A Manilha e o Libambo III
O Reino do Congo
Jinga, a Rainha de Angola
Em 1482, o rei de portugal, D. João II, enviou, em segredo, o navegador Diogo Cão ou Caão (abaixo à direita) para explorar a costa africana, ao sul do golfo da Guiné (então chamado Golfo de Benin), onde os portugueses estavam erguendo o forte de São Jorge da Mina, e tentar descobrir a passagem para o oceano índico e o caminho para a Índia das especiarias.
Diogo Cão fez duas viagens. Na primeira, em 1483, aportou na foz do Rio Congo, onde foi acolhido pelo
mani, ou senhor de
Sônio, a província noroeste do antigo Reino do Congo.
Este rio, que é o maior da África central, nasce no Lago Tanganika, corre para o norte e depois se curva para sudoeste, até chegar ao oceano atlântico.
Os nativos da etnia bakongo, que viviam na embocadura do rio, o denominavam Nzere, que na sua língua significa o rio que engole os outros rios. Diogo Cão, deformou seu nome para Zaire.
Diogo Cão ainda desceu a costa africana até a Namíbia, chegando ao litoral do deserto do Kalahari no ponto hoje conhecido como Cape Cross (na foto de satélite abaixo, à direita) e depois retornou, deixando marcos de pedra com inscrições, que ele chamou de padrões.
Na foto à esquerda o
padrão de Diogo Cão no cabo Cross, na atual Namíbia.
Diogo Cão achou que o Cabo Cross era a extremidade sul do continente africano e por isso retornou à foz do Rio Zaire.
O navegador, com a concordância do Mani, enviou presentes para o Rei do Congo, que vivia no interior, na cidade de Banza Congo, (ou M'Banza Congo) que naquela época já tinha cerca de 60.000 habitantes, junto com uma embaixada de portugueses (localização de Banza Congo na foto de satélite abaixo). Como seus enviados demorassem a voltar, ele retornou a Portugal levando alguns nativos, que tomou como reféns, prometendo trazê-los de volta dentro de 15 luas.
Cumpriu o prometido, e em 1485 "...estava de volta, com os reféns em boa saúde, vestidos à européia e falando português. Diogo cão mandou um deles ao Manicongo, com ricos presentes, a mensagem de amizade do rei de Portugal e a proposta de troca dos portugueses que haviam ficado em Banza Congo pelos congueses que levara consigo."
O Manicongo ficou muito impressionado com os relatos dos que haviam sido levados a Europa e resolveu aceitar a oferta de D. João II para uma aliança, inclusive militar, aceitando o batismo na fé católica. Para o rei de Portugal, seu sonho de encontrar um rei africano que se cristianizasse e se tornasse seu aliado, evitando a concorrência de árabes, espanhóis e holandeses, parecia finalmente se concretizar.
O rei do Congo, Nzinga a Nkuwa, se tornou D. João I, procurando europeizar seu país segundo o modelo português e seu filho primogênito, Mbemba Nzinga, que o sucedeu (com a ajuda militar portuguesa) derrotando seu irmão Mpanzu a Kitima (que contava com a preferência dos clãs matrilineares que tradicionalmente elegiam o novo rei), se tornaria D. Afonso, um rei muito católico e estudioso das escrituras.
Mas a tentativa de europeização do Congo não avançou muito, devido ao próprio desinteresse dos portugueses, para quem servir no reino do Congo era quase uma condenação à morte, devido às doenças que os abatiam facilmente. Depois da descoberta do caminho para as Índias, a importância do Congo diminuiu e os portugueses passaram a ver ali, apenas a oportunidade de obter escravos, com os quais tentavam enriquecer rapidamente e voltar à Europa, prática comum inclusive entre os padres enviados para a conversão dos africanos.
Os mercadores de escravos de São Tomé, começaram a se opor aos esforços da coroa para desenvolver uma colônia no Congo, retendo os padres enviados para lá e muitas vezes escravizando jovens congueses enviados a Lisboa para estudar e que passavam pela ilha.
O tráfico desenfreado de escravos fez com que o Manicongo tentasse regulá-lo, para impedir que congueses fossem escravizados (apenas os estrangeiros capturados em guerra podiam ser vendidos). Essa medida deslocou o comércio de seres humanos para o lago Malebo (à esquerda, na foto de satélite), muito acima da foz do rio, área de fronteira e constantes guerras entre os congos e os angicos, conflito que produzia uma grande quantidade de cativos.
