O ano era 1972. Eu morava em Brasília, recebi uns atrasados e resolvi ir à Bahia ver o carnaval. Aquele foi o primeiro carnaval badalado da Bahia, parecia que o Brasil todo resolveu ir pra lá. Foi o ano de Chuva, suor e cerveja, sucesso de Caetano Veloso.
Eu conhecia Salvador mas nunca tinha ido lá sozinho. Estava naquela fase em que a gente se solta no mundo e começa a viajar e de repente me resolvi: peguei um ônibus para Belo Horizonte e de lá outro para Salvador.
Na poltrona ao lado, no segundo ônibus, um rapaz da mesma idade, Agnelo, com o mesmo destino. Nos tornamos amigos e dividimos algumas coisas nessa aventura maluca de ir pra Salvador ver o carnaval.
Naquela época a rodoviária de Salvador ainda era outra, situada em um bairro muito feio. Aliás a rodoviária também não era bonita. Esse foi o primeiro choque que tive com a Bahia, que eu ainda idealizava das canções de Caymi. Descemos do ônibus em pleno carnaval, com gente cantando pelas ruas, onde imperava uma mistura de cheiro de urina com lixo apodrecido pela chuva. Tudo muito louco.
Depois de conseguir chegar ao centro, rodei por todos os hotéis e não achei uma vaga, até que consegui um lugar para dormir no sofá do corredor de um hotel antigo, na Avenida Sete. Com o pouco dinheiro que tinha comprei uma mortalha, que naquele tempo era uma espécie de camisolão de tecido muito fino que ia até os pés (hoje não passa de uma camiseta) e saí pelo centro vestindo apenas uma sunga por baixo.
Naquela época não havia esses blocos particulares que hoje dominam o carnaval e mantém os foliões que não pagam (pipocas) fora de suas cordas.Tudo era público e democrático e podia-se ir atrás do trio elétrico, brincando e dançando sem maiores riscos de sofrer algum tipo de violência.
No meio da folia encontrei um amigo de Brasília que era sobrinho do Arcebispo Primaz do Brasil, cuja sede ficava no Campo Grande em um belíssimo casarão antigo de azulejos brancos. Ele me chamou para ir ao encontro de seu tio e fui com ele, vestido como estava, de mortalha. Fiquei sozinho esperando na sala, olhando toda aquela arte da época colonial, que enchia meus olhos de estudante de arquitetura da UnB.
Foi uma sensação estranha. Eu sozinho na casa do Arcebispo do Brasil vestido para o carnaval, perambulando por aqueles salões enormes. Não aparecia ninguém e fui ficando meio sem graça. Depois cismei que estava sendo observado e resolvi ir embora, sem esperar mais.
Reencontrei Agnelo e conhecemos umas meninas que nos convidaram a ir a sua casa. Naquela época era fácil se hospedar em Salvador. Havia uma enorme hospitalidade por parte da população, que abria suas casas para os visitantes, de uma forma que encantava quem era de fora.
Os dias se passaram e eu ficava na Avenida Sete tomando cervejas, comendo ovos cozidos coloridos (aqueles de botequim) e pulando o carnaval até o amanhecer. Quando tudo acabou fui convidado a ir a Arembepe para conhecer a colônia hippie. Fomos eu e Agnelo, juntos mais uma vez.
Chegando lá, encontrei o amigo de Brasília novamente com outros conhecidos. Alguns deles me olhavam de modo estranho, porque eu, sendo filho de uma família classe média, havia rompido com meus pais e morava sozinho numa república, vivendo do meu trabalho. Era como seu eu tivesse rompido com o mundo que eles conheciam e me lançado em um universo paralelo que eles temiam.
Engraçado, porque alguns desses rapazes se diziam progressistas, o que na época queria dizer de esquerda, ou seja, adeptos do socialismo, mas não lhes agradava que alguém como eu passasse das idéias aos fatos e rompesse de verdade com aquele mundinho pequeno-burguês ao qual eles também pertenciam. Esses mesmos progressistas,gostavam de revelar seu desprendimento do mundo fumando maconha e a erva rolava solta por lá.
Ficamos, eu e Agnelo, num casebre de pescador, alugado por um conhecido desse pessoal de Brasília, para curtir a ressaca de carnaval com amigos, num estilo bem despojado. Ele era o chefe e nos recebeu para fazer parte da sua tribo. Mas não gostei dele, achei que nos olhou com um ar superior, como se fossemos gente comum demais.
Eram filhinhos de papai curtindo uma de hippie, mas na verdade apenas a fim de consumir drogas. Era evidente que quando acabasse o verão aqueles caras voltariam para suas vidas habituais, suas faculdades, carros e empregos, suas ambições de ganhar dinheiro e conquistar um lugar importante naquela sociedade que eles fingiam desprezar.
