Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

sábado, 14 de abril de 2012

Jorge Querido:
Um demorado olhar sobre Cabo Verde

     Foi por pura sorte, que eu bati os olhos neste livro (Chiado Editora, Lisboa - 2010), no Cyber Café Sofia, no centro de Praia, em Cabo Verde, enquanto procurava algo sobre o país para comprar. Logo nas primeiras páginas vi que tinha acertado no escuro.
     A partir daí mergulhei na leitura, que ia me revelando as faces ocultas deste país que me fascina há tanto tempo, sua história, suas contradições, a luta pela independência, à busca por uma identidade nacional e a difícil construção da nação após 1975.
     Confesso que me identifiquei logo com a maneira de Jorge Querido olhar o mundo; um olhar não-alinhado, sem compromisso ideológico, sem medo de criticar quem quer que fosse, mas cuidadoso para não ofender, não ser injusto, nem pretensioso. Um olhar sem pressa, sem medo de ser demorado, como diz o título, mas que não abusa do tempo do leitor. Com um distanciamento ético, mas ao mesmo tempo comprometido com a verdade e com a luta em favor das coisas em que acredita.
     Jorge começa nos brindando com uma descrição física das ilhas de Cabo Verde, que me introduziu logo num conceito até então desconhecido para mim, o de equador metereológico, que numa simplificação pode ser descrito como a linha que divide os ventos do hemisfério norte e de hemisfério sul. Situando o arquipélago neste fenômeno, o autor nos explica a escassez de chuvas, além de descrever a aridez do solo à partir da formação vulcânica das ilhas.
     Essas duas características explicam uma das maiores dificuldades econômicas da nação, a impossibilidade de desenvolver uma agricultura sem água e terras férteis, coisa muito estranha para nós brasileiros, acostumados à fartura desses elementos.
     Depois Querido nos fornece uma história detalhada do brutal sistema de exploração colonial imposto pelos portugueses, durante os mais de 500 anos de dominação que exerceram sobre as ilhas, inclusive com dados escabrosos sobre os períodos de fome que assolaram Cabo Verde, até meados do século XX, e da emigração forçada de sua população até poucos anos atrás, para servir de mão de obra semi-escravizada nas plantações de Angola e São Tomé e Príncipe, outro arquipélago sob domínio português, mas ao sul da costa ocidental da África (situação que foi objeto da minissérie Equador exibida pela TV Brasil em 2011).
     Os períodos de fome descritos são os de 1580-1583; 1590-1594; 1609-1611; 1685-1689; 1704-1712; 1719-1721; 1730-1732; 1738-1740; 1741-1742; 1745-1746; 1748-1750; 1754-1755; 1764-1765; 1773-1775, sendo que nesta última teriam morrido 30.000 dos cerca de 70.000 habitantes.
     Seguem-se ainda as fomes de 1804-1806; 1810-1814; 1824-1826; 1830-1833; 1901-1904; sendo que apenas em 1903 teriam morrido mais 14.000 pessoas; 1911-1915; 1916-1918; 1920-1923; 1941-1943 quando teriam morrido mais de 40.000 pessoas e 1947-1948 com número semelhante de vítimas.
     O que impressiona nesses números é sua constância e a falta de atitude da potência colonial, que ao invés de tentar mitigar o problema, se aproveitava dele para forçar a migração de caboverdianos para as roças do sul em condições de semi-escravidão, o que faz disso quase uma política de Estado, um verdadeiro genocídio planejado e exercido ao longo de tantos séculos, sem que houvesse conhecimento do resto do mundo, ou pelo menos sem que o mundo se indignasse. 
     Outra questão muito interessante, que o autor aborda longamente, é a do surgimento de um grupo de intelectuais no arquipélago, à partir da fundação de alguns colégios nas ilhas de São Nicolau e São Vicente já no final do século XIX, grupo este que desembocou num movimento nativista representado por uma revista literária, intitulada Claridade já nos anos 1930. Este grupo foi a base de uma burguesia mestiça, que se dizia descomprometida com seu passado africano e alinhada com as idéias européias,  a ponto de afirmar que Cabo Verde não pertencia à África, mas era um extensão natural da Europa, assim como as ilhas Canárias e os Açores.
     Essa elite que se proclamava crioula, e proclamava ser agente de uma cultura nova, foi contemporânea das idéias racistas do nazi-fascismo, muito difundidas na época e tema de alguns livros de Gilberto Freyre, que se encarregou de desmenti-las, inventando um tal luso-tropicalismo, muito ao gosto da ditadura fascista de Oliveira Salazar, que propagava aos quatro ventos a miscigenação racial com uma obra civilizatória portuguesa no mundo, teoria muito difundida no Brasil e até hoje repetida por gente no mínimo desavisada, e que servia muito bem aos desígnios coloniais portugueses.
