Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

sábado, 2 de outubro de 2010

   Histórias de outras vidas (30)
   
   O canto na gruta

     Corria o ano 2.000, quando minha amiga Hanne veio do Rio Grande do Sul para fazer um passeio na Chapada Diamantina, na Bahia..
     Nessa época eu morava em Conquista e tinha uma velha camionete Ford Pampa. De lá saímos e fizemos um circuito grande, passando primeiro pela barragem de Anagé, depois Livramento e Rio de Contas, com todos os passeios que existem por lá.
     De lá saímos bem cedinho em direção à Jussiape, quando a estrada ainda era de terra, onde fomos conhecer um fantástico painel de pinturas pre-históricas. Um sujeito muito interessante nos levou lá pra ver. Ele era uma espécie de adido cultural do município, por conta própria. Era cineasta, tinha um museu particular que tinha cedido à Prefeitura e era também guia turístico. Realmente o interior do Brasil tem coisas incríveis. Num lugar tão pequeno e esquecido como aquela cidade, ali estava a inquietação cultural a nos esperar e guiar para ver aquela maravilha.
     Depois de rodar por pequenas estradas de terra, esburacadas, escalamos uma encosta íngreme e fomos dar numa imensa rocha, que formava um abrigo, sob o qual estava o painel. Um espetáculo! Figuras em vermelho, ocre e preto se misturavam na pedra empoeirada, protegida por um enorme enxame de abelhas que nos obrigava a andar cuidadosamente em silêncio.
     Curioso como em todos os sítios rupestres que conheci, lá estavam elas, as guardiãs da mensagem dos tempos pre-históricos: abelhas.
     Depois de caminhar por ali algum tempo, me sentei numa pedra e fiquei observando o painel, tentando entender aquelas figuras que pareciam brincar na minha frente. Figuras humanas, riscos aparentemente sem sentido, figuras de animais como cervos, e outros até que, de repente, ficou bem clara na minha frente a figura de nítida de um ...mamute. Sim, não podia haver dúvida. Muito bem desenhado, em vermelho, lá estava ele, o representante da megafauna, dada como desaparecida há pelo menos 5.000 anos no Brasil.
     Mas teria tanto tempo assim aquela pintura, bem à nossa frente?
     Um recado direto de alguém que viveu ali há milênios.
     No dia seguinte rumamos para Mucugê e Igatu. Depois fomos visitar as grutas do Poço Encantado e o Poço Azul, já no município de Itaetê. Engraçado: o Poço Encantado é que é azul e o Poço Azul é verde. Não entendo. Eu já conhecia o Encantado, mas desci com minha amiga. Lá nos encontramos com uma excursão que havia descido antes. Eram alemães e em determinado momento todos se sentaram sobre as pedras e ficaram admirando a extraordinária luz que entrava pela abertura acima da caverna, formando aquela imagem tão conhecida do facho de luz na água e que só acontece em determinada época do ano.
     De repente, uma das alemãs começou a cantar. Sua voz foi crescendo na gruta enquanto todos silenciavam e surgiu então uma lindíssima ária em alemão, numa voz fantástica. Arrepio geral. Não sei quantos minutos durou, mas quando cessou todos permaneceram, em silêncio, conscientes de que haviam presenciado um momento único.
     De lá fomos para Lençóis e depois Itaberaba, onde visitamos outro painel na chamada Pedra de Itaberaba, este um pouco depredado por visitantes que insistem em riscar seus nomes sobre as antigas inscrições. Nenhuma dessas inscrições tinha nenhuma proteção, a não ser a das abelhas, que também estavam em Itaberaba.
     A Chapada Diamantina, além de suas belezas naturais que encantam os turistas é também um testemunho de civilizações antigas que nos antecederam. Daquelas pedras imensas, os espíritos de nossos desconhecidos ancestrais  parecem nos olhar e não entender o que fazemos com a natureza e com os fabulosos recursos tecnológicos de que dispomos.
     Para quem viveu vidas tão primitivas quanto eles e foram capazes de nos deixar obras tão belas, feitas com a finura e a sensibilidade de verdadeiros artistas, só o canto na gruta talvez tenha sido uma resposta adequada à solidão de suas almas.

Boa eleição à todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza
    

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