Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 29 de agosto de 2010

Histórias de outras vidas (26)                     

 Animalidades

     O ano? Talvez 1958 ou 59. A cidade: Rio de Janeiro.
     Éramos sócios do Fluminense, sim o clube de futebol das Laranjeiras.
     Íamos à pé de casa, na Marquês de Abrantes, passando pela Rua Paissandú, com suas enormes palmeiras imperiais, até a Avenida Pinheiro Machado, onde fica a sede centenária do clube.
     Muitos domingos de minha infância foram passados lá e vi a inauguração da grande piscina de saltos, no final da década de 50, com seu enorme trampolim-plataforma, de dez metros de altura.
     Um dia meu pai apresentou, a mim e meu irmão, Castilho, o grande goleiro.
     Meu pai tinha mania de mostrar tudo pra gente e mesmo sem conhecer as pessoas, se metia no meio e nos levava juntos.
     Os domingos no Fluminense eram agitados.
     Meus pais se encontravam com conhecidos e ficavam conversando, enquanto meu irmão ia nadar com seus amigos. Eu também tinha uma turminha de meninos mas, às vezes, gostava de me afastar e ficar sozinho, andando pelas instalações do clube.
     Ia para o estádio, subia nas arquibancadas e ficava lá sentindo aquele espaço enorme, vazio, aquelas vibrações deixadas no ar pelas torcidas de tantos jogos famosos.
     Gostava de subir nas plataformas da nova piscina de saltos e ficar sentado no último andar, no cantinho, vendo os atletas saltarem, dando aquelas piruetas no ar.
     Um dia um garoto me empurrou lá de cima.
     Eu estava distraído, pensando, quando senti o empurrão e me vi no ar, caindo, de barriga e rosto diretamente sobre a água. O impacto foi tão grande que perdi a consciência por alguns segundos. Quando voltei a mim já havia pessoas me tirando da piscina e o moleque que me empurrara ia sendo retirado pelo braço, sob intensa reprimenda de uma mulher, que parecia ser sua mãe e olhares gerais de reprovação.
     Ao contrário dos clubes de hoje, a vida social no Fluminense não girava em torno de comida e bebida na beira da piscina, mas de esportes mesmo.
     As pessoas se sentavam para conversar, mas não me lembro de garçons servindo bebidas, apenas mulheres de toca plástica de nadador e homens molhados ou com uniformes de tênis ou futebol.
     Muito mais saudável.
     Mas o que mais me impressionava era o vestiário.
     Na hora de ir embora, íamos para o vestiário tomar banho e trocar de roupa e eu ficava impressionado com a mudança no cenário.
     Homens que há pouco se vestiam com roupas boas, que diferenciavam sua condição social, circulavam agora completamente nus, aparentando grande naturalidade e continuavam conversando como se ninguém reparasse naquilo.
     Eu achava muito estranho.
     Se a roupa era tão importante lá fora, porque de repente naquele espaço amplo (o vestiário me parecia enorme) ela parecia não ter nenhuma importância.
     Mais do que isso, parecia nunca haver existido a roupa, nem a necessidade dela.
     Eu olhava para o rosto daqueles homens e não via nenhuma alteração. Era a única parte do corpo que se via igual, com ou sem roupa. Era a identidade da pessoa; o rosto.
     E o resto do corpo, não significava nada?
     Barrigas grandes, peitos peludos, pernas finas, bundas murchas ou gordas, ninguém parecia ver o corpo do outro.
     As genitálias eram um espetáculo à parte.
     Cabeludas, com seus pênis murchos e encolhidos, de todos os tamanhos e cores, sacos grandes, sacos miúdos, chamavam a atenção no meio do corpo, a maioria muito feia, mas era como se não existissem. Ninguém olhava para aquela parte tão visível do corpo.
     Naturalmente temiam que qualquer olhar pudesse ser interpretado como uma manifestação de interesse e, o pior, que o olhar fosse correspondido pelo outro com uma ereção. Aprendi ali a me comportar em vestiários masculinos, compreendendo aqueles códigos de conduta tão estranhos.
     Mas enquanto criança eu ficava espantado com aquela exibição toda, enquanto meu pai me ensinava que aquilo tudo era muito natural. Mas eu não entendia porque então não se podia andar pelado na rua, se era tão natural. Porque só ali era natural?
     Porque aqui todos são homens, explicava ele.
     Sim, então só não era natural para as mulheres, devia ser isto.
     Ele então me explicava que no vestiário feminino as mulheres também podiam ficar nuas.
     Mas depois, quando saíamos e aqueles mesmo homens se encontravam com suas famílias, já cobertos pela marca social das suas roupas, eu não podia deixar de ficar imaginando como seria aquela gente toda pelada, conversando.
     Pensava em como seria engraçado vê-los como realmente eram e como seria mais difícil manter as poses com que tentavam se diferenciar.
     Foi a minha primeira noção do ridículo da espécie humana.
     Um monte de homens nus, por mais que tentem manter a dignidade, ficam bem mais próximo de animais. E a animalidade é tudo que mais tentamos esconder de nós mesmos.
     Apenas o rosto é treinado para ser civilizado, o resto é pura animalidade.
     Para o meu olhar espantado de criança, essas convenções humanas me pareciam assustadoras.

     Boa segunda-feira à todos

     Ricardo Stumpf Alves de Souza

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