Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Histórias de outras vidas (17)    

RUA ANDRÉ DA ROCHA

     Era uma pensão, quase no centro de Porto Alegre. Eu havia abandonado Brasília e a casa de meus pais para tentar me encontrar e construir uma vida própria. O ano era 1969 e eu tinha apenas 18 anos.
     Nessa pensão conviviam estudantes, vendedores, jovens do interior cheios de esperança em busca de uma vida nova na capital e senhores de meia idade, já sem esperança de construir alguma coisa na vida, arrastando suas lembranças e frustrações.
     Preenchi logo meus dias com várias atividades, mas os domingos eram especialmente parados. No segundo andar da pensão, no quarto da frente, havia um pequeno balcão em frente ao qual ficava minha cama. Lembro que a porta do balcão tinha um vidro quebrado, através do qual eu via a lua à noite, numa Porto Alegre ainda romântica.
     Aos domingos, me sentava em frente ao balcão para observar a vida na rua André da Rocha, onde se localizava um quartel do exército, dentro do qual um jovem capitão chamado Lamarca, se preparava para desertar e tentar começar uma revolução armada no Brasil. Eram tempos difíceis, de ditadura.
     O Rio Grande do Sul tinha para mim um fascínio de uma cultura diferente, cheia de tradições que preenchiam o vazio cultural que se sentia em Brasília uma cidade nova, com pessoas de várias partes do país, ainda sem tradições próprias e que apenas começava a sua história.
     Algumas coisas, no entanto, eram estranhas para mim. Coisas que eu entenderia melhor nos anos que ainda conviveria no Rio Grande. Aquele dia eu veria uma dessas coisas.
     Era final do ano, uma tarde quente de domingo, já quase verão, quando me postei no balcãozinho a apreciar a pachorra daquele dia, que parecia não reservar nenhuma surpresa possível.
     Foi quando ouvi uma gritaria vindo da parte baixa da rua. Uma mulher vinha subindo a rua e parecia despertar um tumulto por onde passava. Gente surgia nas janelas e se tomava de grande excitação à sua passagem, gritando e xingando. Eu não entendia o que estava acontecendo e fiquei atento.
     O tumulto veio crescendo na minha direção e percebi então que se tratava de uma mendiga, uma mulher negra e andrajosa. Suspeitei então que fosse uma dessas tristes figuras que povoam nossas cidades, enlouquecidas pela miséria e que despertam a crueldade natural das crianças, que lhes atiram coisas, debochando delas e das coisas sem sentido que dizem.
     Mas à medida em que o tumulto se aproximava, percebi que não era bem isso. Era apenas uma mulher negra e pobre que estava passando pela rua, talvez catando lixo por ali, e as pessoas que estavam lhe hostilizando não eram crianças, mas homens e mulheres brancos, adultos racistas, que riam e debochavam dela, por ser negra e pobre.
     Fiquei chocado. Pensei em descer e ir protegê-la, mas fiquei com medo da turba que se formava ao seu redor, atiçando-a com paus, ofendendo-a com gritos de macaca e outras expressões racistas.
     Outros jovens da pensão, atraídos pelos gritos vieram olhar e também se incorporaram, excitados, à bagunça que se fazia em torno da pobre mulher. Ela reagia como podia, respondia aos impropérios dizendo coisas que eu não conseguia ouvir, mas a turba respondia com mais agressões e deboches.
     Era uma demonstração explícita de racismo. A primeira contradição exposta da cultura riograndense, entre muitas outras que eu conheceria até me formar em Porto Alegre, doze anos depois.
     Custei para entender que nem sempre tradições são uma coisa boa. Na maioria dos casos apenas impedem que a sociedade evolua, embora às vezes também preservem bons valores. No caso do Rio Grande, várias tradições se misturam, entre elas às dos descendentes de imigrantes europeus, que trouxeram esse racismo em suas bagagens e a dos gaúchos da fronteira, mescla de índios com portugueses e espanhóis, que formam os CTGs, ou Centro de Tradições Gaúchas, com suas mulheres vestidas de prendas, seus homens de bigode e bombachas e muito machismo.
     Nada disso me agrada.
     Depois desse episódio, toda vez que alguém vem defender algum tipo de conservadorismo, em nome de alguma tradição, me lembro da mulher, acossada, lutando para não cair, fugindo daquela gente que se achava tão civilizada e penso em como é bom mudar, como é importante evoluir.

Abraço a todos

Ricardo Stumpf