Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 1 de agosto de 2010


   Odorico e Isabel

     Dois fatos muito distintos se entrelaçaram esta semana, me levando a pensar no futuro do Brasil. O primeiro foi assistir ao filme O Bem Amado, com Marcos Nanini no papel de Odorico Paraguaçú e Matheus Nachtergale como Dirceu Borboleta.
     Ao contrário do eu supunha, não se trata apenas de uma versão para o cinema, da famosa história de Dias Gomes, que já virou novela e seriado. O filme procura entrelaçar a história do prefeito corrupto com a história recente do nosso país, exibindo inclusive flashes de documentários antigos sobre a guerra fria, a renúncia de Jânio Quadros, a posse e a derrubada de João Goulart, à resistência à ditadura e o movimento pelas diretas.
     A atuação de Marcos Nanini é excelente, como sempre, apesar de que suas falas, cheias de neologismos, são um pouco rápidas demais. Para quem já conhece o personagem dá pra entender bem, mas para os mais jovens deve ser difícil compreender o significado daquela torrente de palavras estranhas.
     Matheus Nachtergale está impecável como o funcionário público exemplar, tendo que conviver com os desmandos de um prefeito completamente desligado da ética e capaz das piores artimanhas para se manter no poder, situação recorrente no Brasil.
     A ligação entre a história fictícia de Odorico e a realidade brasileira só fica clara ao final, quando sobre um globo terrestre mostrado sobre um fundo estrelado, o nome Brasil é trocado por Sucupira, sobre o mapa do nosso país, numa alusão clara à corrupção generalizada na vida política nacional.
     O Brasil teria se tornado uma grande Sucupira, a cidade de Odorico Paraguaçú.
     Apesar do mal-estar causado por essa alusão ao final do filme, saí do cinema pensando se este não seria realmente o grande problema atual do Brasil. Apesar das conquistas políticas, econômicas e sociais dos últimos anos, resta um travo de amargura na população brasileira em relação à falta de seriedade dos nossos políticos e da nossa justiça, que se mantém numa postura burocrática em relação ao cumprimento das leis, com a brilhante exceção do Ministério Público.
     E porque o Brasil não consegue ser um país sério? Porque toda troca de comando no poder nacional sempre cheira a acordos espúrios? Foi assim na redemocratização, com a posse de Sarney, ex-líder da ditadura, fruto de um arranjo que deu mais 20 anos de fôlego à velhos figuras carimbadas da política a la Sucupira, como Antonio Carlos Magalhães e outros.
     Foi assim também com a ascenção de Fernando Henrique Cardoso, cujo passado esquerdista desapareceu num acordo com o antigo partido da ditadura (atual DEM), mantendo Sucupira no poder. O mesmo se deu com Lula, quando na sua famosa Carta aos Brasileiros (muito pouco divulgada antes das eleições), detalhou as bases do acordo feito com as elites brasileiras para que permitissem que fosse ungido presidente, abandonando as principais promessas e princípios da sua trajetória política e tomando um rumo que, na prática, o compromteu a não mexer nos interesses da grande Sucupira que se esconde na sociedade brasileira.
     Assim, os discursos foram virando vento, a legalidade voltou a ser uma coisa relativa e o Brasil continuou a ser um país de faz de conta, que frustra a maioria do nosso povo. Mas esse é um tema que está fora da campanha eleitoral deste ano, onde os tres principais candidatos parecem colocar como pressuposto manter o seu compromisso com Sucupira, para não perturbar essa falsa social-democracia em que o Brasil se transformou, onde a cidadania continua sendo um mito.
     Mas o segundo fato, a que me referi no início, foi a comemoração de 164 anos de nascimento da Princesa Isabel, no dia 29 de julho, muito oportuno para lembrar que nem Dilma, nem Marina seriam as primeiras mulheres a governar o Brasil.
     Isabel, filha meio rebelde de D. Pedro II, assumiu a regência por três vezes: na primeira promulgou a Lei do Ventre Livre, libertando os escravos nascidos a partir daquela data; na segunda se envolveu com a questão religiosa e separou a Igreja Católica do Estado no Brasil e na terceira aboliu a escravidão.
     Embora sendo uma aristocrata, Isabel nos deu um exemplo sadio de rebeldia, de quem estava cansada de discursos vazios e partiu para a prática, terminando efetivamente com a estrutura arcaica do Estado brasileiro, com imperadores e escravos. Suas ações estão na base do nascimento de um Brasil moderno e republicano, mas que nunca conseguiu se libertar dos conchavos das elites para estabelecer uma verdadeira democracia, onde o povo exerça livremente o seu poder.
     Então a pergunta que fica é: até quando vamos ter medo dessas elites que nos mantém subjugados?
     Até quando vamos nos submeter a esses acordos espúrios e tolerar a corrupção e a inércia da justiça para promover e proteger privilégios?
     Quem sabe a rosa branca, símbolo da luta contra a escravidão adotado também pela princesa Isabel, nos inspire novamente. Quem sabe, como na música de Zé Ramalho, tenhamos novamente aquela vontade de sairmos do poço, da garganta do poço, na voz de um cantador....


