Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

domingo, 14 de novembro de 2010

Rapidinhas

Preconceito

     A insistência do promotor paulista contra Tiririca já passou dos limites e revela apenas o preconceito da elite paulista por ver um palhaço eleito no lugar dos seus representantes, preteridos por um eleitorado interessado em protestar contra os políticos tradicionais.
     Já seria o caso do próprio Tiririca processar o promotor por racismo contra nordestinos e tirá-lo da sua função. Aliás, a ala serrista do PSDB, que inclui FHC (e representa gente como esse promotor), parece que não aceitar a derrota e a consequente desimportância adquirida pelo seu partido. Foram contaminados pelo virus do Tea Party, a ultra-direita da Partido Republicano dos Estados Unidos que não se conforma em ver um negro governando seu país, usando discursos a favor da paz, a favor da integração mundial e outros que vão contra a auto-imagem de líderes hegemônicos que eles mesmos construíram para sí.
     É duro perder o poder.

60 anos
     Tenho um filho jornalista, muito envolvido com política. Acho interessante como ele encara a vida, como se fossem etapas, fases que vão passando.
     Ontem ele me disse que tinha boas intuições sobre 2011 e que sabia desde o início que o ano de 2010 seria difícil, mas que resultaria numa nova fase, muito melhor.
     Ah, como eu gostaria de ter sua certeza. Também achei 2010 difícil, mas quando olho pra frente vejo meus 60 anos se aproximando (em março próximo) e me pergunto o que fiz nessa vida. Vejo tanta gente correndo atrás de fama e carreira, dinheiro, e essas coisas, e penso que passei os últimos 30 anos cuidando de filhos e vivendo sonhos imposssíveis. Mas quando olho pra trás e vejo os cinco filhos, me lembro da música de Daniela Mercury, que já me fez chorar uma vez: são cinco meninos, são cinco destinos... e quando olho para os outros, para os que correram atrás do que chamam de realidade, fico feliz de ter me dedicado a eles, da minha maneira meia maluca mas de qualquer forma, permitindo que eles vivessem algum tipo de sonho perdido, em alguma longínqua cidade do interior. Sonhos que talvez os movam hoje de alguma maneira.
     E vejo também como a solidão, que me impus para criá-los me ajudou a desenvolver esse dom que me move hoje, que é o de escrever. Foi uma troca maravilhosa e mesmo nos meus fracassos com eles, tenho a sensação de ter acertado em alguma coisa, de tê-los conduzido por uma espécie de terra do nunca, adaptada à realidade brasileira e de ter transmitido a eles esse imenso amor que sinto pelo Brasil.
     Fazer 60 anos é muito bom, quando se pode olhar pra trás sem se arrepender do que vivemos, quando se pode olhar para os lados e ver os muitos amigos que garimpamos pela vida e que ainda estão ao nosso lado. Talvez 2011 seja mesmo um ano melhor, ano de coisas novas, que como sempre serão difíceis. Ano de semeaduras e quem sabe, para quem plantou, ano de boas colheitas.

Amigos

     Por falar em amigos, é impressionante como muitos amigos que andavam sumidos tem reaparecido nos últimos tempos. Começou em 2009, com Glória e Lucho, amigos chilenos, continuou esse ano com Eliane do Rio, Juca e Odete, de Vitória, Patter, outro chileno contemporâneo da Faculdade de Arquitetura da Universidad de Chile,  Mônica, do curso de linguística da Uneb, Genny Xavier dos tempos da Prefeitura de Itabuna e agora Regina Reis, que me convida para a festa de 25 anos de formatura de sua turma na Faculdade Dulcina de Moraes em Brasília, no dia 20 de novembro, cujo convite está aí ao lado.
     Pura alegria de reencontros. Viva a internet.
    


