Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 4 de julho de 2010






Histórias de outras vidas (19)


SAM


O ano era 1972. Eu morava em uma república de estudantes, na superquadra 110 sul, em Brasília.
     Tinha brigado com a família, saído de casa e, depois de bater cabeça por várias pensões e quartos de aluguel, fui chamado por um ex-colega de trabalho do Banco Regional de Brasília, para dividir um quarto na tal república.
     O dono do apartamento era funcionário de um tribunal, solteiro e precisando de dinheiro. Ele ocupava o maior quarto. No fundo do corredor dois quartos, um que dava para a frente do edifício, ocupado por um solteirão, já aposentado e outro que eu dividia com meu colega.
     No pequeno quarto de empregada, morava o irmão do dono.
     Na sala apenas uma mesa com algumas cadeiras. Na cozinha, nada além da pia. Ninguém cozinhava ali. Uma vez por semana uma faxineira fazia uma limpeza muito mal feita, certa de que nenhum daqueles rapazes iria notar a má qualidade do serviço.
     À noite a circulação de mulheres era intensa, com uma característica: ninguém via ninguém. Era só chegar com alguma menina, deixá-la esperando, entrar e avisar o pessoal. Todos se recolhiam aos seus quartos e não apareciam enquanto não fosse dado o sinal. As moças podiam jurar que ali não morava ninguém.
     Apenas eu e meu colega precisávamos combinar a hora, pois dividíamos o mesmo quarto. Ele, porém, não levava mulher pra lá. Tinha uma namorada, Rita, havia muitos anos, e se encontravam no apartamento dela.
     Eu a conhecia bem. Era moça pobre, do interior, batalhadora, já passando da idade, vivia na esperança de se casar, mas ele só enrolava, desfrutando do amor dela enquanto permanecia solto.
     Quanto a mim, vivia muito só numa cidade vocacionada à solidão, em um tempo sem aids e praticava o sexo olimpicamente, como um esporte.
     Estudando na Universidade de Brasília, eu havia deixado o Banco, meu primeiro emprego, devido à instabilidade em que vivia, e fui ser vendedor para um fundo de investimentos, o Fundo Halles. Um emprego horrível. Andava muito e só ganhava o que vendia. Mesmo assim, tinha que esperar que os compradores pagassem em dia sua prestações.
     Era uma época ruim. Ditadura militar, governo Médici, auge da repressão política.
     Eu, um estudante de arquitetura revoltado com tudo aquilo, tinha ainda que aturar uma família que apoiava a ditadura e só pensava em status e dinheiro, tentando me comprar com presentes caros para que eu abandonasse aquelas idéias de comunista e voltasse ao que eles chamavam de realidade.
     Tudo muito ruim.
     A república, as meninas e as bebedeiras no Beirute, bar que ficava em frente ao edifício (e que na época ainda não era um bar gay), eram uma forma de escapar de tanto sufoco e da falta geral de perspectivas.
     Eu freqüentava uma outra república, onde morava Rita, junto com outras meninas e rapazes. Lá tudo era muito diferente. Os rapazes eram todos gays e as meninas, Rita e Regina, conheciam muitas pessoas com a cabeça aberta, gente de outros países, pós-graduados, gente de esquerda, místicos, enfim, de tudo.
     Lá eu conseguia conversar e conhecer gente interessante, me libertando um pouco do sufoco machista autoritário, da ditadura e da classe média fascista.
     Um dia apareceu uma garota, trazida por um dos meninos. Eles a chamavam de Sam e ela era do interior de Minas. Gostei logo dela. Conversamos muito e ela me disse que queria ir para os Estados Unidos.
     Como todos nós ali, ela procurava um meio de escapar da triste realidade que se vivia no Brasil dos anos 70.
     Nossa amizade cresceu. Um dia, acostumado à prática desportiva do sexo, levei Sam para o apartamento e...surpresa, descobri que ela era virgem. Deixei que ela decidisse, mas ela quis e tivemos um relacionamento muito bonito, intenso, apaixonado.
     Alguns dias depois Sam se foi, deixando em mim o gosto do amor. Sam foi o primeiro amor da minha vida. Sua passagem pelo meu mundo triste e solitário iluminou tudo, me mostrando um sentido para a vida.
     Vi que não valia a pena permanecer ali e que o único caminho era o que ela havia escolhido: deixar o Brasil. Alguns meses depois eu partiria também, para o Chile, onde vivi durante um ano e um mês, e depois para a Bélgica, onde fiquei mais um ano.
     Sam foi uma porta que se abriu, me mostrando que era possível viver e ser feliz, me resgatando das mãos da tristeza e da desesperança. Ela nunca se foi do meu coração. Sua lembrança ainda mora lá.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf

2 comentários:

micaele disse...

O que aconteçeu com a Sam?Sabe apesar de ter passado a ditadura ainda a varias, só que com nomes diferentes.

Anônimo disse...

Não sei, nuca mais soube dela.