Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 17 de outubro de 2010

 História de outras vidas (31)

 Hair e a menina rica

     O ano era 1970. A cidade São Paulo.
     Eu havia ido tentar o vestibular em São Paulo e além do cursinho, me matriculei também na Escola Panamericana de Artes, onde comecei um curso desses que ensina desenho a mão livre, croquis, desenho à carvão, etc, que me ajudaria a passar nas provas específicas da Faculdade de Arquitetura da USP.
     Vivendo de uma magra mesada que meu pai me mandava, eu morava em pensões e circulava de ônibus por uma cidade que passava por uma revolução urbana, causada pela construção da primeira linha do metrô e de grandes avenidas que acompanharam a implantação da indústria automobílística no Brasil.
     Vindo de Brasília, onde a elite era composta de funcionários públicos com uma boa renda, mas com as limitações naturais da classe média, fiquei chocado ao conviver no curso Anglo-Latino com filhos da classe alta paulistana,  que exibiam um nível de luxo a que poucos estavam acostumados na época.
      Apesar do meu orçamento apertado, economizava dinheiro para ir a teatro e cinema, atividades culturais que sempre me despertaram muito interesse.
      Na Escola Panamericana, também muito elitizada na época, conheci uma garota muito bonita e simpática. Não lembro seu nome, mas nos aproximamos e surgiu um interesse mútuo cultivado em meio as conversas sobre arte.
     Eu pensava em convidá-la para sair mas não sabia como, já que ela fazia parte de uma turma cheia da grana, que chegava e saía do curso em carrões. Uma vez ela me convidou para uma festa e ingenuamente fui. Não conhecendo São Paulo procurei a rua e a casa, sem perceber que estava num dos bairros mais caros da capital paulista, e fui parar numa imensa mansão. A festa à beira da piscina estava lotada de jovens, inclusive alguns que conhecia de vista do cursinho, do mesmo estilo.
     Falavam e riam alto, criticando os mais pobres, os cafonas na gíria da época e falavam de carros, viagens à Europa e Estados Unidos, exibindo sem nenhum pudor suas riquezas e o poderio econômico de suas famílias.
     Apesar da gentileza com que a moça me recebeu me senti muito mal e acabei ficando isolado, temeroso de ser objeto de zombarias daquelas pessoas tão arrogantes e acabei indo embora à pé, do mesmo jeito que havia chegado. No outro dia, no curso, ela me perguntou o que tinha acontecido e dei uma desculpa qualquer, mas continuava interessado em convidá-la pra sair. O que fazer?
     Nessa época estreiou em São Paulo a versão brasileira do musical americano Hair, onde a grande novidade é que os atores ficavam completamente nus em uma cena. O ingresso era bem caro mas economizando aqui e ali, achei que dava para convidá-la. Assim, poderia sair com ela para um espetáculo que fazia parte do nosso assunto predileto (arte) e que estava na vanguarda das transformações que motivavam a juventude da época, inclusive daqueles abestalhados ricos amigos dela, que naturalmente só se interessavam porque era uma coisa que estava na moda e vinha dos Estados Unidos, sem nem mesmo compreender o viés crítico à sociedade americana da peça.
     Mas como levá-la à peça se não tinha carro, nem dinheiro para um taxi? Era o ingresso ou o taxi, não dava para os dois. Resolvi então partir para a originalidade e me coloquei como realmente era, um estudante sem dinheiro, amante das artes e bem interessado nela e a convidei para partilhar um pouco do meu mundo saindo comigo de ônibus, à noite, pelas ruas esburacadas de uma São Paulo em obras.
     De início surpreendida, ela acabou aceitando o convite, curiosa por essa experiência que seria sair com um cara sem dinheiro como eu, que se mostrava como era, tão diferente dos playboys a que estava acostumada.
     Fui buscá-la na sua mansão vestindo uma simples calça Lee branca (onde foram parar as jeans brancas e as Lee de veludo, tão bonitas e esportivas?) e uma camiseta Hering. Sua mãe fez questão de vir me conhecer e pareceu agradavelmente surpresa, talvez porque eu realmente sabia ser um rapaz bem educado.
     Saimos, pegamos o ônibus e fiz questão de pagar seu (caríssimo) ingresso no teatro. Tudo parecia ser uma novidade para ela. Olhava as pessoas no ônibus com interesse e um pouco de comiseração, como se nunca tivesse se aproximado de gente pobre, ou simplesmente de gente comum.
     Adoramos a peça e me lembro que na volta um homem desmaiou no ônibus. Ele estava sentado em um banco e numa curva, simplesmente caiu e ficou desacordado. Ela se levantou e correu para socorrê-lo, demonstrando compaixão e revolta por ninguém se mexer para ajudá-lo.
     Ajudei-a a levantar o sujeito e voltamos conversando animadamente até a sua casa. Ela estava muita excitada com sua aventura, parecia ter descoberto um novo mundo e me olhava com admiração, o que me enchia de orgulho. Mas ao invés de nos aproximar, tudo aquilo pareceu nos afastar mais, como se eu houvesse adquirido uma aura de herói que ela não quisesse destruir com um romancezinho comum. Nos despedimos assim, sem um beijo sequer.
     Depois disso não consegui mais pagar a escola de artes e saí do curso. Logo depois, enjoado de conviver com tanta gente idiota no cursinho, resolvi deixar São Paulo e retornei à Brasília, onde passei no vestibular da UnB, em 1971, para arquitetura.
     Nunca mais soube dela, mas quando vi o filme Hair, de Milos Forman (uma beleza de filme) no início dos anos 80 e agora que soube que o musical está de volta ao teatro em São Paulo, não pude deixar de me lembrar.
     Onde andará aquela que era uma moça bonita da Escola Panamericana em 1970? Que reflexos terá tido sobre sua vida a noite mágica, em que misturamos a realidade de uma São Paulo empobrecida e em transformação, com a riqueza cênica daquele musical, que nos anunciava novos tempos?

Boa segunda-feira à todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza
    
(Para saber mais sobre a montagem de Hair naquela época entre no link: http://amusicanoar.blogspot.com/2007/09/hair-soundtrack-brazilian-version-1969.html )
    
    

    


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