A Manilha e o Libambo IV
(final)
A contracosta, Madagascar e o Reino da Etiópia
Na continuação da nossa viagem pela África, acompanhando o desbravamento do continente pelos portugueses, seguindo a narrativa de Alberto da Costa e Silva, vou inverter a ordem que ele segue no livro, quando passa para o oceano ìndico e começa a descrever a parte norte primeiro.
Então continuaremos descendo para o sul e depois iremos subindo pela costa do índico, que os portugueses chamavam de contracosta.
Os Hotentotes
Ao dobrar o Cabo da Boa Esperança, no extremo sul da África, em 1488, Bartolomeu Dias avistou uma baía amena, com gado pastando e seus pastores. Eram o povo Cói, ou Koenas ou Hotentotes.
Esse povo tinha características distintas dos que vimos até agora. Embora se organizassem de forma semelhante aos demais povos africanos, com seus reis, suseranos e vassalos, e a já conhecida sucessão real patrilenear e matrilinear ao mesmo tempo, (reis que se casavam com várias mulheres de clãs diferentes, cujos filhos eram candidatos a sucessão real, onde cada mãe representava um clã, que assim se revezavam no poder), os hotentotes tinham uma grande diferença: não conheciam a escravidão.
Seus reis, como os demais, seguiam a religião tradicional, na qual o rei tinha características divinas ou mágicas, que lhe permitiam entrar em contato com os antepassados e regular as chuvas, a fertilidade das mulheres e dos animais.
Porém, ao contrário dos demais, os reis hotentotes não eram respeitados pela sua ferocidade e truculência, mas pela sua habilidade em conciliar interesses. As decisões nas aldeias eram tomadas em assembléias, onde todos podiam falar e discordar do rei e até criticá-lo. O rei não estava acima da lei e tinha que cumpri-la. Se um indivíduo se sentisse perseguido ou prejudicado, podia se mudar para outra aldeia, levando sua família e seus bois, que eram o símbolo da riqueza.
O trato com o gado era muito afetuoso e eles aproveitavam o leite, usavam os bois como montaria e só matavam algum gado como complemento alimentar, procurando mantê-los inclusive como moeda de troca. Sua alimentação incluía carneiros, lobos marinhos, mel, mariscos, peixes, baleias e pinguins.
O gado era treinado para obedecer a assovios e obedecia aos donos, reconhecendo-os.
Os portugueses tiveram alguns choques com esse povo, talvez pela incapacidade de compreender como eles eram apegados a seus bois, que as naus que ali aportavam queriam comprar para alimentar os marinheiros. O mar violento e as tempestades constantes também devem ter sido causa para o desinteresse dos portugueses por aquele território, que só foi ocupado muito mais tarde pelos holandeses, que ali fundaram uma colônia de fazendeiros (bôers), que daria origem a atual República Sul Africana.
A contracosta
Ao explorar a contracosta os portugueses deram com o canal de Moçambique e a ilha de Madagascar e se surpreenderam ao encontrar ali cidades de pedra e cal, com casas pintadas de branco, com vários andares e terraços, que lembravam as de Portugal e do Marrocos.
Ao contrário dos povos da costa atlântica, para quem o oceano era o limite do mundo conhecido, os povos do índico já estavam habituados a comerciar com chineses, indianos, indonésios, persas e árabes, que para ali se deslocavam em grandes barcos.
As principais cidades eram
Sofala (na ilustração abaixo),
Angoche, Moçambique, Quíloa, (na ilustração à direita),
Mafia, Zanzibar, Pemba, Mombaça, Gedi, Melinde, Manda, Lamu, Pate, Faza, Brava, Merca e Mogadixo, que integravam a grande rede comercial do índico, comandada pelos muçulmanos.
Apesar de ficarem admirados com as cidades, os portugueses se lançaram contra elas como verdadeiros bárbaros, pilhando, saqueando e destruindo tudo que encontraram pela frente.
