Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Histórias de outras vidas (27)

ALGUÉM MORREU NO ANDAR DE BAIXO

     Corria o ano de 1996 e eu morava em Ilhéus com meus filhos pequenos, um com sete e outro com nove anos. Como nossa casa no bairro do Pontal estava em reformas, passamos um tempo em um pequeno apartamento de veraneio de meus pais, em Olivença.Eram doze apartamentos, seis térreos e seis no segundo pavimento.
     O nosso ficava no segundo andar. Durante a semana éramos os únicos moradores, mas aos sábados e domingos o condomínio se enchia de gente de cidades vizinhas,especialmente Itabuna, a apenas 30 Km, que vinham para a praia.
     Eu não gostava desses fins de semana, principalmente dos domingos, quando um tipo de gente barulhenta e mal educada se apossava da piscina, ouvia som alto e fazia churrascos e em meio a muita cerveja.
     Num sábado, eu ia chegando da rua e estacionei no terreno ao lado. A porta que ligava o estacionamento ao interior do condomínio dava para um quiosque de apoio à piscina e ao entrar me vi no meio de um churrasco, de uma gente de quem eu não gostava.
     Era um homem gordo, de uns cinqüenta anos, que falava alto e bebia muito. Já o tinha visto conversando com meu pai.
     Ele estava sentado numa mesa, com uma mulher e um outro homem, mais jovem e magro, ao lado da churrasqueira. Ao me ver, me chamou, e não tive como escapar de sentar à mesa, comer um pouco de churrasco e dar uns goles na cerveja. Na conversa me apresentou a mulher, como sendo sua companheira e o outro como um amigo de Itabuna.
     Rondando em volta da mesa, uma gata miava pedindo pedaços de carne, ronronando e se roçando às nossas pernas. A conversa fluiu entre coisas óbvias e chatas, que pareciam ser chatas também para a bela mulher, de longos cabelos negros. Eu procurava fingir interesse, enquanto planejava minha fuga, e ela se mantinha alheia, apenas fingindo que participava da conversa.
     De repente ela deu um grito e olhou por baixo da mesa.
     _Essa gata me deu uma mordida! Exclamou.
     Todos procuramos a gata que saiu correndo, dando um miado esquisito. Foi uma coisa muito estranha.
     Aproveitei a deixa pra fugir rumo ao meu apartamento.
     Naquele dia um amigo veio nos convidar para uma festa de São João, no outro lado da cidade. Fiquei sem muita vontade de ir, mas como ele viera de longe, de ônibus, só para nos convidar, resolvi aceitar o convite.
     Arrumei os meninos e fomos a tal festa, mas acontece que deu dez horas e nada do conjunto começar a tocar, 10 e meia e nada, aí resolvi voltar pra casa. Não gostava de ficar com os meninos na rua à noite, em festas de adultos. Era adepto de dormir e levantar cedo, como hábito salutar para as crianças, por isso só saía quando eles ficavam na casa de alguém.
     Meu amigo não gostou, mas nos acompanhou ao apartamento, para dormir no sofá da sala.
     Ao chegarmos, umas onze da noite, o condomínio estava deserto. Pela manhã, acordei bem cedo, como de costume e fui caminhar na praia. Deviam ser umas cinco horas quando saí. Ao chegar à praia resolvi caminhar para a esquerda, pois o dia ainda estava clareando e eu tinha medo de andar àquela hora perto de umas moitas que haviam para o outro lado, onde já tinha visto uns vagabundos dormindo. Fui até o clube do antigo Baneb e retornei. No caminho de ida encontrei apenas um casal de meia idade, daqueles que gostam de se exercitar bem cedo. Ele magro e alto, os dois bem brancos. Ao chegar na entrada do condomínio achei que podia caminhar mais um pouco, e como estava bem claro, prossegui para o outro lado, até as pedras que interrompiam a praia.