A procura por escravos fez com que as guerras se intensificassem e os pumbos, (mercados de escravos), se multiplicassem em volta do lago, sob controle do rei do estado Makoko, da etnia tio, que mandava prear em razzias no centro da África, ambundos, angicos, bobangis, sucus, ianzis, bomas, teges, e cotas. O Manicongo, continuou a lucrar com o tráfico, que pagava tributo para passar por seu território e ainda vendia produtos agrícolas para alimentar os cativos que aguardavam para serem embarcados no litoral atlântico.
Mais ao sul, a costa era povoada pelos congos até a ilha de Luanda. Porém mais para o interior do continente, na embocadura dos rios Lucala e Kwanza, havia um outro reino, tributário do Manicongo, o reino de Dongo ou Andongo, cujo rei se intitulava ngola a kiluanje, a quem os portugueses chamaram o Angola.
Esse reino se desenvolvia no planalto que existe à partir da embocadura de dois grandes rios, o Kwanza que deságua ao sul de Luanda e seu principal afluente, o Lucala.
A Invasão dos Jagas
O Angola a Kiluanje era tributário do Manicongo, mas frequentemente negociava diretamente com os mercadores de São Tomé, fornecendo escravos, marfim e tecidos. Essa situação levou a uma guerra entre os dois estados, com a vitória do Angola, que consolidou sua independência, com apoio dos jesuítas que mercadejavam escravos e queriam romper o monopólio do manicongo sobre este comércio.
Esta situação enfraqueceu o poder do Manicongo, que se viu ás voltas com revoltas internas, estimuladas por intrigas estimuladas pelos portugueses que habitavam o reino, que se aliaram aos pumbeiros do lago Malebo, que também não se conformavam com o controle sobre o tráfico de escravos exercido pelo rei conguês.
Quando o Manicongo conseguiu controlar a situação viu-se invadido por uma verdadeira horda de bárbaros, os Jagas, que entraram no reino destruindo e matando, abrindo caminho para o oceano atlântico.
Segundo Costa e Silva, esta onda de violência que desceu sobre o reino Congo foi resultado de uma seca terrível que assolava a região central da África e também do desespero causado nas pequenas comunidades agrícolas pelo crescimento das razzias para captura de escravos, realizadas pelo rei Makoko e os mercadores do lago Malebo.
Não tendo como sobreviver e cada vez mais à mercê dos traficantes de escravos, os povos da África central começaram a abandonar as estruturas tradicionais de poder dos seus clãs matrileneares e passaram a se reunir em hordas de guerreiros móveis, onde os reis eram escolhidos entre os mais fortes. De vítimas das razzias, passaram a capturar gente, inclusive entre os makokos, para vender aos traficantes. Depois, percebendo que o grosso dos lucros ficava com os mercadores, quiseram abrir eles mesmos o caminho para o mar, para comerciar com os portugueses.
Contam as lendas que os
jagas (ilustração à esquerda) eram antropófagos e matavam seus próprios filhos, para que estes não atrasassem sua marcha, enquanto adotavam os pequenos rapazotes dos povos que iam conquistando pelo caminho, e que iam sendo treinados na disciplina militar. Mas Costa e Silva diz que essas lendas eram propagadas pelos europeus, intimidados por essa nova forma de organização social guerreira, tão distinta das tradicionais sociedades africanas que eles se habituaram a dominar. O Manicongo, derrotado pelos
jagas, refugiou-se numa ilha do Rio Zaire e pediu ajuda aos portugueses, que enviaram 600 homens sob o comando de Francisco de Gouveia, que após 5 anos fez os
jagas recuarem para sua região de origem.
No meio dessa guerra, muitos europeus ficaram no Congo e se misturaram com mulheres locais, criando uma população mestiça que passou a ameaçar o poder do Rei. Tudo isso foi minando as estruturas políticas tradicionais do reino, que ficou cada vez mais à mercê dos europeus e dos seus interesses, alimentados principalmente pelo tráfico de escravos. A sociedade conguesa foi se tornando fortemente escravista. "O Congo passara a girar em torno da escravidão".
A guerra de Conquista
Insistentes boatos sobre a existência de minas de prata em território Dongo, fizeram o rei de Portugal, D. Sebastião, se decidir pela conquista do território, abandonando a política de fundar feitorias no litoral e passando à tentativa de fundar uma colônia que avançasse para o interior.
Para isso criou em 1571, a Capitania e Governança de Angola, no mesmo feitio das capitanias hereditárias do Brasil, cujo primeiro donatário foi Paulo Dias de Novais.
