Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 27 de junho de 2010




   Razão e Espírito

     Em Brasília, acompanhei minha mãe, já idosa, à igreja que ela frequenta há mais de trinta anos, uma religião japonesa que faz muito sucesso por aqui. Ouvindo seu fantástico coro e depois as palavras de um reverendo sobre a necessidade de espiritualização das pessoas, fiquei pensando ne velha pergunta: porque uma cidade moderna conmo Brasília, construída para ser o exemplo acabado do domínio do homem sobre a natureza, se tornou a capital nacional do misticismo?
     Quem já morou e trabalhou aqui, como eu, sabe a resposta. Dentro da burocracia federal, instalada no Planalto Central, instalou-se a mais mesquinha das máquinas humanas, baseada numa competição injusta, onde quem tem o poder pode tudo e quem é funcionário pode apenas obedecer.
     A relação de funcionários públicos com seus chefes, ministros e partidos políticos que os nomeiam, é uma coisa completamente neurótica. Se o capitalismo já é extremamente competitivo, por natureza, a burocracia, à serviço do capitalismo, ainda por cima regulada por um código completamente ultrapassado, baseado nas idéias verticalistas de Taylor, o homem que inventou a linha de produção, é uma loucura completa.
     Já falei aqui sobre o estatuto do funcionalismo público, que regula as relações de trabalho dos funcionários públicos. Um artigo desse estatuto é emblemático, o que diz que o funcionário tem obrigação de obedecer ao seu chefe sob pena de ser demitido. Ou seja, o funcionário não pode contestar uma ordem errada, tem de obedecer. Não tem direito à uma opinião, nem à mínima dignidade de pelo menos registrar seu desacordo.
     É claro que isso é a base para todo tipo de corrupção, já que, para denunciar um chefe o ônus da prova cabe ao acusador e tem de ser montada uma comissão de inquérito, cuja composição frequentemente fica à cargo do próprio acusado. Some-se isso ao discurso de produtividade e competitividade, incorporado à mente obscura dos nossos administradores na década neoliberal de 1990 e teremos o caldo de cultura para produzir neuróticos em série.
     Obriga-se as pessoas a serem competitivas, num ambiente anti-democrático, onde só o que é perrmitido é obedecer.
     E existe todo um discurso em cima disso, como se daí dependesse o bom desempenho da máquina federal, quando na verdade é aí que mora o erro. Uma máquina mais enxuta, democrática, com menos consultores e mais executores, seria muito mais produtiva e quem sabe, produziria sobre os funcionários um efeito mais relaxante, permitindo que a criatividade aflorasse e, aí sim, a produtividade aumentasse.
     Talvez outro efeito fosse o de esvaziar as igrejas, cujo principal trabalho por aqui está em desfazer o serviço perverso que a máquina administrativa produz sobre os espíritos dos pobres funcionários. No emprego mandam competir, na igreja mandam cooperar. De um lado o egoísmo extremado, do outro o altruísmo total.
     É claro que por trás dos dois discursos existe oportunismo também. Os administradores se beneficiam da fragilidade psicológica dos seus comandados para auferirem suas vantagens. Os padres, reverendos, pastores e outros líderes espirituais também veem suas igrejas se encherem de gente aflita, procurando saídas para suas vidas sem sentido.
     Mas na verdade o que está por trás de tudo isso é o conflito contra a injustiça.
     Sim, muita gente que não aceita injustiças padece muito em todo lugar e não aceita também que elas sejam resolvidas com consolos espirituais, sabendo que tudo isso, no fundo é a mesma coisa, uma grande enganação e que as empresas ou repartições públicas que oprimem seus trabalhadores são apenas um lado da página injusta da verdade, cujo verso são as igrejas que oferecem bálsamos para as vítimas do sistema.
     Países desenvolvidos aprenderam a lidar com injustiças de maneira corajosa, o que infelizmente não é o caso do Brasil. Pergunte a um americano ou a um europeu se ele aceita entregar uma injustiça às mãos de Deus.
     Não.
     Eles aprenderam que só lutando as coisas mudam. Criaram um imenso movimento sindical, fizeram revoluções e movimentos pelos direitos civis, cujos benefícios nós desfrutamos por aqui também, apesar de não termos participado deles.
     No Brasil, uma pessoa que gosta das coisas certas, que não aceita se calar diante de situações erradas, é considerado um chato e logo aparece alguém para lhe aconselhar entregar a Deus. Não é à tôa que os maiores corruptos estão profundamente ligados a movimentos religiosos, que lhes servem como cortina de fumaça para seus negócios escusos e para anestesiar suas vítimas.
     Razão e espírito não precisam andar em direções opostas, mas ao contrário, devem compartilhar uma visão de justiça que liberte o ser humano de espertezas de ambos os lados. A vida após a morte não resolverá os problemas na terra e viemos para esta vida para aprender, para aperfeiçoar o planeta, para progredir e, portanto, para lutar, mesmo que renunciemos à violência. O conformismo religioso e o falso altruísmo que estimula a passividade diante das coisas erradas, só servem aos que não querem mudar nada. 

Abraço a todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza
    
    

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