Essas cidades da região costeira, também conhecida como
Azânia, eram habitadas por povos conhecidos como
suaílis, (ou
swaílis), e competiam entre si pelo controle do comércio com o Iemen, o Egito, o golfo pérsico, as ilhas Maldivas, Comores, o golfo de Cambaia, na costa ocidental da ìndia, para os quais forneciam madeira, carne, tecidos de algodão, instrumentos de ferro, marfim, ouro, e outras mercadorias, além de escravos, provenientes dos sertões africanos, trazidos por uma rede de comerciantes locais, quase todos muçulmanos, que os portugueses chamavam de
mussambazes.
Os barcos que vinham
do oriente, não se arriscavam a descer ao extremo sul do continente, devido ao regime de monções, que condicionava os ventos a uma determinada época do ano. Se fossem muito para o sul perderiam a época certa de retornar e teriam que esperar até o ano seguinte. Por isto os
hotentotes permaneceram isolados no que hoje é a África do Sul, até a chegada dos portugueses, que buscavam o caminho para a Índia.
Portugal, e as nações européias que vieram em seu encalço (Holanda, França e Inglaterra), tentaram controlar esse rico mercado, fundando feitorias, tomando cidades e praticando a velha política de explorar as rivalidades locais, apoiando reis que precisassem de apoio militar para combater outros, e assim se imiscuindo nos assuntos deles, tentando submetê-los aos seus interesses.
Nem sempre conseguiram, mas deixaram muitas fortalezas construídas no litoral africano do oceano índico, como o
Forte de Jesus, (foto à direita)
em
Mombaça, na costa do que hoje é o Quênia.
Madagascar
A grande ilha ao largo da contracosta era habitada por muitos povos, alguns de origem indonésia e outros provenientes do continente africano. No norte e noroeste da ilha havia cidades muçulmanas, como Nosy Langany, Nosy Manja, Mahilaka, Nosy Mamoko, Sada, Nosy Boina ou Iharana na costa nordeste. Todas eram cidades-estado que faziam parte da grande rede comercial do índico e mantinham ligações com as ilhas Comores, ao norte, com as cidades Suaílis, do continente, com o golfo Pérsico, a península Arábica, a Índia e a Indonésia.
No planalto interior do sul da ilha, predominavam povos dedicados ao pastoreio, como os
Baras, e os
Maroseranas. No sudeste viviam, entre outros, os
Antemoros, que escreviam na língua malgaxe, porém com caracteres árabes.
Os povos da ilha, assim como os de Comores, conheciam e praticavam a escravidão, entre si e traficavam com os mouros e europeus.
Os franceses e holandeses construíram feitorias no sul, para abastecer os barcos que vinham da Europa e precisavam de descanso, para prosseguir rumo à Índia, mas depois da descoberta das ilhas hoje conhecidas como
Maurício e
Reunião, até então desabitadas, passaram a preferi-las como ponto de parada, abandonando Madasgacar.
Muitos piratas usavam a grande ilha como refúgio, devido ao seu litoral recortado e cheio de pequenas baías e enseadas.
Os sertões
Muitos povos viviam nos sertões, cujos rios desembocavam na contracosta, especialmente os rios Zambeze, Save, Limpopo e outros. Os reinos tinham estrutura semelhante, baseada na suserania e na sucessão patrilenear e matrilinear, baseada em clãs, como já vimos, enquanto a religião cumpria papel importante, já que ao soberano eram conferidos poderes mágicos para se comunicar com seus antepassados e influenciar na fertilidade das terras, dos animais, das mulheres e no regime de chuvas. Um dos maiores reinos da região foi o
Monotapa, (no mapa à esquerda)responsável pela construção dos
zimbabués, (nas fotos à direita) ou fortificações de pedra, com muralhas muito altas, de forma circular, que deram nome ao atual
Zimbabwe. Os reinos de Barue, Manica, Quiteve, Quissanga e Butua, eram tributários do rei Monotapa. Havia também os
Lundus, o reino
Tonga, os
Tsongas e os
Vendas. Esses reinos viviam em guerra, suas fronteiras mudavam constantemente e todos praticavam a escravidão, como sistema econômico e participavam do tráfico.
