marcas nacionais, ao invés de montar, sob licença, produtos desenvolvidos no exterior? Até lá, quantos Araripes viverão no anonimato por aí, brincando de fazer suas invenções em casa?

Boa segunda-feira à todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza

    

Um comentário:

micaele disse...

Lucy:Muito bom ter relembrado os velhos tempo,lembrei de tudo quando a Micaele leu para mim o seu blog.E uma pena que perdemos o contato com Araripe,Eunice minha prima disse que acha ele faleceu.Enquanto a Dilma nao me surprendeu pois ela e inexpressiva.José de Alencar e muito bonita essa vontade de viver a dele.E ele esta vencendo,ele tem amor a vida e muito bom gostar de viver e ele gosta.