     Umas seis horas voltei ao apartamento. Meu amigo já estava de pé e querendo ir embora. Disse a ele que não podia levá-lo àquela hora, pois estava cansado, queria tomar um banho, um café e dar uma descansada. Ele, porém, estava inquieto, irritado com a festa perdida e disse que ia de ônibus mesmo. Saiu batendo a porta.
       Tomei um banho frio e resolvi me deitar mais um pouco. Passada uma meia hora, ouvi batidas na porta. Era ele voltando. Havia se cansado de esperar um ônibus àquela hora do domingo. Mas não era só isso, ele parecia assustado e estava mais agitado. Me disse:
     _Tem alguma coisa acontecendo aí embaixo. O vizinho está tentando arrombar a janela dizendo que a mulher não quer abrir a porta do quarto.
     Desci e vi o mesmo homem gordo do dia anterior, ajudado por seu amigo mais jovem, tentando arrombar a janela do quarto que ficava bem embaixo do meu. Limpando a piscina o caseiro do condomínio comentava em tom debochado:
     _Hoje vamos ter defunto fresco aqui!
     Subi as escadas e acordei os meninos, pressentindo que era melhor sair dali.
     Enquanto arrumava nossa saída, meu amigo desceu e subiu com a notícia: a mulher que a gata mordera na véspera estava morta na cama, com um tiro.
     Pedi a ele que levasse os meninos para o carro sem deixá-los ver a cena e tratei de fechar a casa. Sabia que, sendo o único morador, certamente seria chamado para depor e não queria me meter naquela confusão. Ao descer fiz questão de olhar a cena do crime. A mulher estava estendida na cama, morta. Seus cabelos cheios de sangue se esparramavam pelo lençol.
     Passei a manhã na casa de meu amigo e já por volta das duas da tarde retornei, parando primeiro na casa de veraneio de meu irmão, próxima ao condomínio. Lá encomendei um almoço ao restaurante vizinho e pedi ao caseiro que desse uma olhada para ver como estava a situação. Finalmente, quando a polícia saiu, retornamos ao apartamento e nos trancamos lá dentro. Tudo do lado de fora estava deserto e lúgubre.
     Dias depois fui intimado a depor. Contei tudo o que havia visto e feito à delegada e sua assistente. Quando terminei elas disseram que eu havia acabado de desmentir todo o álibi do marido e do seu amigo, assim como do caseiro do condomínio.
     Eles haviam dito que deram uma festa até uma hora da manhã e que de manhã o tal gordo havia ido caminhar na praia. Nós chegamos às onze da noite e não havia festa nenhuma. Se ele tivesse ido caminhar na praia eu o teria encontrado, pois andei no mesmo horário que ele declarou e nas duas direções. Também a descrição da cena do crime não batia com o que eu havia visto, o que indicava que havia sido modificada por eles.
     Fiquei estarrecido. Eu era a única testemunha de um assassinato e morava sozinho com meus filhos no local do crime, do qual certamente o caseiro tinha sido cúmplice. O que fazer?
     Tratei de voltar rapidamente para minha casa no Pontal e dois anos depois soube que tinha sido intimado a depor no júri. Mas nessa época eu já havia me mudado para Vitória da Conquista e quando soube da intimação o julgamento já havia ocorrido.
     Não sei qual foi o veredito, só soube que o tal gordo morreu pouco depois em um acidente de carro. Quanto ao caseiro, ainda o vejo quando volto ao local para veranear. Continua lá, com seu sorriso debochado. O amigo do gordo era conhecido de amigos meus de Itabuna.
     Sempre me lembro da bela mulher assassinada na flor da juventude, injustiçada por alguma trama sórdida, urdida por aqueles dois. Me lembro também da gata que a mordeu, como se tivesse querendo avisá-la do perigo que corria.
     Depois disso passei a observar mais os animais, acreditando que eles podem emitir sinais de perigo próximo.

Boa segunda-feira a todos.

Ricardo Stumpf Alves de Souza