Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Histórias de outras vidas (2)



MENINOS NO COLCHÃO




     Era julho de 1994. Estávamos todos reunidos no pátio lateral da minha casa do São Miguel, em Ilhéus, para assistir a final entre Brasil e Itália na Copa do Mundo. Na disputa de pênaltis era vez de Baggio, o atacante italiano, chutar. Se ele errasse o Brasil seria campeão. Falei alto:
     _Se ele errar vou dar um caruru de 1.500 quiabos!
Baggio errou o pênalti e o Brasil foi tetra. Grandes comemorações se seguiram e a promessa do caruru ficou esquecida.
     Pra quem não sabe, o caruru na Bahia tem um significado especial, associado ao culto de Cosme e Damião. É o chamado caruru de promessa: promete-se dar um caruru em determinada época do ano, para quem quiser comer, para os amigos, vizinhos ou qualquer um que estiver passando pela rua. A pessoa que fez a promessa tem que servir pessoalmente cada prato e deve ter uma bacia cheia de balas ou bombons para oferecer às crianças.
     O caruru pode ser de uma vez só, no caso de um benefício menor ou pode ser para o resto da vida, para uma graça muito importante alcançada, como salvar a vida de um ente querido ou coisa assim. Esse tem que ser feito sempre na mesma data, geralmente o dia de Cosme e Damião. O tamanho da festa é medido pelo número de quiabos. 1500 é um caruru médio.
     Existem ainda alguns detalhes interessantes, como a mesa para sete crianças servida antes dos outros, onde também se oferecem bomboms, e a maneira como vai ser servido e comido. Alguns fazem promessa de caruru de mão, que tem de ser comido sem talheres, apenas com as mãos, uma técnica complicada para quem não conhece.
     Meses se passaram depois do jogo e a minha promessa andava esquecida.
     Nessa época, minha filha mais velha, ainda solteira, estava passando uns tempos comigo em Ilhéus e costumava reunir sua turma para animadas partidas de buraco, à noite. A pequena casa era de dois andares, sendo a parte de cima de madeira, assim como o piso que era de tábuas. Meu quarto, nos fundos era pequeno e dava para uma varanda que se abria sobre o rio Almada, próximo da sua foz, na praia de São Miguel.
     As noites de lua eram lindas pois ela se punha justamente sobre o rio, que ficava prateado, revelando silhuetas de pescadores noturnos solitários, nas suas canoas. De vez em quando, no meio do silêncio, ouvia-se o barulho de uma rede sendo jogada e via-se uma brasa de cigarro se avivar.
     Minha cama era um colchão no chão de tábuas enceradas e eu dormia com a janela aberta, sentindo a fresca da noite e ouvindo o ruído das águas.
     Numa dessas noites, em que a turma se reuniu para jogar baralho, tive um sono agitado e acordei com o barulho que eles faziam. Surpreso, vi que um menino louro dormia aos meus pés. Era uma criança de um ano ou dois no máximo. Pensei que aquele pessoal já estava abusando, pois além de ficarem até tarde, ainda traziam crianças e se achavam no direito de colocá-las na minha cama, enquanto se divertiam.
     Me levantei e fui procurar um colchonete em cima do guarda-roupa, no quarto do outro filho, que também dormia. Estendi o colchonete na saleta de televisão que ficava entre os dois quartos, forrei com uma colcha e fui buscar a criança para acomodá-la. Ao entrar no meu quarto, porém, a surpresa: não havia nenhuma criança.
     Chamei minha filha e perguntei se ela havia tirado o menino. Ela me olhou com uma cara estranha e perguntou:
     _Que menino? Acho que você estava sonhando!
     Confuso voltei a dormir e procurei evitar o assunto nos dias que seguiram, convencido que tinha tido um ataque de sonambulismo.
     Outra noite, nova sessão de buraco e acordei novamente agitado. Dessa vez dois moreninhos estavam dormindo no meu colchão. Pareciam gêmeos e da mesma idade do anterior. Levantei, olhei bem para eles para me certificar que não estava sonhando e fui buscar o colchonete para acomodá-los. Quando voltei, a mesma coisa: nada.
Intrigado, comentei com o pessoal em casa, pela manhã. A empregada, cujo apelido era Nega e era freqüentadora do candomblé, me perguntou logo:
     _O senhor não está devendo nada a Cosme e Damião?
Disse que não, que nunca fiz promessas a santos, logo eu de formação protestante, mas depois me lembrei da promessa da copa do mundo e disse:
     _Só se for a promessa do caruru que eu fiz na copa, mas não era pra Cosme e Damião!
     _Todo caruru tem a ver com Cosme! Arrematou Nega. Se o senhor não pagar eles vão ficar lhe cobrando. Essa visão dos meninos é uma forma de lhe lembrar e essas entidades são muito fortes!
     Nos dias que passaram pensei no assunto e resolvi que o melhor era pagar o prometido, fosse para Cosme, fosse para Deus ou para mim mesmo. Tratei de encomendar os tais 1500 quiabos.
     A preparação foi um tormento. Os 1500 quiabos eram dois sacos inteiros e levamos uns três dias tirando os fiapos e cortando as pontas. Depois comprei três galinhas e pedi a uma vizinha para me ajudar no preparo, inclusive do vatapá que acompanha.
     Na noite, servi pessoalmente vatapá para a rua inteira.
     Ao lado do balcão, uma bacia cheia de balas alimentou as ilusões de todas as crianças da rua, com quem eu já tinha uma relação especial, principalmente no Natal. Vieram amigos e inimigos, passantes e velhos moradores, gente de todas as idades e eu senti que aquilo me aproximou muito de pessoas que eu mal conhecia ou de quem não gostava.
     Fizemos também a tal mesa de sete crianças, organizada por Nega, que cuidou também dos seus rituais. Meu filho ficou na tal mesa. Foi aí que senti a força dessas entidades. Nega tinha razão. Não importa se eram os irmãos santos ou se eram orixás, mas havia no universo entidades invisíveis que cuidavam das crianças, assim como devia haver outras que cuidavam de muitas outras coisas.
     Minha ligação com crianças ficou clara para mim nesse dia. Sempre gostei muito delas, principalmente das pequenas. Acho que sempre me mantive um pouco criança na vida, correndo atrás de sonhos, de coisas bonitas, de natureza e de aconchego no amor.
     Por isso, talvez, minha vida tenha sido sempre difícil, por não querer renunciar à criança dentro de mim, que não aceita empregos chatos e patrões repressores, por querer morar em lugares de sonho e viver com simplicidade, sem acreditar nas ilusões consumistas e capitalistas que todos esperam que a gente acredite num mundo de adultos, cheios de objetivos sérios e inúteis.

