Histórias de outras vidas (16)
HÉLIA
O ano era 1973, o lugar, Santiago do Chile.
Eu estudava arquitetura em Santiago, fugido do ambiente político da ditadura brasileira, e arranjei um apartamento, que dividia com meu amigo Juca.
Diga-se de passagem, que conseguir um apartamento em Santiago era tarefa quase impossível e tivemos que tomar, como se dizia na gíria revolucionária, aquele imóvel, usado pela organização política a que Juca pertencia, só para fazer reuniões, uma vez por semana.Quiseram nos expulsar, mas Juca os convenceu de que era um absurdo manter o imóvel vazio com tanta gente necessitada, no caso ele mesmo, que não queria mais morar com os pais, e então nos cederam o espaço, com a condição de que na hora das tais reuniões semanais, eu saísse uma meia hora antes, para não ver quem estava chegando.
Vivemos ali por alguns meses, até o golpe militar de Pinochet.
O apartamento era muito freqüentado por amigos e namoradas, minhas e de Juca. Algumas, amigas, vinham nos visitar em duplas, e acabavam ficando, uma comigo e outra com ele. Dentre essas, me veio um presente especial: Hélia.
Era uma morena, alta e muito bonita, se não me engano de Goiás, descendente de árabes. Seu pai, do Partido Comunista Brasileiro, havia conseguido que ela fosse estudar medicina na URSS e ela havia ido para Santiago, para pegar o vôo da Aeroflot, a empresa soviética que fazia a linha Santiago-Moscou.
Hélia teve que ficar algum tempo em Santiago, esperando a hora e a turma com a qual ela embarcaria. A Universidade Patrice Lumumba, de moscou era só para estrangeiros, e recebia muitas turmas de toda parte. Entrar para aquela universidade era um privilégio que os russos distribuíam aos filhos de dirigentes comunistas ou a líderes revolucionários pelo mundo afora.
Sua primeira visita foi como a de tantas outras. Temperada pela interesse mútuo e pelo sexo, que praticávamos livre e revolucionariamente, num mundo ainda sem aids e sem camisinhas. Ela voltou muitas vezes e entre nós foi nascendo algo maior.
Começamos a nos ver sempre, saíamos juntos e as pessoas começaram a nos reconhecer como um casal. Juca ficava com a amiga dela, mas logo mudou para outra. Eu, sempre em busca de amores, muito mais do que de sexo, permanecia com Hélia.
Um dia a chamaram. Levei-a ao aeroporto de Pudahuel. Lá um rapaz russo, estranhamente parecido com um americano, dava ordens e exigia uma série de coisas. Hélia me disse que os russos eram assim mesmo, tinham fixação por organização e tudo tinha que sair perfeito.
O alto-falante chamou seu vôo. Nos beijamos longamente, fizemos promessas de reencontros e cartas e ela embarcou. Fui para a varanda do aeroporto (naquela época os aeroportos tinham varandas abertas, de onde se podia apreciar os aviões).
O Iliushin 62, um jato com 4 turbinas grudadas na cauda, um par de cada lado, foi para a cabeceira da pista e lá ficou parado, por um tempo que me pareceu interminável. Logo se movimentou e sumiu no céu, buscando um destino do outro lado do planeta.
Para mim a União Soviética era quase um outro planeta e de lá nunca pude receber nenhuma notícia, pois o golpe militar me pegou de férias no Brasil e não pude retornar.
Por onde andará Hélia, tantos anos depois? Terá ela se formado, será um médica em Goiás, será ainda uma socialista, agora que a URSS nem existe mais?
Aquela foi uma das inúmeras vezes que a felicidade pareceu escapar de minhas mãos. Consegui tudo que queria na vida, menos um grande amor para dividir a existência, coisa que não é fácil para ninguém.
Às vezes ainda vejo aquele avião levando Hélia da minha vida, uma vida que nunca mais seria a mesma.
Abraço a todos
Ricardo Stumpf