Modelos
     Faz quase 40 anos, uma delegação chinesa visitou o Brasil para conhecer nosso modelo econômico. Foi na época do chamado "milagre brasileiro", tempo de grande dinamismo econômico, com o Brasil crescendo a 9% ao ano sob a ditadura de Garrastazú Médici. Os chineses, que na época viviam uma economia estagnada de privações e pobreza, queriam entender como podíamos crescer tanto.
    Viram, entenderam e trataram de aplicar na China (na época totalmente estatizada) a fórmula brasileira, que mesclava economia privada com controle estatal. Tínhamos grandes estatais que puxavam toda a economia, um Estado forte que regulamentava tudo para alavancar o setor privado que, em parceria com o Estado, sabia que podia investir pesadamente que o retorno era garantido.
     A base dessa economia mista era o planejamento, ferramenta desenvolvida nos países socialistas e adotada no mundo inteiro, como garantia de desenvolvimento.
     Passados alguns anos, desceu por aqui Henry Kissinger, então Secretário de Estado americano, para reclamar que nossa economia estava estatizada demais, que era preciso privatizar. Isso, se não me engano, já foi no governo de Ernesto Geisel.
     Daí em diante começou a se desevolver essa campanha pela desestatização, como se a presença do Estado na economia fosse um pecado. Com a queda da União Soviética, então, a privatização fez a festa. O baluerte socialista tinha caído e era hora dos privatistas avançarem. Daí em diante foi o que se viu. Sarney começou, Collor acelerou, Itamar continuou (privatizou a Açominas) e Fernando Henrique detonou. Privatizamos e desregulamentamos tudo. Resultado: paramos de crescer, mergulhamos numa crise profunda da qual só começamos a sair com o governo Lula, que parou de privatizar, embora não tenha tido a coragem de reestatizar.
     Lula governa com o máximo de consenso possível e não gosta de mexer em vespeiros. Se a recriação da Telebrás e a criação da pequena Petro-Sal já provocam náuseas nos privatistas, reestatizar as comunicações seria uma verdadeira guerra (muito embora a fusão da Brasil Telecom com a Oi e agora com a Portugal Telecom, possam ser uma forma de abrir espaço para a compra de ações por parte do governo, criando uma estatal gigante).
     Nesses 40 anos, primeiro faliu o modelo estatista soviético, depois o privatista veio abaixo, com a crise americana de 2008, fazendo o governo dos Estados Unidos regulamentar pesadamente o sistema financeiro e colocar dinheiro do tesouro americano nas empresas, rompendo com os famosos "novos paradigmas" e voltando à velha intervenção estatal.
     Enquanto isso a China desenvolveu nosso antigo modelo com muito sucesso, chegando a ser a segunda economia do mundo e se preparando para nos próximos anos, ultrapassar os Estados Unidos como maior economia mundial.
     Ou seja, nós os ensinamos como crescer, mas depois, com governos que representavam uma elite submissa e colonizada, injetamos em nós mesmos os venenos preparados pelos estrangeiros para nos impedir de assumir nosso papel de liderança no mundo.
     O grande mérito de Lula foi romper com esse complexo de vira-lata brasileiro e relembrar que podemos ter projetos próprios (como tívemos nos governos Vargas, Kubistcheck e Goulart), que podemos defender nossos interesses no mundo, que podemos ser um país que se leva à sério, (apesar dos seus acordos eleitorais com a velha Sucupira).
