Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 29 de abril de 2012

Enfermaria

  
 A sala estava cheia. Idosos, muita gente com dengue (uma epidemia), pessoas de meia idade com crises de glicemia e outras mazelas do corpo humano. Nada de fraturas ou coisas ensanguentadas, que deviam estar sendo encaminhadas a outras salas.
     Na minha frente um senhor de olhos duros, sentado numa cadeira de rodas, respirava numa máscara de oxigênio, enquanto aguardava sua remoção para a UTI. Uma senhora mais ou menos da sua idade, aparentando muita fragilidade o acompanhava, solícita, de olhos brandos, passiva.
     Outras quatro, mais jovens, provavelmente filhas, se revezavam nos cuidados com o velho.
     Três se pareciam muito com a mãe. Magras, tinham um queixinho pontudo e as bocas precocemente envelhecidas. Só uma era diferente, bunduda, cabelão, pele boa. Nem parecia filha dele, mas o chamava de pai e era a mais carinhosa.
     Nos momentos em que ficava só, o homem me olhava de frente, olhos sinistros, de quem sempre foi autoritário e parecia ter reduzido aquela frágil senhora à quase nada, durante uma vida inteira de dominação.
     Um ex-militar da ditadura? Pensei.
     Duas das três filhas de boca murcha se revezavam nos cuidados, oferecendo um suco, uma água, um sanduíche ao pai, que invariavelmente respondia ríspido que não queria nada.
     A velha senhora procurou um lençol para cobrir suas pernas e livrá-lo do frio do ar-condicionado, esforço que ele repeliu com um gesto irritado, que ela recebeu calada, conformada, acostumada a ser um nada ao lado daquele homem que parecia ter construído sua segurança em cima dela, como sobre um pedestal.
     Mas quando a senhora se ausentou da sala por um minuto, o homem perguntou a filha mais nova, onde ela tinha ido. Não podia ficar sem ela, sem exercer sua dominação.
     Logo a velha senhora voltou e a mais nova (a terceira) das bocas-murchas se instalou numa cadeira à sua frente, deixando sua velha mãe de pé, enquanto comia um sanduíche. Dela o pai aceitou o suco e a comida. Era a filha preferida.
     Tinha os mesmos olhos duros do pai e havia aprendido com ele a desprezar a mãe. Seria sua sucessora na família quando ele se fosse.
     Ao meu lado, uma bonita senhora que tomava soro, como eu, e também observava a cena me disse com muita simplicidade:
     _Ela não tem paciência com a mãe.
     Na outra ponta do quarto, um senhor muito velhinho, mas lúcido, foi instalado numa cama por duas filhas de meia idade e um filho mais jovem (teria uns 45?). Muito carinhosos, eles ajeitavam o pai na cama, conversavam com ele e o faziam rir. Apesar de tudo estavam bem-humorados e agradeciam à vida por ter tido um bom pai que os permitiu viver e ser felizes.
     A senhora do soro, ao meu lado, olhou, sorriu e trocamos olhares cúmplices, num silêncio pleno de significados.
     Na outra ponta uma senhora chegou, muito agitada. Suas filhas jovens não entendiam porque ela não as reconhecia. Tentavam animá-la e choravam disfarçadamente, revelando uma dor genuína, o que espalhou por todos que ali estavam a noção exata da fragilidade da vida.
     Uma jovem chegou, com um pé torcido. Havia caído da escada do colégio. Seu pai, muito carinhoso, não saiu do seu lado um só minuto, segurando sua mão, conversando e também fazendo-a rir, simulando mordidinhas no seu braço.
     A senhora ao meu lado comentou novamente, com a mesma simplicidade desconcertante:
     _Que bonito!
     Meu soro estava terminando, me livrando das dores da dengue, quando o homem de olhos duros foi finalmente levado para a UTI, no meio de um alvoroço de equipamentos, cadeira de rodas, e enfermeiros.
      A enfermaria parou para ver. Em pouco tempo todos ali já se conheciam e compartilhavam seus dramas. A velha senhora ficou por último e pensei ter visto nos olhos dela, assim que o marido foi levado, um lampejo de alívio. Parou e olhou para os lados com uma certa curiosidade inocente, como se finalmente pudesse olhar para o mundo, liberta da ditadura daquele olhar duro e, quem sabe, das dúvidas sobre a paternidade da filha da bundona.
     Quem sabe agora teria um pouco de paz e receberia, como uma terra ressecada, que teimou em se manter viva, um pouco da chuva do tempo que lhe restava.

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