Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 27 de junho de 2010

     Histórias de outras vidas (18)

     A VACA MANTEIGA


     Corria o ano de 1968 quando eu e meu irmão fomos convidados para passar as férias na Ilha do Marajó, na fazenda de um primo de meu pai. Aquelas  foram férias marcantes para mim, que estava em época de afirmação, em plena adolescência, perto de completar 17 anos. Meu irmão tinha 21.
     A sede da fazenda era uma casa de dois andares, com instalações de apoio no andar de baixo e residência no segundo pavimento, situada próximo a um rio e sua mata ciliar, nos fundos, e aberta para a imensa planície marajoara, que se escancarava à frente da casa.
     Em época de afirmação, me soltei no Marajó. Como sempre gostei de montar, logo arranjei um cavalo do meu agrado, que os peões já separavam para mim pela manhã. Saía com eles para pastorear o gado e o cavalo era treinado nisso. Aprendi a campear uma novilha rebelde ou mesmo um touro valente, que teimavam em se afastar da boiada.
     Os peões gostavam da minha companhia e eu da deles. Me sentia finalmente um homem, liberto das pressões familiares e prestigiado como jovem que eu era, pelos homens da casa.
     Muitas manhãs pegava o cavalo, a vara de pescar e algumas iscas e saía sozinho, em direção a um rio próximo, para pescar. Voltava carregado de peixes, traíras que eram preparadas no jantar pela esposa do primo, a quem chamávamos tia.
     O primo era um homem interessante. Grandalhão, administrava os bens herdados por sua esposa, principalmente aquela fazenda, onde criava búfalos. Tinha um avião bimotor, um Piper, que nos levava e trazia de Belém, e gostava de carros grandes, como que para mostrar seu poderio econômico.
     Tinha também um gosto pela pesquisa histórica e gostava muito de conversar com os jovens, como éramos. Mas seu aspecto mais intrigante era a necessidade de se impor aos empregados, à natureza, ao mundo. Parece que sob aquela natureza meio abrutalhada, havia uma alma mais refinada que, no entanto, se envergonhava disso.
     Talvez por isso, procurava nos ensinar a não ter pena dos animais. Me lembro de uma vez que nos levou à caça. Mandou que atirássemos em urubus, só para treinar pontaria e depois atirou em algumas garças que estavam pousadas por perto. Garças, evidentemente, não servem como caça, já que quase não tem carne. Uma delas caiu ferida próximo a nós. Ele, então, armou-se de um porrete e nos ordenou que matássemos o bicho a pauladas.
     Tentamos, eu e meu irmão, dar umas pauladas na ave que se debatia, ferida na asa, mas com pena, não batíamos forte o suficiente. Flávio então nos tomou o porrete e acertou três ou quatro pauladas na cabeça da pobre garça. Foi horrível, mas ele vitorioso com a morte do animal, proclamou sua superioridade dizendo que não se podia ter pena de animais.
     Era época de ditadura no Brasil, uma ditadura sustentada, em grande parte pelas oligarquias rurais, como a que ele representava. A afirmação do direito de vida e morte sobre qualquer animal era uma espécie de símbolo do poder oligarca, que se estendia também ao povo. Aliás, ele se orgulhava em dizer que tinha comprado uma ilha no Rio Amazonas, a ilha Mexiana, que fica acima do Marajó, com tudo dentro, inclusive o povo.
     As atitudes de afirmação de nosso primo repercutiam em mim de outra maneira. Me sentindo mais forte e livre, senti ali também um espaço de afirmação masculina. Talvez percebendo isso ele resolveu me testar.
     Havia o hábito, na fazenda, de sacrificar a melhor vaca para o consumo dos proprietários. Era a vaca manteiga. Essas vacas eram mortas nos fundos, entre a casa e o igarapé que passava a uns 200 metros. Não havia matadouro. Tudo era feito no campo aberto.
     Um dia ele me disse que eu é que teria que matar a vaca. Me perguntou se eu seria capaz. Embalado na minha afirmação juvenil, aceitei o desafio. Meu irmão me estranhou e duvidou:
     _Você não vai ter coragem!
     No dia seguinte, pela manhã, os peões vieram me chamar. Muitos já eram meus amigos e me estimulavam, outros me olhavam duvidosos. O capataz me explicou o que eu tinha que fazer. Me mostrou um enorme terçado, um facão muito comprido, e me disse que eu teria que enterrá-lo entre as omoplatas da vaca, que são aqueles ossos que nos humanos ficam nas costas (as asas) e nos bois ficam entre as pernas da frente.
     A técnica era dar um só golpe, certeiro e mortal, que levaria o terçado até o coração do bicho, matando-o instantâneamente. Me explicaram que se eu hesitasse, a vaca ficaria ferida, sofreria muito e não morreria, e para matá-la depois, seria mais difícil, devido à agitação do animal.
     Sentindo a responsabilidade, aceitei, entendi como devia empunhar a faca e desferi o golpe certeiro no coração, matando corretamente a vaca manteiga, que caiu fulminada a meus pés. Seguiu-se um silêncio e senti o respeito entre os peões e também por parte do primo. Depois vieram as exclamações de admiração e respeito e me senti aprovado numa espécie de ritual de passagem.
     A força e a segurança do golpe desferido, não foram só contra a vaca. De um só golpe me livrei de todos os medos e inseguranças da adolescência e iniciei ali minha vida de adulto, sabendo que teria que seguir sozinho meu caminho.

