Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 30 de janeiro de 2011

Histórias de outras vidas (38)

O Testamento do Judas

     Em 1985 fui morar em Itabuna, no sul da Bahia, para trabalhar na prefeitura. Lá conheci uma moça com quem quase me casei e acabei tendo um filho. Ela tinha duas famílias, uma biológica e outra adotiva, que a criou. Fiquei amigo das duas, mas me tornei mais amigo do pai adotivo, Zé Conrado.
     Pouco tempo depois ele ficou viúvo e sua família passou sempre a se reunir em torno dele.
     Quando eu ia a Itabuna passava lá com meus dois filhos pequenos, o neto dele e outro, de um segundo casamento. Ele era um cara especial, alegre, brincalhão, gostava de juntar as família e comer um churrasco tomando umas cachaças em infusão que fazia num quartinho nos fundos.
     Sua casa de dois pavimentos tinha um pátio interno, o que permitia que os churrascos fossem feitos numa área bem arejada, longe dos olhos dos vizinhos da rua. Coisa importante, pois Itabuna é uma cidade muito quente no verão e dada a muitas fofocas também.
     Almoçar lá sempre era um prazer e uma diversão. Na verdade me afeiçoei a Zé Conrado quase como um segundo pai, já que meu pai e eu nunca tivemos muita afinidade.
     Na última vez que o vi, ele estava na cadeira de rodas e saímos para passear justamente no dia dos pais. Fomos ao shopping de Itabuna, e para minha surpresa, perguntado sobre o que gostaria de fazer ele me respondeu que queria tomar um chopp. Tomamos vários chopps, eu, ele e seu sobrinho que fazia as vezes de seu cuidador.
     Sua cabeça estava ótima e a alegria era a mesma e ficou satisfeito ao ser reconhecido por velhos amigos, que o vieram cumprimentar. Conrado era um sujeito conhecido na cidade. Trabalhou como policial no setor de identificação e por isso conhecia quase todo mundo. Foi administrador de Itapé, quando este lugar ainda era um distrito de Itabuna. Muita gente o cumprimentava quando saíamos na rua. Até umas moças de aspecto meio liberal, uma vez vieram cumprimentá-lo num bar, quando estávamos tomando uma cerveja. mas ele fez cara de paisagem e disse que não sabia quem elas eram. Muito engraçado.
     Sair com ele era uma diversão. As vezes ia com toda a turma para minha casa em Ilhéus e na volta me mandava parar num restaurante para comermos Pitú e tomarmos cerveja. Mas ele não bebia muito. Com três cervejas caía no sono e roncava alto.
     Mas o mais engraçado era depois da Semana Santa, em Itabuna. Pra quem não é da Bahia, lá eles tem o hábito de fazer um testamento do Judas, antes da tradicional malhação. Ao contrário do Rio de Janeiro, o Judas na Bahia não é apenas um boneco de pano que se pendura no poste e que as crianças saem batendo com um pau até destroçá-lo. Lá ele é explodido por fogos de artifício enxertados dentro dele e que são acionados através de um fio, onde muitos fogos vão explodindo até que o fogo chegue ao boneco.
        Mas como muitas outras festas na Bahia, a malhação do Judas tem um festeiro oficial, que é o sujeito que organiza a festa, tendo inclusive autorização para arrecadar fundos para comprar os materiais necessários e montar o palanque, em local público, autorizado pela municipalidade. O festeiro oficial também é o testamenteiro, ou seja, ele é quem escreve o tal testamento, que é um monte de piadas com as pessoas da vizinhança.
     Então, vamos que na vizinhança exista uma Dona Maria, muito gorda, o testamento poderia dizer:
     _Para Dona Maria deixo a balança de pesar minhas vacas.
     Ou para um corno conhecido:
     _Para seu fulano deixo um chapéu com dois furos.
     E por aí vai. Mas ninguém pode se zangar com as brincadeiras, que provocam muitas risadas e fazem com que a comunidade se aproxime, numa espécie de lavagem coletiva de seus pecados.
     Pois Zé Conrado sempre foi o testamenteiro da festa do bairro Conceição. Além disso, ele e seu filho mais velho transformavam sua casa num verdadeiro paiol de pólvora, onde eram preparados os fios e as bombas, para o show pirotécnico da explosão final do Judas.
     Era assustador chegar lá na véspera do evento e ver aquela quantidade enorme de bombas e fios, as mulheres montando o boneco com panos e trajes velhos  numa confusão de gente entrando e saindo, e o testamento, ao qual ele dedicava muitas horas de preparo, até que se transformasse num enorme documento, em forma de pergaminho, que na hora da sua leitura era desenrolado num gesto teatral, caindo aos pés do palanque e avançando uns cinco metros em meio à multidão, já provocando muitas risadas pelo seu tamanho.
     O problema é que quando Conrado começava a leitura do enorme documento já tinha tomado algumas doses da sua cachaça especial de jabuticaba, feita numa infusão deixada de um ano para o outro, e começava a ficar sonolento e se atrapalhar com as palavras, o que tornava o evento mais engraçado ainda.
     Finalmente quando o fogo vinha queimando o fio e explodindo as bombas suspensas até chegar no boneco, ele já roncava em alguma cadeira próxima ao palanque, cuidado por seus familiares e por toda a vizinhança que o conhecia.
     Hoje, sem a liderança dele, a malhação do Judas no bairro Conceição não é mais a mesma, mas todas as vezes que me detive em sua casa para saudá-lo, seus olhos zombeteiros ainda me fizeram rir e admirar sua enorme alegria de viver.

     Boa segunda feira a todos

     Ricardo Stumpf Alves de Souza
 


    
 
    



Um comentário:

micaele disse...

As vezes paro pra pensar,será que essa história de Judas e verdade?será que nao estamos sendo hipocritas de fazer algo tão banal?Pode ate pareçer engraçado mas quem foi que escreveu essa tal história e quem tem provas que houve realmente essa traiçao?Gostei da historia do Zé Conrrado mas acho muito triste a gente como ser humano fazer algo assim todo ano.