     Jorge Querido é o primeiro intelectual sério que vejo fazer uma crítica pertinente a Gilberto Freyre, que é quase um mito para nós brasileiros. Confesso que nunca consegui ler Casa Grande e Senzala, constrangido pelo debate dessas teorias racistas, embora Freyre o faça no sentido de negá-las. Mas me parece que apenas o fato de considerá-las, já nos soa hoje em dia um absurdo tão grande, que discuti-las seria uma perda de tempo. Também em Sobrados e Mocambos, Freyre faz uma análise romântica do papel da mulher brasileira, na época extremamente oprimida, que me repugnou. Por isto foi com um sentimento de libertação que li a crítica a Freyre, feita por Querido, que o coloca como amigo pessoal de Salazar e que teria ajudado muito a política colonial portuguesa a sobreviver tanto tempo, através de suas teorias do luso-tropicalismo, do homem cordial brasileiro, e outras bobagens.
     Fico me perguntando se o tropicalismo de Caetano e Gil, lançado no período mais agudo da ditadura brasileira, com a mesma intenção alienante, não teria a mesma origem. Aliás, atribuo muito mais a Caetano que a Gil essa orientação, coisa que pode ser lida com clareza nas letras das músicas desses autores baianos. Gil tem uma constância crítica na leitura da realidade em suas letras, que contrasta e choca com a alienação das músicas de Caetano, cujo artigos publicados atualmente no jornal A Tarde, de Salvador, comprovam seu comprometimento com a direita, disfarçado de anarquismo (o que não diminui a qualidade da sua arte).
     Querido depois nos dá um panorama das lutas pela independência, levadas à cabo junto com a Guiné Bissau, território situado em frente ao arquipélago, no continente africano, resultando na independência da Guiné Bissau e Cabo Verde, como um só país, até 1980, quando um golpe de estado na Guiné precipitou a separação dos dois territórios, aprofundando diferenças já existentes no antigo Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
     Este partido, passou a governar no sistema de partido único após a independência e depois da separação deu origem ao PAICV que governou Cabo Verde dentro do sistema de planejamento estatal até a queda do socialismo no leste europeu, na década de 1990, quando veio a abertura política também nas ilhas.
     O país passou então por processo semelhante ao do Brasil, com a ascenção do neoliberalismo, através do governo do MpD (O PSDB deles) que privatizou tudo, entregando as empresas construídas com tanto sacrifício pelo povo caboverdiano a portugueses e outros estrangeiros. Na verdade, Querido relaciona os privatistas com um grupo de trotskistas, convertidos ao neoliberalismo (como sempre) e às teorias do grupo de intelectuais da revista Claridade (que ele chama de Claridosos), que ainda hoje preferem ser portugueses, renegando suas origens africanas.
     A privataria caboverdiana foi tão ruinosa, ou mais, do que a nossa, eivada de corrupção e prepotência, em que os governantes procuravam mostrar aos parceiros internacionais  "que... esconjuraram de facto e de vez toda e qualquer intervenção do Estado como agente econômico; que são fiéis, leais, confiáveis e cumpridores escrupulosos dos compromissos assumidos junto dos seus "protectores", ainda que para isso tenham que sacrificar alguns interesses dos seus próprios cidadãos; que estão completamente abertos e prontos a entregar todo o seu incipiente sector produtivo e não só nas mãos de estrangeiros "amigos" de que gostariam de poder ser incondicionais servidores e valorosos defensores..." .(p. 297)
     Assim como no Brasil, o governo dos neoliberais quase levou Cabo Verde à falência e deu lugar à volta do PAICV,  devidamente reciclado, que respeitou os contratos assinados, mantendo as privatizações (algumas criminosas) mas restabelecendo o equilíbrio macroeconômico e a seriedade nas contas públicas, resgatando o país da pré-insolvência.
     Qualquer semelhança com o PT não é mera coincidência.
     Nas suas considerações finais Jorge Querido expõe as qualidades e fraquezas de seu país, do seu ponto de vista e, sem querer, visto por um brasileiro como eu, acaba dando razão aos que dizem existir uma lusitanidade na sociedade caboverdiana. É que as semelhanças com o Brasil são tantas, nas falhas da educação, da justiça, no oportunismo e mediocridade dos políticos, nos vícios e defeitos que proliferam na sociedade, que não há como não identificar nessas semelhanças um traço cultural comum.
     Não se trata de uma herança portuguesa, mas de um caldo de cultura formado nos países colonizados por Portugal, que ao mesmo tempo em que nos prejudica, com seus atrasos, nos une em um modo de viver que não é absolutamente europeu, mas uma mistura de África, Ásia, América Latina e Europa e que atingiu também a própria matriz portuguesa, levando a eles nossas contribuições.
     Termino esta leitura, e a visita a Cabo Verde, convicto de que somos uma grande nação lusófona, gostemos ou não, mesmo que nos reconheçamos antes como latinoamericanos, africanos, asiáticos ou europeus.
    
    
    
    
    
    
     

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