Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 14 de novembro de 2010

Histórias de outras vidas (32)

   Primeiro de Abril

     Vivíamos um clima de incertezas no Brasil daquele início de 1964, com o governo João Goulart indo cada vez mais para a esquerda, em tempos de guerra fria, e já se falava abertamente que os comunistas iriam tomar o poder no Brasil.
     Eu morava na 105 sul, uma superquadra de classe média em Brasília, onde viviam os funcionários do IAPI, como meu pai. Tinha acabado de fazer 13 anos e estava namorando pela primeira vez. Era uma menina chamada Elça. Sim, a paixão meia infantil brotara entre a turminha da quadra e eu não parava de pensar nela, que por sua vez, parecia corresponder e as amigas me mandavam recadinhos sugerindo que o caminho estava aberto.
     Foi numa quermesse do Colégio Marista que eu tomei coragem. Depois de dedicar-lhe uma música pelo alto-falante, o que gerou muitos comentários na turminha, chamei-a e disse que queria conversar. Sob olhares excitados de amigos meus e amigas dela, fomos para um canto e tomei coragem, finalmente, dizendo que queria namorar com ela.
     Era assim naquela época, pedia-se para namorar. Ela aceitou e voltamos já de mãos dadas, gerando um frisson na turma.
     Namoro era por etapas. Primeiro pegava-se na mão, depois podia-se abraçar e convidar a ir ao cinema, onde até podia rolar um beijinho. Beijo na boca era mais demorado, só depois de uns 15 dias ou um mês. Sexo nem pensar. O máximo era acariciar o seios da menina e mesmo assim muito discretamente.
     No início de 1964 as mulheres ainda sonhavam em se casar virgens no Brasil e a menina que transava caía logo na boca de todos como galinha, ficando relegada a um plano inferior pelos rapazes, destinada apenas a entretê-los, sem poder sonhar em encontrar um marido que a respeitasse.
     A turminha se reunia debaixo dos blocos da quadra e Elça morava no Bloco 1, na extremidade inferior da quadra, perpendicular ao eixo rodoviário sul. Ligando os blocos uma enorme garagem, cuja laje superior servia como local de brincadeiras e encontros para os jovens da quadra. Era ali, na muretinha sobre a garagem que nos sentávamos, eu e ela, para namorar, junto com o restante da turma.
     O pai de Elça era deputado da bancada do governo e portanto visto como comunista pela classe média local, temerosa de perder seus privilégios se ocorresse um possível golpe comunista, num tempo em que esses golpes se sucediam pelo mundo e os comunistas fuzilavam os burgueses responsáveis pela exploração do povo, segundo eles.
     Num tempo em que a indústria automobilística nacional estava começando, nossos pais tinham DKWs, Aero-Willys e Simca Chambords, mas o pai de Elça tinha um carro muito diferente, um Rambler americano, carro médio, num tempo em que os americanos fabricavam aqueles carrões imensos.
     No dia 31 de março, tinha havido muita movimentação em Brasília. Minha mãe, funcionária do Congresso Nacional, tinha me levado para assisitr os debates das galerias da Câmara, quando pude ver os discursos do líder das ligas camponesas, Francisco Julião e do lacerdista Padre Godinho, e o debate acalorado que se seguiu entre eles. Havia uma eletricidade no ar e todos espervam que alguma coisa acontecesse. 
     No dia primeiro de abril, passamos a tarde toda na laje da garagem, eu, Elça, Lige (Luis Antonio), Geraldo (Costa Manso), Claudia e outros que não me lembro bem e que iam e vinham.  
     Os aero-willys pretos do governo passavam velozes pelo eixão a toda hora, sinal de que os governantes estavam nervosos. Quando anoiteceu, pudemos observar o Coronado da Varig, o avião mais moderno da época, pousar e estacionar no aeroporto, mantendo suas luzes piscando. Sim, naquela época se via o aeroporto dali, o que hoje é impossível devido as quadras que foram construídas. 
     Indiferentes a tudo, na irresponsabilidade dos nossos 13 anos, brincávamos que a coisa estava esquentando. Foi quando Elça se virou e nos disse com a graça que era sua característica: Mas quem vocês pensam que já está no poder? Os comunistas claro! Concordamos todos, mesmo que alguns o fizessem a contragosto, refletindo opiniões de seus pais, pois a situação parecia completamente definida.
     Naquela mesma noite, um daqueles aero-willys passou por ali ventando, com João Goulart a bordo, para pegar o seu Coronado, que o levaria à Porto Alegre, de onde partiria para o exílio, do qual nunca retornaria com vida.
     Na manhã do dia 2 de abril a cidade amanheceu tomada por tanques do exército. A hesitação de Goulart dera tempo à direita de organizar a contra-revolução e executar o golpe, instalando em nome da democracia, a ditadura que marcaria nossas juventudes e nossas vidas. Depois mudaram a data do golpe para 31 de março para não pegar mal.
     O pai de Elça se exilou numa embaixada e nunca mais a vi. O dia primeiro de abril de 1964 foi a maior mentira da nossa história, uma mentira trágica que mudou nossas vidas para sempre.

Boa segunda-feira a todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza

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