     Mas o modelo chinês, também tem seus percalços, pois não é democrático e é extremamente consumista.
     Qual seria então o futuro?
     O modelo de economia mista já provou que funciona bem, garantindo espaço para os investidores, que no entanto estão limitados pelo poder do Estado, um fiscalizando o outro. A tal economia de baixo carbono, proposta por Marina Silva, parece que se preocupa apenas com as emissões, mas não aborda com clareza a questão dos recursos não renováveis (com excessão do petróleo), que estão se esgotando rapidamente com o aumento contínuo da produção industrial.
     Parece que a solução aponta na mudança de uma economia de consumo de produtos, para uma economia de serviços.  Explico: a produção de bens descartáveis ou pouco duráveis seria substituída por bens duráveis, por exemplo: um automóvel seria feito para durar 20 anos e não 3, como hoje. Os modelos não mudariam todo ano, como agora, estimulando a troca, mas se manteriam por muito tempo. Seriam produzidos muito menos automóveis e a economia giraria em torno da manutenção desse veículos, vendendo peças de reposição, oferecendo regulagens periódicas e muito trabalho humano que pode ser aplicado a um veículo.
     Novidade? Nada disso: assim eram as economias socialistas, onde os bens eram feitos para durar e não para serem jogados fora. Só que isso era feito através de um planejamento burocrático, muito distante dos consumidores, o que engessava todo o processo. E mesmo no Brasil, há algumas décadas atrás, nada era descartável e o consumo era muito reduzido. Os mais velhos se lembram.
     O desafio seria planejar o consumo dentro de um processo democrático, dialogando com todos os setores da sociedade, sempre de olho na resiliência (capacidade de recuperação) da natureza do planeta.   
     Só que hoje em dia isso não poderia mais ser feito em cada nação isoladamente. Seria preciso algum tipo de governança global que monitorasse o quanto ainda temos de petróleo, minério de ferro, etc, para saber o quanto poderia ser gasto anualmente, sem ameaçar nossa existência, e buscasse fontes alternativas, renováveis, para substituir os recursos finitos.
     Além disso, muito trabalho humano poderia girar a economia de serviços em muitos outros setores, como o da educação, cultura, artes e ciências, além da uma agricultura que abandonasse o agro-negócio envenenador de solos e produtos, por uma agricultura ecológicamente correta.
     Não seria fácil fazer essa conversão, adotando um modelo planejado e racional, onde os negócios estariam muito mais regulamentados Também não seria fácil substituir a mentalidade consumista que se formou na população nos últimos anos, cujo melhor exemplo é o slogan da Ford: viva o novo, que teria que ser substituído por viva o durável!
     Esse é o modelo que vai se formando no horizonte possível: economia mista, democraticamente  planejada, voltada para os serviços e baseada na sustentabilidade.
     Quanto à governança global, as potências militares, que ainda acreditam no poder nacional, resistem à integração democrática, tipo União Européia e Mercosul, mas as crises econômicas e ambientais começam a falar mais alto e vão moldando na prática as leis globais.
     Quem viver verá.

