Histórias de outras vidas (20)
CONVERSA NO TREM
O ano era 1974. Me lembro bem porque era dia de jogo da copa do mundo de futebol na Alemanha. E onde eu estava? Na Alemanha, por acaso, passando de trem, vindo da Suécia para a Bélgica.
Sim, eu tinha ido visitar um amigo brasileiro, que conheci em Santiago do Chile (dividiamos um apartamento) e que ficou exilado na Suécia depois do golpe de Pinochet. Saí do Chile para o Brasil de férias, em setembro de 1973 e não pude mais retornar por causa da situação política. Fui então reencontrá-lo em Gotemburgo, na Suécia. De lá peguei um trem com destino a Bruxelas, para onde estava indo morar, fugindo da repressão no Brasil, destino a que cheguei depois de muitas baldeações pela Europa.
Foi num dos trechos desta viagem que caí numa daquelas cabines cara dura, em que passageiros que não se conhecem sentam-se uns de frente para os outros e ficam se olhando sem ter o que dizer.
Nessa cabine iam; um americano sentado em frente a mim, dois marroquinos ao meu lado direito e um casal de australianos ao lado do americano. Pra passar o tempo comecei a ler um livro e o americano, vendo o título em português, puxou conversa em inglês, perguntando se eu era brasileiro. Respondi no meu inglês macarrônico e ele me disse que havia morado no Brasil e que era uma espécie de desertor do Vietnã, ou seja, tinha saído dos Estados Unidos para não ser convocado para a guerra.
Demonstrei minha simpatia pelo gesto já que eu, como toda a juventude do mundo naqueles tempos, era contra aquela guerra absurda. Ele me disse então que estava fazendo uma pesquisa sobre a violência. Parece que era uma tese de alguma pós-graduação e envolvia o Brasil, já que ele tinha coletado dados por aqui também.
O debate foi ficando interessante, mas não conseguíamos explicar muito nossos pontos de vista, porque eu me expressava mal em inglês e ele mal em português, embora ambos entendessemos o que o outro falava na sua língua natal.
Então resolvemos falar eu em português e ele em inglês. Eu dizia o que achava em português e os marroquinos e os australianos ficavam me olhando com cara de besta. Depois ele respondia em inglês e pelo menos os australianos entendiam a resposta.
Os marroquinos, quando entendiam alguma coisa, davam palpites em francês, que eu arranhava também, e os australianos se metiam no raciocínio do americano mas não entendiam o que eu falava e o que os marroquinos falavam comigo (nem o americano que não falava francês).
Pra completar a confusão o jogo que estava sendo disputado na copa naquele dia era Brasil e Marrocos (e que alguém ouvia em um rádio) e quando saía algum gol eu e os marroquinos ficávamos muito agitados até entender de quem era.
Isso levou horas.
O foco principal da pesquisa do americano era o que alguns chamam hoje de mal americano, ou seja, a prática quase habitual naquele país de um indivíduo sair atirando à esmo pelas ruas, shopings, escolas ou outros locais públicos, matando quem vai passando.
Eu dizia que o mal estava no capitalismo, no way of life americano, e os australianos concordavam, mas ele não aceitava (os americanos nunca aceitam que o sistema deles possa estar errado) e tinha umas teorias meio enroladas para explicar o fenômeno.
E assim fomos cruzando a Alemanha até chegar na cidade de Aachen, onde tive que descer já tarde da noite, para pegar outro trem que me levaria direto a Bruxelas.
Mas depois de algumas horas a conversa tinha se generalizado a tal ponto na cabine, que não sabíamos mais em que língua estávamos falando.
Um norte-americano, dois australianos, um brasileiro e dois árabes, haviam descoberto que todos pertenciam à mesma espécie e que o mundo poderia ser bem melhor.
Uma euforia foi tomando conta daquele estranho grupo e pode-se dizer que uma amizade múltipla começou a nascer. E naqueles tempos difíceis, quando a guerra do Vietnã chegava ao seu auge, com os ataques vietcongs que já prenunciavam a derrota norte-americana, celebramos a paz do nosso jeito.
Abraço a todos
Ricardo Stumpf