Civilização e barbárie III
Piratas, corsários e escravidão
A pirataria nos mares, em especial no Atlântico, se desenvolveu largamente na época das grandes navegações, entre os séculos XV e XIX.
Na medida em que portugueses e espanhóis dividiram o mundo entre eles, pelo tratado de Tordesilhas, aprovado pelo papa Alexandre VI, que era espanhol, as potências emergentes, França, Inglaterra e Holanda, não tinham como conquistar novas terras e por isso se associaram a piratas, para que eles atacassem os navios espanhóis e portugueses no Atlântico, que voltavam à Europa cheios de riquezas. Para que seus governos não ficassem comprometidos com essas ações, os governos desses países faziam acordos secretos com os piratas e assim podiam alegar que não tinham nada a ver com os ataques.
Daí surgiu a separação entre os conceitos de pirata e corsário. Piratas eram bandidos que agiam por conta própria e corsários eram contratados por países, para cometerem seus crimes.
Nessa época surgiram piratas e corsários franceses, holandeses, portugueses, espanhóis, chineses, irlandeses e até argentinos, mas o início dessa atividade está ligado às primeiras navegações gregas e romanas, quando esses estados atacavam comunidades costeiras para escravizar seus habitantes e pilhar suas riquezas.
Primeiro a Grécia e depois Roma, foram estados escravistas e precisavam de crescente mão de obra para gerirem suas economias. Como os escravos não se reproduziam em quantidade suficiente, era preciso capturá-los em outros países ou comprá-los de piratas para alimentarem seus mercados, o que estimulava essa atividade.
Os vikings e celtas e também praticavam as pilhagens e capturas de seres humanos para escravização. Como já vimos anteriormente, a escravidão era uma instituição generalizada no mundo.
Os piratas da Barbária
Uma jovem européia é vendida em um mercado de escravos no norte da África
Mais tarde os árabes se especializaram, montando verdadeiras esquadras para atacar navios e povoações, pilhando navios e cidades na Europa e aprisionando seres humanos que eram reduzidos a escravidão. Eles agiam à partir de portos localizados no norte da África, no que seria hoje o litoral da Argélia, Tunísia e Líbia, região conhecida antigamente como Berbéria (dos bérberes). As capitais da pirataria eram Argel e Trípoli, que apesar de fazerem parte do império Otomano, eram praticamente autônomas, sendo governadas por lideranças militares que cobravam 10% do produto dos saques. Esses líderes eram conhecidos como Paxás ou Beis.
Os piratas da Berbérie (ou Barbária) atacavam principalmente navios e portos do mediterrâneo e do nordeste do oceano Atlântico, mas chegaram a fazer muitos prisioneiros na ilha da Madeira, nos Açores, na costa atlântica da Península Ibérica, na Irlanda, Islândia, Groelândia e até no norte do Brasil. Os indivíduos capturados eram vendidos como escravos nos mercados do norte da África, na Turquia e em todo mundo muçulmano.
Sua atividade durou até 1830, quando a França conquistou Argel.
Entre as populações aprisionadas e reduzidas à escravidão pelos piratas árabes, encontravam-se vários brasileiros e também norte-americanos. Como a quantidade de escravos era muito grande, foram criadas organizações de caridade para juntar fundos e resgatar escravos através do pagamento de resgates.
Em 1720 frades
trinitários conseguiram resgatar 365 cristãos que estavam escravizados em Argel, dentre eles os brasileiros, padre
Romão Furtado de Mendonça, natural do Rio de janeiro, de 27 anos,
Miguel de Sequeira, marinheiro paraense de 57 anos, uma maranhense de nome
Esperança, de 25 anos e
Manuel Tapuia, paraense de 14 anos, todos passageiros de um veleiro aprisionado nas costas do Maranhão e já com um ano de cativeiro. Foi libertada ainda uma mulher de nome
Maria, pernambucana de 26 anos, que estava cativa há 12 anos e sua pequena filha Josefa, que tinha nascido em Argel.
Em 1731 foram resgatados mais 193 cativos, entre eles o padre,
Francisco da Rocha Lima, paraense de 42 anos e três de cativeiro,
Inácio Machado, sergipano de 23 anos e cinco de cativeiro.
Em 1739 mais 178 cativos foram resgatados, entre eles uma mulher de nome
Maria Luisa, baiana, com 21 aos e dois de cativeiro e
Antonio Fernandes da Silva, marinheiro pernambucano de 27 anos e quatro de cativeiro.
Em 1784 dois navios norte-americanos, o
Maria de Boston e o
Dauphine de Filadélfia, foram capturados vendidos e seus tripulantes reduzidos à escravidão durante 11 anos.