Durante o dia saíamos para a praia convivendo com alguns hippies verdadeiros. Conheci também os pescadores, alguns já viciados na droga que os hippies traziam. O lugar era lindo, mas havia um problema: não havia muita comida. Eu tinha gasto quase todo o meu dinheiro e não havia nada para comprar.
De noite, fazia-se uma roda dentro do casebre e corria a maconha, que eu recusava, criando um constrangimento geral. Então eu saía para caminhar e voltava tarde da noite. Às vezes rodava também uma garrafa de cachaça e dessa eu bebia um pouco.
Fiquei três dias sem comer. No primeiro senti muita fome, depois o estômago foi amortecendo. Tomava uma água de coco e comia a polpa, depois um gole de cachaça e ia levando.Uma vez, percebi que eles haviam posto alguma coisa na cachaça, pois estavam oferecendo e rindo. Recusei e saí. Depois encontrei Agnelo dançando nas dunas, completamente alucinado e acompanhado por uns sujeitos que riam dele.
Resolvi ir embora. No dia seguinte, cedo, peguei minha trouxa e fui para o ponto de ônibus. Eu tinha 16 cruzeiros para ir até Brasília, numa viagem de mais de 2.000 Km. Cheguei a Salvador e fui andando em direção a saída para Feira de Santana. Peguei uma carona até o entroncamento com a Rio-Bahia. De lá fui numa carreta vazia, junto com outros jovens, até Governador Valadares e depois consegui que me levassem até Ipatinga.
Cheguei em Ipatinga à noite e não tinha onde dormir. Como eu estudava arquitetura na UnB e tinha minha carteira de estudante, me ocorreu pedir abrigo na casa do estudante local, onde esperava ter a solidariedade dos colegas mineiros. Bati e fui atendido por uns rapazes da faculdade de agronomia. Expliquei minha situação, mostrei a carteira da UnB e eles ficaram gozando com a minha cara. Um dizia pro outro:
_E aí cara, o que vc acha, a gente deixa esse sujeito dormir aqui?
E davam risada.
Depois de alguns minutos percebi que não iam me abrigar e ainda estavam debochando da minha dificuldade. Saí caminhando pela rua, sem destino e sem dinheiro. Já era tarde. Passei num ponto de ônibus e vi uma família inteira dormindo enrolada em panos brancos. Percebi que não eram mendigos porque os panos estavam limpos e havia umas trouxas por perto. Eram retirantes e deviam estar vindo do nordeste, como eu, sem dinheiro, provavelmente rumo a São Paulo.
Eu estava muito cansado e desanimado e senti naquela família, pai, mãe e filhos pequenos, uma possibilidade de encontrar um pouco do calor humano que eu precisava. O problema era não assustá-los. Me deitei bem quieto, perto de uma das crianças, e adormeci sem fazer barulho. Acordei com os primeiros clarões, me levantei em silêncio e parti, agradecendo mentalmente a acolhida involuntária daquela família.
Com dificuldade consegui outras caronas que me levaram próximo à Belo Horizonte. Me lembro que anoiteci num posto de gasolina, na serra, fazia frio. Eu fumava e fui pedir um cigarro a um casal que estava jantando. O homem me tratou mal:
_O que você quer?
_Um cigarro, respondi.
_pegue logo seu cigarro e saia daqui!
Peguei e saí pensando que talvez eu já tivesse tratado alguém necessitado com a mesma arrogância daquele sujeito. Quando o posto fechou um funcionário da lanchonete me deixou dormir em cima do balcão. De manhã me deu café com leite e pão com manteiga.
De lá segui com minhas caronas até Paracatu, já próximo à Brasília. Uma camionete Chevrolet parou para abastecer, com uma família. Mostrei minha carteira de estudante e o homem falou:
_Se você é mesmo estudante de arquitetura, me diga o teorema de Pitágoras!
_A2=B2+C2, respondi sem titubear.
Ele sorriu e me mandou entrar. Era um professor da UnB e me deixou na porta de casa. Cheguei na minha república extenuado, faminto, mas satisfeito. Eu tinha visto coisas que não conhecia. Vi a solidariedade dos pobres, o escárnio dos ricos, a falsidade dos discursos libertários dos maconheiros, vi um Brasil em movimento, vi a Bahia, com todas as suas alegrias e tristezas, sua compaixão e sua crueldade e senti que aquela noite em que dormi na rua entrei em contato com algo profundo, uma força que aquelas pessoas adormecidas me transmitiram e que eu nunca mais perdi, uma fé que me reconstruiu o sentido da existência.
Abraço a todos
Ricardo Stumpf