Na região dos
grandes lagos, especialmente o grande lago
Vitória (ao centro da foto de satélite à esquerda), o lago
Alberto (acima á esquerda), o lago
Tanganika (o comprido, abaixo à esquerda) e o lago
Malaui (que não aparece na foto, mais ao sul
), povos
cuxitas, sudânicos, nilóticos e bantos, formavam
vários pequenos reinos. A noroeste, logo ao sul do
Nilo Vitória (o Rio Nilo se forma no lago Vitória e inicia seu percurso com este nome) ficava
Bugungu. A nordeste,
Buruli. A leste,
Bugerere. A sudeste, na beira do lago Vitória,
Buganda e logo adiante
Busoga, que se compunha de vários micro-estados:
Bukoli, Bulamogi, Bukono, Bugabula e
Bugueri. Ao sul
Buddu e
Bwera. A sudoeste,
Kitakwenda e
Kiala.Todos eles eram tributários do reino do Bunioro, cujo rei tinha o título de
Omukama.
Observem no mapa à direita que atualmente
Uganda, Quênia e
Tanzânia dividem o grande lago
Vitória, enquanto
Tanzânia e
Congo (antigo
Zaire), dividem o lago
Tanganika e o
Malawi e
Moçambique o Lago
Malaui. Observem também os nomes:
Rwanda, que hoje é um pequeno país, a esquerda da Tanzânia no mapa, já era um reino naquela época. Também a coincidência de nomes entre a atual
Uganda e o antigo reino de
Buganda, situados no mesmo lugar, mostra que estão relacionados.
Etiópia
Mais ao norte, no chamado Chifre da África, estava o reino da Etiópia, uma das civilizações mais antigas do mundo. Os gregos já se referiam à Etiópia, no século IV A.C. Conta a tradição oral, que o país teria se originado do antigo reino de
Sabá (da lendária Rainha de Sabá), que já abrangia o
chifre da África e parte da península Arábica. Os etíopes são oficialmente cristãos desde o século IV, sempre resistiram às investidas muçulmanas, na suas tentativas de expansão e são o único país da África que não se tornou cristão por influência européia. Sua religião está ligada à igreja
Coopta, que reconhece como líder espiritual o Papa de Alexandria, no Egito, embora exista um papa
Coopta etíope também.
Seus primeiros contatos com os europeus datam do século XV, com os portugueses. Estes por várias vezes socorreram militarmente o
Negus, título do sobreano etíope, que significava rei dos reis, contra as tentativas expansionistas islâmicas. Inclusive o filho de Vasco da Gama, Estevão da Gama, foi morto numa batalha contra os turcos, quando combatia ao lado dos etíopes.Porém a cooperação não frutificou, devido à falta de interesse dos portugueses, sempre em busca de riqueza fácil.
Os etíopes também conhecim a escravidão e a praticavam corriqueiramente, tanto no interior do seu país, quanto comprando e vendendo escravos nos mercados do Mar Vermelho.
O país está situado, na sua maior parte sobre um planalto úmido e fértil, e tem apenas um pequeno pedaço desértico (o deserto de Ogaden). No planalto estão algumas das maiores montanhas do continente africano (acima á esquerda), algumas com mais de 4.000 metros de altitude.
Lá se encontram as famosas igrejas escavadas na pedra, (na foto a igreja de São Jorge em Lalibela, acima à direita)
Conclusão
Como se pode ver pela detalhada obra de Alberto da Costa e Silva, da qual procurei fazer uma resenha em quatro partes, a escravidão não vitimou apenas os africanos, mas era uma prática generalizada no mundo antigo, até o século XV, quando ele começa sua narrativa.
Os próprios africanos a utilizavam largamente, inclusive os hauçás e Iorubás, nações a que pertenciam muitos escravos que vieram para o Brasil.
Tampouco eram selvagens, como querem descrever os colonialistas para justificar a posterior partilha da África pelos europeus, mas senhores de muitos reinos, em estágios civilizatório diferentes.
Haviam reinos muito antigos e civilizados, outros mais primitivos e ainda povos desenraizados que se comportavam como hostes militarizadas. Todos, no entanto, conheciam a fundição dos metais, ferro, cobre, ouro e até o aço, a indústria textil, que fabricava panos de qualidade e a agricultura.
A colonização européia veio interagir com essas civilizações, ajudando a desestruturar algumas e a desenvolver outras, mas não logrou destruir a cultura africana, que continua viva.
Máscara Iorubá