O CAVALO DISPAROU
O ano era 1957? Talvez 58 ou 59, não sei. Sei que já tinha coordenação suficiente para andar à cavalo.Cavalgava-se em pelo, ou sem sela.. No máximo jogava-se sobre o lombo do animal um pequeno acolchocado, forrado com panos quadriculados, que minha mãe fazia na sua máquina de costura.
O cavalo era o Castanho, que normalmente puxava a charrete e que tinha o mau hábito de disparar quando se assustava, principalmente com o apito do trem, a velha maria-fumaça que levava camarões de Cabo Frio para Niterói e passava em Araruama, às 7,05 da manhã.
Nosso sítio ficava nos arredores da cidade, na saída para São Vicente. Tínhamos 365 coqueiros anões, que nos forneciam farta produção de cocos, que meu pai abria para nós no carramanchão de sapê que ele mandou construir para isso e também para servir de garagem para o carro, almoços e encontros familiares, com as redes preguiçosas que se entrelaçavam ligando os pilares de madeira.
Me lembro dele ainda jovem, embora já careca, com um facão na mão, abrindo os cocos para mim numa taboa que funcionava como uma espécie de balcão. Eu bebia a água e devolvia o coco, que ele abria com um golpe seco e me devolvia para comer a polpa. Sua habilidade e força no manejo do facão me impressionavam e me faziam sentir seguro e protegido. E ele parecia gostar de me impressionar.
Meu único irmão, cinco anos mais velho, tinha outros amigos, outras brincadeiras e não havia uma cumplicidade real entre nós. Ao contrário, houve sempre uma rivalidade, baseada em algum tipo de ressentimento por eu ter acabado com a sua posição de filho único. Mas nessa época, antes que a modernidade de Juscelino Kubitscheck nos envolvesse no turbilhão da mudança para Brasília, ainda havia alguns interesses comuns entre nós.
Um dia, em Araruama, o pai e mãe tinham saído e ele me olhou com aquele jeito meio sádico que ele tinha, quando queria me torturar um pouco, e me propôs pegarmos o Castanho para dar uma volta. Sem arreio, jogamos a manta em cima, ele montou e me colocou na garupa, dizendo que eu me segurasse na sua cintura, enquanto se agarrava na crina do cavalo.
Descemos a rua lateral, à passo. Essa rua só dava acesso à nossa casa e por isso estava sempre tomada de mato, um capim alto que ameaçava tomar conta do caminho marcado pelas rodas do velho Standard, o carro inglês de meu pai. Embaixo, viramos à esquerda e tornamos a subir, desta vez em direção a São Vicente, na rua principal, onde passava o único ônibus, vermelho e amarelo, do Expresso Araruama, dirigido por Durval, seu proprietário.
O cavalo ia tranqüilo e fomos subindo. Paramos no topo, uns dois quilômetros adiante, para olhar a paisagem. Não me lembro se íamos adiante ou não, mas o fato é que o cavalo se assustou com alguma coisa e disparou ladeira abaixo, no rumo de casa, enquanto nos segurávamos como podíamos, eu magrinho e leve, agarrado na cintura dele, e ele no pescoço do cavalo.
O acolchoado começou a deslizar para o lado esquerdo, nos levando juntos. Ao nos aproximarmos da esquina, onde certamente o cavalo iria virar, ele me gritou para pular no capinzal, assim que ele desse o sinal, enquanto continuávamos a escorregar para o lado e para trás. O cavalo dobrou à toda e ele gritou:
_Agora!
Me joguei e saí rolando no mato, que amorteceu minha queda. Logo adiante o vi despencar para o lado esquerdo, enquanto o cavalo passava galopando pela porteira aberta. Ninguém quebrou nada, mas ele se queixou de dores no braço e na perna e sob severas ameaças me proibiu de contar qualquer coisa para o pai ou a mãe.
Nesse dia, sua maneira de me oprimir revelou o que eu veria nele pelo resto da vida: fragilidade.
O ciúme e o ressentimento que o levavam a tentar me machucar, faziam com que ele se machucasse mais do que eu.