Dentre os piratas árabes mais famosos, destacam-se os irmãos
Barbarossa, Hizir (à direita) e
Aruj; Turgut Reis (ou
Dragut);
Kurtogoli; Kemal Reis; Salih Reis e
Murat Reis, cujo nome de batismo era
Jan Janszoon, nascido holandês, e que atacou as costas da Islândia.
Os ingleses
Traficantes de escravos ingleses, no tempo dos romanos, capturavam pessoas pobres de seu próprio país para vendê-los nos mercados de escravos em Roma e muito depois, na época colonial, passaram a pilhar todos os continentes, muitas vezes sob ordens da própria Rainha, como forma de enfraquecer os impérios português e espanhol.
A Rainha Elizabeth inaugurou a atividade de contratar corsários, para roubar as cargas dos galeões espanhóis e portugueses que cruzavam o atlântico. Muitos desses corsários ingleses eram nobres e até oficiais da marinha britânica, que realizavam essa atividade paralela acobertados pelo seu próprio governo.
Dentre os piratas ingleses que assolaram nossas costas, os mais famosos foram; John Hawkins, (à direita) que era traficante de escravos, Francis Drake, (à esquerda) também traficante de escravos, Thomas Cavendish, que era um nobre inglês, Walter Raleigh, Henry Morgan (que pertencia a uma família de militares) e Jack Rackham.
Muitos desses foram condecorados pela rainha e são tratados como heróis até hoje, apesar de serem especialistas em torturar, matar e escravizar pessoas inocentes, sem falar nos roubos e pilhagens a cidades inteiras, inclusive no Brasil.
O império inglês foi construído sobre os produtos desses roubos e saques, que encheram os cofres da Inglaterra, até então um país pobre e atrasado.
Thomas Cavendish (à direita) atacou a cidade de Santos no dia de natal de 1591. Os corsários abriram fogo contra a cidade que era apenas um pequeno povoado, quando seus habitantes estavam na igreja e depois tomaram o lugar, permanecendo lá por dois meses, até não terem mais o que pilhar. Depois foram atacar o Espírito Santo, mas foram derrotados pelos moradores, e a vila que se defendeu bravamente passou a se chamar Vitória, em homenagem ao combate, hoje é a capital do Estado.
Robert Withrington (à esquerda) e Cristopher Lister atacaram o recôncavo baiano por seis semanas, de abril a junho de 1587 e foram expulsos pelo governador Cristóvão de Barros, com a ajuda de índios flecheiros.
Em 29 de março de 1595 James Lancaster tomou o porto de Recife, permanecendo lá por 31 dias, carregando seus três navios e mais outros doze que alugou de franceses e holandeses, com o fruto das suas pilhagens.
Franceses e holandeses
Piratas e corsários franceses também atacaram o Brasil em seguidas ocasiões. Esses, além de pilhar e saquear os navios e as povoações costeiras, ainda sequestravam pessoas para vendê-las aos índios canibais, para que as comessem. Assim, as pessoas sequestradas eram reduzidas a não mais do que gado para o abate. Um deles foi Adolfo Mabile, que operava no delta do Parnaíba, no litoral do Piauí.
Outro francês foi
Jean François Duclerc (à direita), que atacou o Rio de Janeiro em agosto de 1710 no comando de seis navios, sendo repelido pelo fogo das fortalezas de Santa Cruz e de São João, rumando então para a Ilha Grande, famoso refúgio de piratas e de lá saqueando fazendas e engenhos. Tentaram ainda uma invasão por terra que também fracassou. Duclerc foi preso e posteiromente morto na prisão.
No dia 12 de setembro do ano seguinte, 1711, o corsário
René Duguay-Trouin, (à esquerda) também atacou o Rio de Janeiro, desta vez à frente de uma esquadra de 17 navios e mais de 5.000 homens, conseguindo tomar a cidade, que teve que pagar um resgate de 610.000 cruzados em moeda, 100 caixas de açúcar e 200 cabeças de gado bovino para se livrar dos agressores.
Dentre os holandeses, antes da invasão holandesa propriamente dita, destaca-se Paulus Van Caarden, que atacou Salvador e o recôncavo baiano em 1604.
A diferença entre os corsários ingleses e os franceses e holandeses, é que esses últimos faziam parte de planos para instalação de colônias fixas de seus países, como ocorreu com os franceses no Rio de Janeiro e no Maranhão e com os holandeses na Bahia e Pernambuco, enquanto os ingleses, embora tenham tentado algum tipo de ocupação na Amazônia e no Vale do Paraíba, nunca chegaram a ter um projeto de colonização de grande porte no Brasil, se limitando às pilhagens.
