Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Histórias de outras vidas (39)


Um primo torto

     Ele era filho de um amigo de meu pai, a quem chamávamos de tio, um sujeito muito divertido, carecão, cabeça reluzente de bola de bilhar, óculos fundo de garrafa, bigodões e voz grossa. Sempre brincalhão, inventava mil histórias para divertir a gente.
     Ele e meu pai eram como irmãos. Um acudia o outro em qualquer aperto. Gostavam de viajar juntos com as famílias e assim nos aproximamos muito deles.
     A esposa do amigo do meu pai, a quem chamávamos de tia, era um tipo meio argentino: cabelos negros, pele muito branca e cozinhava muito bem. Tinham um casal de filhos.
     Quando ainda morávamos no Rio, na década de 1950, íamos passar os domingos na Barra da Tijuca, que naquela época era um local distante e ermo, com praias desertas e sem assaltos. Ficávamos até as oito da noite fazendo fogueiras na areia.
     O Filho deles, a quem chamávamos de primo, um primo torto, como se dizia, porque não era primo de verdade, era mais ou menos da idade de meu irmão mais velho e sempre foi meio atrapalhado, para não dizer desastrado.
     Nessa época passávamos férias em Araruama e às vezes ele ia com a gente.
     Araruama tinha muitos marimbondos, daqueles pretos, grandões, e eles faziam suas casas nos telhados. Tínhamos que derrubá-las com fogo, fazendo um chumaço de papelão ou de pano embebido em alcatrão, onde colocávamos fogo, aproximando-o da casa dos bichos várias vezes para assustá-los, o que produzia muita fumaça. Quando eles saiam então derrubávamos a casa vazia com um pau e pronto.
     Um dia o pai incumbiu meu irmão de tirar uma enorme casa de marimbondos de um barracão de palha de sapê, que usava como garagem. O primo estava lá e cismou de que ele iria fazer o serviço. Apesar de todas as explicações, não houve jeito: encostou o fogo na palha e queimou todo o telhado.
     Em outra ocasião, também em Araruama, meu pai deu um barco ao meu irmão. Meu irmão sempre adorou barcos e esse era o primeiro barco da sua vida, um pequeno bote a remo que ele passou meses calafetando com piche, lixando e pintando. Na viagem inaugural pela Lagoa de Araruama lá estava o primo, para sugerir a meu irmão que entrassem por um canal que atravessava a cidade e passava por baixo de uma pequena ponte. Na ida foi tudo fácil, mas na volta a maré subiu, o barco ficou entalado na ponte e à medida em que a maré subia, o bote se rebentou todo.
     Em 1960 nos mudamos para Brasília, e o tio também foi. Lá o primo continuou aprontando das suas. Foi acampar com sua turma da escola e sentou-se sobre um cupinzeiro. Os cupins fizeram tuneizinhos na sua bunda e ele teve que ir para o hospital.
     Depois, já no ensino médio resolveu que iria roubar a prova de matemática para evitar ficar de recuperação. Pulou a cerca do colégio Elefante Branco durante a noite e levou um tiro do vigia, na perna.
     Ficamos sócios do Iate Clube, um dos primeiros clubes de Brasília: eles também. Um dia o primo bebeu umas doses a mais e subiu com seu fusca na beira da piscina para impressionar as meninas: foi expulso.
     Seu pai logo morreu de enfarte e depois disso, meu pai é que sempre ia tirá-lo das confusões.
     Como era míope, sua carteira de motorista dizia expressamente que tinha que dirigir de óculos, mas para parecer mais bonitão para as garotas, ele nunca usava os tais óculos. Um dia viajando para o Rio cruzou com um carro que vinha na direção contrária, chocando-se na lateral, simplesmente por não enxergar direito. Sem ferimentos graves, mas o carro ficou imprestável.
     Depois disso resolveu seduzir a empregada e a moça ficou grávida. Sua mãe teve que criar sua filha.
     Durante muito tempo teve uma namorada, de quem parecia gostar muito. Um dia chegou lá em casa contando a história de que uma cigana havia previsto que ele nunca iria se casar com ela. Para provar que a cigana estava errada marcou casamento, mas na véspera a noiva fugiu com outro.
     Depois ele sumiu, voltou para o Rio e só fui vê-lo muitos anos depois, numa reunião familiar se jactando de que não precisava trabalhar, pois vivia de rendas. Instado a dizer que rendas eram essas, confessou que era apenas o aluguel de um quarto e sala que seu pai havia deixado.
     Pobre primo. Passados muitos anos soube dele. Casou-se e se aposentou como funcionário público. Numa visita a meus pais chorou muito vendo a foto de seu pai, de quem todos gostávamos tanto.
     Parece que a vida não lhe reservou nada de especial além das confusões que aprontava e do pai maravilhoso que teve e que só soube reconhecer muito tarde.
     Apesar de tudo as lembranças de suas trapalhadas deixaram uma nota de humor na memória daqueles tempos. Coisas que o tempo não apaga.

     Boa segunda-feira à todos

     Ricardo Stumpf Alves de Souza

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