"Deu-lhe D. Sebastião o que não era dele. Transferiu-lhe o governo e a posse de terras que não pertenciam a Portugal, mas a reis africanos".
De início o
Angola observou à distância o desembarque dos portugueses, já que as terras do litoral pertenciam ao
Manicongo. Quando perceberam que os portugueses vinham para ficar, os próprios congueses começaram a lhes dar combate, em 1575, através do seu líder regional conhecido como
kassanje.
Mas logo que os portugueses começaram a subir o rio Kwanza, o Angola entrou na guerra dando-lhes combate, já no ano de 1579. Os portugueses responderam com uma violência cruel, decapitando os chefes que faziam prisioneiros e incendiando as cabanas das aldeias com famílias inteiras dentro.
Os dongos respondiam com uma tática de guerrilhas, que fustigava os portugueses, com avanços e recuos, levando estes construir um forte na embocadura dos rios Kwanza e Lucala, o forte de Massangano (na foto acima à direita as ruínas do forte atualmente e à esquerda, o rio Kwanza e a igreja de Muxima, vistos do forte, em foto de 1961), onde se entricheiraram e onde morreu e foi enterrado o donatário da capitania, Paulo Dias de Novais, em 1589.
O objetivo principal dos portugueses era chegar a Cambambe, onde supunham estar as minas de prata, o que só conseguiram em 1603, comandados por um tal Manuel Cerveira Pereira, que tratou de fazer um armistício com o Angola, enquanto verificava que as minas só continham chumbo.
Muitos haviam morrido por uma quimera.
Logo os portugueses, que na época estavam dominados pela Espanha, se desinteressaram da conquista e voltaram a mercadejar com escravos. a cidade fundada pelos portugueses, São Paulo de Luanda se transformou num grande entreposto de escravos. Entre 1575 e 1591 contaram-se 52.053 cabeças embarcadas.
Os Imbamgalas
As sociedades africanas, tradicionalmente, se organizavam em torno do poder matrilenear e da suserania. Assim um rei, casava-se com várias esposas, cada uma de um clã diferente, e depois da sua morte os chefes dos clãs se reuniam para decidir qual filho do rei morto assumiria o trono, promovendo uma rotatividade do poder entre os clãs.
Os chefes dos clãs eram vassalos do rei, mas o sucessor real era escolhido por eles, dentre os filhos do rei, num esquema de rotatividade que garantisse a participação de todos os clãs no poder.
Sociedades guerreiras, como a dos jagas, por exemplo, eram excessões. Nelas, o poder não era hereditário, nem a identidade do grupo era étnica, mas sim ritual. Era através da submissão a um rito que um indivíduo passava a pertencer à sociedade, mesmo que viesse de outro povo.
Geralmente essa quebra da tradição, transformando uma sociedade tradicional numa sociedade guerreira, se dava quando um grupo entrava em decadência, por questões econômicas-ambientais (uma grande seca por exemplo) ou por pressão de guerras que desestruturavam os micro-estados, levando a migrações forçadas.
Parece ter sido esta a origem dos imbangalas, que se transformaram numa sociedade guerreira, móvel. Eles vieram do leste e eram comandados por um líder do povo lunda, a quem chamavam de quingúri, originários do centro da África. Na sua marcha para o oeste, os imbangalas encontraram o reino do Libolo, ao sul do rio Kwanza, cuja organização era extremamente centralizada e disciplinada em torno de um exército em constante prontidão, que tinha o nome de quilombo.
Nesse reino, embora sedentarizado, as estruturas matrilineares tinham se dissolvido e os ritos iniciáticos se davam em torno de uma terrível cerimônia, conhecida como maji a samba, que consistia no preparo de um unguento, à partir de gordura humana, feita com crianças mortas, misturada com ervas, que ao ser passada sobre o corpo dos guerreiros, os tornaria invulneráveis às armas dos inimigos.
Os
imbangalas adotaram o rito do
maji a samba, a estrutura militar do
quilombo, e se fragmentaram em vários grupos, nos quais bastava um guerreiro se desligar de uma comunidade e se besuntar com o unguento mágico para se proclamar um
senhor da guerra ou rei
imbangala. Um de seus ritos de iniciação, consistia em arrancar os dentes caninos dos rapazotes, o que fez com que os portugueses, mais tarde, passassem a chamar quem não tinha os dentes da frente de
bangalas ou
banguelas. O
Angola, deu combate a esses grupos, que acabaram se refugiando no litoral, onde entraram em contato com os portugueses, na foz do rio Cuvo. Os
imbangalas, ao verem as caravelas lusitanas, pediram ajuda para atravessarem o rio, em troca se ofereceram para
prear escravos. À partir daí começou uma longa cooperação entre portugueses e os grupos
imbangalas, que eram temidos pelos
andongos, que os tinham na conta de antropófagos. Os portugueses inicialmente os confundiram com os
jagas, que assolaram o reino do Congo e por isto às vezes os chamavam assim.