    

   Histórias de outra vidas (22)

   VINCENT


     O lugar era Bruxelas, na Bélgica e o ano 1974 ou 75, não tenho certeza.
     Eu tinha ido para a Europa em 1974, fugindo da repressão do governo Médici que estava prendendo todo mundo que havia estado no Chile, cujo governo socialista acabara de ser derrubado por Pinochet.
     Fui sozinho na frente e alguns meses depois minha nova companheira, que eu havia conhecido no Rio, foi também. Lá alugamos um porão na casa de um casal belga, que achava que estava ajudando o terceiro mundo por nos receber. Jean Pierre e Myriam formavam um casal interessante: ele judeu e ela muito católica, os dois simpáticos e gentis.
     Quando chegamos ela estava grávida. Eles já tinham um pequena filha chamada Muriel, muito meiga e simpática. Logo nasceu Vincent.
     Nossa vida era muito corrida. Primeiro tentamos estudar e depois de alguns meses resolvemos voltar para o Brasil. Então nos dedicamos a trabalhar e juntar dinheiro para as passagens de volta.
     Saíamos bem cedo e voltávamos à noite, cansados. Às vezes nos encontrávamos no centro para tomar uma cerveja na Grand Place ou na Porte Louise. Que cervejas deliciosas são as belgas. Os Pubs nos protegiam do frio e da neve do inverno de 74/75, que gelava os ossos e a alma de qualquer brasileiro.
     Aos domingos, às vezes recebíamos algum amigo ou íamos a casa de outros, da grande colônia latino-americana que se formou após o golpe de Pinochet. Os exilados que estavam no Chile, fugindo de outras ditaduras latino-americanas, implantadas pelos americanos, foram para a Europa e a Bélgica recebeu um grande número deles.
     Um dos que nos visitava era o Gordo, exilado uruguaio, cujo nome verdadeiro nunca soube, já que ninguém perguntava essas coisas aos exilados políticos. Gordo era muito alegre e engraçado. Fumava charutos e gostava de sentar com a gente e ficar tomando cerveja a tarde toda de domingo, enquanto proseávamos e minha companheira fritava rosquinhas, que todos nós adorávamos.
     Sucede que os Belgas dão uma criação muito estranhas às suas crianças. Na porta de algumas lojas estava escrito: proibido entrar cachorros e crianças (Não sei se esse costume permanece até hoje). Parece que eles não gostavam muito dos pequenos e os reprimiam com severidade, segundo eles, para que crescessem disciplinados.
     Sabíamos disso, mas um domingo daqueles estávamos no nosso porão, bebendo e fumando e o choro de Vincent (lê-se Vançam) começou a nos incomodar. Fazia horas que o menino chorava e pensamos que talvez o casal não estivesse ouvindo. Subimos para verificar e achamos o pequeno no seu carrinho, na beira da escada que levava ao nosso porão, sozinho, todo assado e precisando urgentemente trocar as fraldas (que naquela época eram de pano).
     Minha companheira subiu para avisar Myriam, mas eles nos disseram que era assim mesmo, que ele precisava se acostumar a ficar sozinho, passando suas dificuldades e que com o tempo pararia de chorar.
Chocados voltamos ao nosso porão inconformados com aquela situação.
     O menino tinha no máximo dois meses e não podia ser deixado à própria sorte dessa forma. Como a situação não se alterava resolvemos levá-lo às escondidas para baixo. Lá ele foi trocado, recebeu fraldas limpas (não me lembro onde conseguimos) e depois foi colocado de volta no carrinho, dormindo profundamente.
     Muitas horas depois, Myriam desceu para nos explicar que Vincent havia finalmente se aquietado, porque compreendera que tinha que lidar com seus próprios problemas.
     Pode?
     Conversando com uma brasileira exilada que fazia psicologia na universidade de Louvain, ela nos falou que aquilo era comum na Bélgica. Que eles eram extremamente duros e até cruéis com as crianças, acreditando que aquilo os faria ter um temperamento forte para enfrentar as adversidades da vida. Talvez algum costume bárbaro herdado das hostes germânicas que invadiram o império romano e formaram os países do norte da Europa.
     Mas o fato é que esse tipo de criação endurece os adultos e talvez esteja por trás de tantas barbaridades cometidas pelos europeus em suas infinitas guerras. Os belgas mesmo cometeram verdadeiras atrocidades no antigo Congo Belga, sua colônia na África, que até hoje não se recuperou desse processo violentíssimo.
     Muitos domingos se sucederam e Vincent sempre ficava na escada, chorando.
     Nós, já sabendo da situação, comprávamos fraldas e fazíamos mamadeiras para dar a ele nos domingos. Ele passava a tarde conosco, entre cervejas, rosquinhas, as risadas de Gordo e adorava. Sorria muito para nós, agradecido dos cuidados e do conforto. No final da tarde voltava para seu carrinho e dormia satisfeito, antes que sua mãe fosse buscá-lo e ficasse também satisfeita de ver como seu pequeno varão estava se tornando um verdadeiro guerreiro e já não chorava mais.
     Onde andará Vincent, hoje com 35 anos? Terá se tornando um indivíduo mais fraco por ter recebido esse amor clandestino, ou quem sabe se tornou um adulto melhor, mais capaz de amar e ser amado?

Abraço a todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza





2 comentários:

Linda disse...

Eu lembro de Vincent como se fosse hoje!!
Linda Porto

micaele disse...

Que absurdo,se isso existe ainda deve ser proibido.Que bom que voces fizeram algo.Lendo isso vi que os seres humanos sao muito estranhos.