Portugueses
Durante a unificação de Portugal e Espanha, entre 1580 e 1640, período conhecido como união ibérica, muitos portugueses que não aceitavam o domínio espanhol se aliaram a corsários de outras nações para dar combate aos navios e colônias da Espanha. Como eram exímios navegantes e conhecedores dos mares, muitos deles foram usados como pilotos, como foi o caso de Nuno da Silva, recrutado em Cabo Verde pelo corsário inglês Francis Drake e que o conduziu na travessia do Estreito de Magalhães, no extremo sul da América, para chegar depois às costas do Perú, onde promoveu saques, permitindo-lhe ainda circundar o mundo em 1578.
Sabe-se que um piloto português chamado Diogo Peres conduziu o pirata inglês James Langton em um saque aos espanhóis no Caribe e que os irmãos portugueses, Simão de Cordes e Baltazar de Cordes, tornaram-se os primeiros corsários holandeses, tendo atacado e saqueado a colônia espanhola do Chile entre 1598 e 1600.
Outros corsários portugueses, ambos judeus, foram,
Moises Cohen Enriques, que baseado na Jamaica e à serviço dos holandeses, atacava os navios espanhóis que seguiam entre Cuba e Cadiz, na Espanha, e
David Abravanel, que se aliou ao inglês Francis Drake.
Ainda no Caribe, Bartolomeu, o português, e Rock Brasiliano, (este um holandês que havia vivido no Brasil) se tornaram tristemente famosos pela violência contra suas vítimas, especialmente os espanhóis.
Ao contrário dos ingleses, os portugueses não se orgulham das histórias de seus piratas, e procuram escondê-las, principalmente o fato de que muitos deles estavam à serviço do próprio rei de Portugal.
Chineses
Houve também uma famosa pirata chinesa, que aterrorizava os mares do oriente.
Cheng I Sao foi uma prostituta, antes de juntar-se ao pirata
Cheng I e após a morte dele passou a comandar uma frota de cerca de 800 barcos de grande porte e 1.000 menores, divididas em seis esquadras, chegando a comandar mais de 70.000 homens. Também era conhecida por sua violência e crueldade contra suas vítimas.
Argentinos
Em 1827 ocorreram tres ataques de corsários argentinos à Ilha Grande, no litoral do estado do Rio: um contra a fazenda Dois Rios, outro na Ponta dos Castelhanos e outro na Enseada das Palmas, todos repelidos pelos fazendeiros e militares brasileiros. No último ataque os argentinos perderam um navio que foi incendiado.
Também há notícias de piratas argentinos e irlandeses nas águas do Piauí e do Maranhão.
A luta entre civilização e barbárie
Diante de tanta violência, praticada por bandidos avulsos ou patrocinada por potências européias, fica difícil diferenciar onde estava a barbárie e a civilização. O saque de Espanha e Portugal (e posteriormente de Inglaterra e França) sobre as colônias, o extermínio e a escravização de tantos povos, principalmente de africanos para servirem de mão de obra na empreitada colonial, tudo isso se divide por uma tênue linha entre o que seria legal e o que seria simplesmente selvageria, promovida pelo mercantilismo e pelo escravismo.
Para nós, brasileiros, enquanto nascia o sentimento da nacionalidade, nossas riquezas eram saqueadas, por colonizadores com a benção papal ou por piratas que primavam pela crueldade e desumanidade, muitos deles patrocinados por reis e rainhas.
Mesmo entre nós, a barbárie da escravidão prosseguiria até 1888, e os hábitos de canibalismo entre os indígenas ainda eram comuns, o que demonstra que a civilização está sempre em constante luta contra a barbárie e, ainda hoje, a consolidação da democracia está longe de construir um estado capaz de prover uma verdadeira justiça social, embora tenhamos avançado bastante nos últimos anos.
Civilização é, uma palavra com muitos significados, mas parece apontar para uma ordem jurídica consolidada através de um Estado, onde os direitos sejam estendidos a todos os cidadãos.
Na historiografia, o termo civilização significa a superação do tribalismo e a constituição de um estado, seja reinado, império ou república, onde haja a palavra escrita e a existência de cidades, mesmo que mantenha parte da população escravizada ou submetida de alguma forma às classes dominantes.
A evolução do termo vem se dando no sentido da ampliação dos direitos de cidadania a todos os seres humanos, principalmente após a Declaração dos Universal dos Direitos Humanos, aprovada pelas Nações Unidas em 1948, há escassos 64 anos. Mas as constantes guerras e genocídios promovidas pelo capitalismo, e a pobreza em que vive grande parte da humanidade, ainda deixam essa linha entre civilização e barbárie longe de uma definição clara.