O novo governador designado para Luanda, em 1611, Bento Banha Cardoso, se aproveitou dessa colaboração para fazer uma aliança militar com Kulashingo, um líder imbangala e romper o cerco em que viviam os portugueses, nos seus fortes e teve algumas vitórias militares importantes.
Em 1617, um novo governador Luis Mendes de Vasconcelos, chegou e resolveu tentar novamente fazer a guerra aos andongos, porém Kulashingo havia desertado, rumando para o sertão, onde se estabeleceu como um novo rei, entre os rios Lui e Cuango.
Nessa época, um novo Angola havia assumido, o rei Mbandi. As tropas portuguesas, sem o apoio do principal chefe imbangala, mais uma vez conseguiam avanços temporários, mas depois eram obrigadas a recuar. O Angola mantinha sua tática de se retirar para depois voltar a atacar, fustigando as forças portuguesas.
Jinga, a rainha guerreira
Em 1621 Portugal enviou um novo governador, Luis Correia de Sousa, que apressou-se a fazer a paz com o Angola. Para negociar a paz, o rei andongo mandou a Luanda sua irmã, Jinga, que muito altameira, avisou os portugueses que estava ali para negociar de igual para igual, fazendo uma séire de exigências para interromper a guerra.
Dois anos depois, com a morte de seu irmão, ela assumiu o trono do reino Andongo, sendo a primeira mulher a se tornar Angola. Para ser respeitada entre os clãs andongos, ela não aceitava o título de rainha e resolver se tornar socialmente homem, se fazendo chamar de rei, lutando como um soldado à frente de seu exército e mantendo um harém de homens vestidos de mulher.
Como as negociações com os portugueses não avançassem, Jinga se casou com um chefe imbangala, chamado Kaza, assumindo a importante função que os imbangalas reservavam às mulheres, de ministrar o unguento mágico maji a samba aos seus guerreiros.
A partir daí Jinga se libertou da estrutura matrilenear dos clãs que comandavam seu reino e imbangalizou seu exército, tanto no recrutramento quanto nas técnicas de combate, declarou guerra aos portugueses e mandou avisar a todos os africanos residentes em Luanda que lhes oferecia proteção e asilo, se eles abandonassem os portugueses.
De uma hora para outra Luanda se esvaziou de escravos e africanos livres e os portugueses se viram privados de sua mão de obra e de soldados para seus exércitos.
Como reação os portugueses se voltaram para os velhos clãs andongos, que não aceitavam as transformações promovidas por Jinga e nomeoaram um novo Angola, títere, chamado Ari Quiluanje, que se proclamou vassalo do rei de Portugal.
Jinga atacou a todos e "...derramou a guerra por toda parte".
Dois acontecimentos vieram a ajudá-la: uma epidemia de varíola, que matou o angola dos portugueses e boatos sobre uma possível invasão holandesa, que desviaram os esforços lusitanos. Com a morte de Ari Quiluanje, os portugueses entronizaram outro angola e o batizaram com o nome de Filipe.
Com o apoio dos súditos de Filipe, os portugueses prosseguiram na guerra, tendo uma vez encurralado as forças de Jinga junto ao penhasco da Quina Grande dos Ganguelas. Ela, porém, surpreendeu-os fazendo seus homens descerem o precipício em cipós para o vale dos rios Lui e Cuango.
Jinga aumentou seu poder conquistando o reino vizinho de
Matamba, tradicionalmente governado por uma mulher. Depois passou a guerrear aquele
imbangala Kulashingo, isolando-o dos portugueses e conquistando o acesso ao mar, onde passou a adquirir armas dos navios holandeses e a controlar o tráfico de escravos dos
pumbeiros.Depois de mais de 15 anos, os portugueses finalmente reconheceram que a guerra não valia a pena e que teria sido melhor negociar com
Jinga.
"O próprio governo de Lisboa admitiria o erro e recomendaria, em outubro e novembro de 1641, que fosse corrigido, devolvendo-se à rainha Jinga o reino do Dongo, que dela havia sido "injustamente retirado". Era tarde. Em agosto daquele ano, Luanda já tinha sido tomada pelos holandeses".