Abraço a todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza



   Razão e Espírito

     Em Brasília, acompanhei minha mãe, já idosa, à igreja que ela frequenta há mais de trinta anos, uma religião japonesa que faz muito sucesso por aqui. Ouvindo seu fantástico coro e depois as palavras de um reverendo sobre a necessidade de espiritualização das pessoas, fiquei pensando ne velha pergunta: porque uma cidade moderna conmo Brasília, construída para ser o exemplo acabado do domínio do homem sobre a natureza, se tornou a capital nacional do misticismo?
     Quem já morou e trabalhou aqui, como eu, sabe a resposta. Dentro da burocracia federal, instalada no Planalto Central, instalou-se a mais mesquinha das máquinas humanas, baseada numa competição injusta, onde quem tem o poder pode tudo e quem é funcionário pode apenas obedecer.
     A relação de funcionários públicos com seus chefes, ministros e partidos políticos que os nomeiam, é uma coisa completamente neurótica. Se o capitalismo já é extremamente competitivo, por natureza, a burocracia, à serviço do capitalismo, ainda por cima regulada por um código completamente ultrapassado, baseado nas idéias verticalistas de Taylor, o homem que inventou a linha de produção, é uma loucura completa.
     Já falei aqui sobre o estatuto do funcionalismo público, que regula as relações de trabalho dos funcionários públicos. Um artigo desse estatuto é emblemático, o que diz que o funcionário tem obrigação de obedecer ao seu chefe sob pena de ser demitido. Ou seja, o funcionário não pode contestar uma ordem errada, tem de obedecer. Não tem direito à uma opinião, nem à mínima dignidade de pelo menos registrar seu desacordo.
     É claro que isso é a base para todo tipo de corrupção, já que, para denunciar um chefe o ônus da prova cabe ao acusador e tem de ser montada uma comissão de inquérito, cuja composição frequentemente fica à cargo do próprio acusado. Some-se isso ao discurso de produtividade e competitividade, incorporado à mente obscura dos nossos administradores na década neoliberal de 1990 e teremos o caldo de cultura para produzir neuróticos em série.
     Obriga-se as pessoas a serem competitivas, num ambiente anti-democrático, onde só o que é perrmitido é obedecer.
     E existe todo um discurso em cima disso, como se daí dependesse o bom desempenho da máquina federal, quando na verdade é aí que mora o erro. Uma máquina mais enxuta, democrática, com menos consultores e mais executores, seria muito mais produtiva e quem sabe, produziria sobre os funcionários um efeito mais relaxante, permitindo que a criatividade aflorasse e, aí sim, a produtividade aumentasse.
     Talvez outro efeito fosse o de esvaziar as igrejas, cujo principal trabalho por aqui está em desfazer o serviço perverso que a máquina administrativa produz sobre os espíritos dos pobres funcionários. No emprego mandam competir, na igreja mandam cooperar. De um lado o egoísmo extremado, do outro o altruísmo total.
     É claro que por trás dos dois discursos existe oportunismo também. Os administradores se beneficiam da fragilidade psicológica dos seus comandados para auferirem suas vantagens. Os padres, reverendos, pastores e outros líderes espirituais também veem suas igrejas se encherem de gente aflita, procurando saídas para suas vidas sem sentido.
     Mas na verdade o que está por trás de tudo isso é o conflito contra a injustiça.
     Sim, muita gente que não aceita injustiças padece muito em todo lugar e não aceita também que elas sejam resolvidas com consolos espirituais, sabendo que tudo isso, no fundo é a mesma coisa, uma grande enganação e que as empresas ou repartições públicas que oprimem seus trabalhadores são apenas um lado da página injusta da verdade, cujo verso são as igrejas que oferecem bálsamos para as vítimas do sistema.
     Países desenvolvidos aprenderam a lidar com injustiças de maneira corajosa, o que infelizmente não é o caso do Brasil. Pergunte a um americano ou a um europeu se ele aceita entregar uma injustiça às mãos de Deus.
     Não.
     Eles aprenderam que só lutando as coisas mudam. Criaram um imenso movimento sindical, fizeram revoluções e movimentos pelos direitos civis, cujos benefícios nós desfrutamos por aqui também, apesar de não termos participado deles.
     No Brasil, uma pessoa que gosta das coisas certas, que não aceita se calar diante de situações erradas, é considerado um chato e logo aparece alguém para lhe aconselhar entregar a Deus. Não é à tôa que os maiores corruptos estão profundamente ligados a movimentos religiosos, que lhes servem como cortina de fumaça para seus negócios escusos e para anestesiar suas vítimas.
     Razão e espírito não precisam andar em direções opostas, mas ao contrário, devem compartilhar uma visão de justiça que liberte o ser humano de espertezas de ambos os lados. A vida após a morte não resolverá os problemas na terra e viemos para esta vida para aprender, para aperfeiçoar o planeta, para progredir e, portanto, para lutar, mesmo que renunciemos à violência. O conformismo religioso e o falso altruísmo que estimula a passividade diante das coisas erradas, só servem aos que não querem mudar nada. 

Abraço a todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza