Fantasmas da Tortura
Bucarest 187, este é o título do livro de Patrícia Verdugo (Editorial Sudamericana, Santiago do Chile - 1999), que acabo de ler, na edição em espanhol. Pesquisei na Livraria Cultura e não achei esse título em Português. Achei outros três (A Caravana da Morte; Como os EUA derrubaram Allende, ambos pela editora REVAN e Salvador Allende: o crime da Casa Branca, Ed. Campo das Letras) da mesma autora.
A jornalista Patricia Verdugo
A revista Ercilla, ligada ao Partido Democrata-Cristão, foi o único órgão de imprensa de oposição tolerado pelo regime, embora vigiado de perto e sob rígida censura.
Seu depoimento impressiona por não se tratar apenas de denúncias, nos dando um panorama amplo sobre o que as pessoas falavam, sentiam, como era a vida nessa época e como era difícil, quase impossível, fazer um jornalismo de oposição naquele contexto, nos dando uma dimensão do terror que foi imposto àquele povo por 18 anos.
O título se refere à Rua Bucarest, no 187, endereço da casa de seus pais em Santiago, de onde seu pai foi levado numa noite para ser assassinado. A busca de uma explicação para sua morte se torna uma obsessão que a leva ao longo de 20 anos a buscar descobrir o ocorrido, e por aí vai desvendando toda a estrutura do aparelho repressivo da ditadura e sua impressionante seqüência de crimes, dispondo livremente da vida de qualquer cidadão, com requintes de crueldade inexplicáveis.
Aliás, já comentei aqui o livro de João Ubaldo Ribeiro (Diário do Farol), que tenta reconstruir a personalidade de um torturador desde a sua infância, criando supostas motivações para as distorções que surgem no seu caráter.
Patrícia comenta sobre isso também, mas não apenas sobre os torturadores. Comenta que numa ditadura (de direita ou de esquerda) se libertam todos os mais baixos instintos dos seres humanos criando-se um ambiente extremamente propício para que todo tipo de baixeza e vilania seja perpetrado por aqueles que tem prazer nisso ou que, por qualquer motivo, não tenham uma formação moral e ética que os obrigue a agir responsavelmente. É a famosa caixa de Pandora da mitologia grega: uma vez aberta não há como controlar o mal que sai dela.
Esse tema da tortura já foi bastante explorado no Brasil, especialmente na década de 80, e eu não queria ter de tratar do assunto na visita ao Chile, mas acabou sendo inevitável porque todos tem alguma história a respeito para contar. É um país cheio de cicatrizes, muitas ainda abertas.
Mas uma dessas histórias me pegou de surpresa, porque ultrapassa a simples memória e as questões de justiça envolvidas. Observem.
Uma psiquiatra recebe como paciente um ex-torturador e mesmo tendo uma forte repulsa pelos atos que ele cometeu não pode se negar a tratá-lo, por uma questão de ética médica. Nos seus depoimentos o militar não se mostra arrependido de nada e relata as atrocidades cometidas com frieza, mas ao mesmo tempo começa a relatar umas visões que tinha com uma moça que havia sido torturada e morta enquanto estava grávida, fato testemunhado por ele. Ela lhe aparece sempre agressivamente, fazendo-o se sentir muito mal. Ele conta à psiquiatra que as aparições já duram anos e o atormentam a ponto de não deixá-lo dormir, trabalhar ou se relacionar com sua própria família.
A médica finalmente um dia lhe aconselha que pergunte à moça o que ela quer com ele.
Ele segue o conselho e surpreendentemente a aparição lhe pergunta sobre seu filho, sem saber que ele havia morrido também. Ele explica a ela o que aconteceu e uma grande transformação ocorre. A jovem deixa de ser agressiva, passa a tratá-lo com compreensão e pede que ele visite sua família.
O ex-militar atende seu pedido e após a visita finalmente alcança compreender todo o mal que tinha feito, mergulhando numa profunda crise de consciência. A jovem continua a aparecer e a dialogar com ele, ajudando-o a superar sua culpa até que ele consegue se recuperar, volta ao seio de sua família e reinicia sua vida com novo trabalho, recebendo alta do tratamento psiquiátrico.
O dilema da psiquiatra era saber se tudo aquilo não passava de obra de uma mente doentia ou se realmente houve um contato espiritual com a vítima. Como médica tinha que se ater à ciência, mas como pessoa não podia deixar de acreditar que tinha testemunhado um encontro extraordinário.
O mais interessante nessa história é a força do perdão como caminho para a reabilitação de um espírito atormentado.
Uma lição sobre a qual todos nós deveríamos refletir.
Abraço a todos
Ricardo Stumpf