Abraço a todos

Ricardo Stumpf




Velhas tragédias

     Em duas ocasiões anteriores, aqui no blog, comentei sobre construções irregulares em encostas, principalmente nas grandes cidades, dizendo que todos os anos haviam desmoronamentos e que continuariam morrendo pessoas, especialmente crianças, devido à omissão histórica de governantes que preferem fechar os olhos aos efeitos perversos de uma situação fundiária, que privilegia os especuladores em detrimento dos moradores das cidades brasileiras.
     Dezenas de livros já foram escritos sobre isso, seminários, estudos, e muitos discursos, tudo em vão, pois nem um partido político assumiu a reforma urbana como bandeira, a não ser muito marginalmente, como uma intenção no horizonte.
     Outro discurso falsificado, foi denunciado aqui também várias vezes, de que a água do planeta iria acabar em função do aquecimento global, que produziria grandes secas. Fomos bombardeados com imagens de pesadelo, num mundo ressequido, onde a vegetação e os animais morreriam de sede e a humanidade pereceria em meio a um pesadelo de calor e fogo.
     Para quem leu Arqueologia Brasileira, de Andre Prous (Editora Universidade de Brasília), fica evidente que a primeira consequência do aquecimento é o degelo dos pólos e que isso significa uma era de chuvas torrenciais. A água retida no gelo volta ao grande ciclo das águas e isso acontece em forma de chuvas. Segundo Prous, o fim da última era glacial resultou num período de 100 anos de chuvas intensas sobre o planeta.
     O que estamos observando no Rio de Janeiro por esses dias é o encontro desses dois fenômenos, as chuvas torrenciais, que estão se tornando cada vez mais frequentes, e que caem como um gigantesco balde d'água sobre pontos aleatórios da superfície terrestre, e a ocupação desordenada das encostas pelas construções irregulares, toleradas pelos governantes, por não quererem mexer nos interesses poderosos das incorporadoras que controlam a produção do espaço urbano no Brasil.
     Desde a primeira grande reforma urbana no Rio de janeiro, no início do século XX, quando ações moralizadoras destruíram os cortiços onde moravam os mais pobres, sem lhes oferecer nenhuma outra alternativa, essas populações começaram a subir os morros do Rio, criando aquilo que se tornaria conhecido como favelas, porque a primeira ocupação ocorreu no Morro da Favela, um morro onde era comum a pequena planta que dá favos e que por isso tem o nome de favela.
     A última política nacional de habitação digna deste nome (apesar de todos os seus equívocos) foi abandonada em 1986, com a extinção do BNH e substituída por ações ocasionais dos governos locais e estaduais. Só agora com o PAC, o governo federal retomou a iniciativa nesse setor, mas sem a preocupação de diagnosticar as causas do problema (o que iria ferir grandes interesses) e agindo sempre no sentido de corrigir os efeitos da especulação, ao invés de instituir um sistema de planejamento urbano digno deste nome.
     O pior é ver as caras cínicas dos governantes na televisão culpando a natureza pelas tragédias recorrentes, agora pioradas pelo degelo.
     Espero que os candidatos do Partido Verde, o único que propõe mudanças no modelo de desenvolvimento, se pronunciem sobre as políticas urbanas necessárias para nos libertemos desse caos anual e dessas tragédias onde famílias inteiras tem que morrer soterradas, para que uma minoria continue lucrando com a valorização imobiliária.

Abraço a todos, especialmente às famílias enlutadas da minha cidade maravilhosa, tão machucada.

Ricardo Stumpf