Cidades sustentáveis III

     Arquitetura orgânica

     Uma das coisas mais interessantes que apareceu no universo da arquitetura nos últimos anos, foi o conceito de arquitetura orgânica.
     Ao contrário das construções denominadas verdes ou ecológicas, as construções orgânicas não se propõem apenas a respeitar a natureza, em relação ao dispêndio de energia ou ao uso de materiais de construção que não impactem o meio ambiente. Elas são, na verdade, mais um movimento estético que ecológico, mas sua estética está ancorada na natureza, naquilo que os permaculturistas chamam de bordas e padrões.
     Essa concepção é interessantíssima pois investiga a funcionalidade das formas da natureza e a maneira como um meio se relaciona com outro através das suas bordas. Explico.
     Segundo a permacultura (cultura permanente) a margem de um rio, por exemplo, é um local de trocas entre duas realidades diferentes dentro de um mesmo ecossistema. O meio líquido e o meio sólido, da terra, trocam substâncias através das suas margens, ou bordas.
     Segundo eles, o mesmo acontece também numa horta, onde há uma atividade de troca com o meio não-horta, mais intenso nas suas bordas, porque é ali que se encontram mais frequentemente os personagens dos meios distintos. Nas bordas haveria mais polinização das flores, por exemplo, porque seria a primeira fronteira que as abelhas encontrariam. Outros insetos que interagem com as plantas, passariam mais por ali do que pelo centro, etc.

     Isso significa que haveria um dinamismo maior nessas áreas de fronteira entre meios distintos, onde a produtividade também seria maior.
     Baseado nisso, em termos de agricultura orgânica, passa ser interessante aumentar a extensão das bordas, para que as trocas também aumentem exponencialmente. Isso explicaria, na natureza, alguns formatos de folhas muito recortadas, por exemplo.
      A observação desses desenhos naturais, como as curvas de rios, bordas de folhas, ou mesmo corpos de animais, como algumas conchas de crustáceos ou de caracóis, inspiraram muitos arquitetos que trabalham com construções ecológicas a recortar ou voltear mais suas edificações, em busca dessa funcionalidade natural que permitiria, por exemplo, um aumento de superfícies de troca de calor ou de absorção de sol e água.
     Os resultados estéticos da arquitetura orgânica são surpreendentes, porque ao invés de parecerem estranhos eles soam familiares. São como coisas que já vivemos antes, em nosso passado ancestral.
     É claro que aliando essa conceituação a técnicas modernas de design chega-se a coisas verdadeiramente lindas e muito agradáveis de se habitar, embora ainda muito longe de poderem ser construídas em larga escala por nossa sociedade industrializada e cada vez mais urbana.
     São coisas para cidades do futuro, com poucos habitantes, onde o crescimento demográfico e a especulação sobre o solo forem pesadelos do passado, mas sinalizam, sem dúvida, um caminho a ser percorrido.
Histórias de outras vidas (32)

   Primeiro de Abril

     Vivíamos um clima de incertezas no Brasil daquele início de 1964, com o governo João Goulart indo cada vez mais para a esquerda, em tempos de guerra fria, e já se falava abertamente que os comunistas iriam tomar o poder no Brasil.
     Eu morava na 105 sul, uma superquadra de classe média em Brasília, onde viviam os funcionários do IAPI, como meu pai. Tinha acabado de fazer 13 anos e estava namorando pela primeira vez. Era uma menina chamada Elça. Sim, a paixão meia infantil brotara entre a turminha da quadra e eu não parava de pensar nela, que por sua vez, parecia corresponder e as amigas me mandavam recadinhos sugerindo que o caminho estava aberto.
     Foi numa quermesse do Colégio Marista que eu tomei coragem. Depois de dedicar-lhe uma música pelo alto-falante, o que gerou muitos comentários na turminha, chamei-a e disse que queria conversar. Sob olhares excitados de amigos meus e amigas dela, fomos para um canto e tomei coragem, finalmente, dizendo que queria namorar com ela.
     Era assim naquela época, pedia-se para namorar. Ela aceitou e voltamos já de mãos dadas, gerando um frisson na turma.
     Namoro era por etapas. Primeiro pegava-se na mão, depois podia-se abraçar e convidar a ir ao cinema, onde até podia rolar um beijinho. Beijo na boca era mais demorado, só depois de uns 15 dias ou um mês. Sexo nem pensar. O máximo era acariciar o seios da menina e mesmo assim muito discretamente.
     No início de 1964 as mulheres ainda sonhavam em se casar virgens no Brasil e a menina que transava caía logo na boca de todos como galinha, ficando relegada a um plano inferior pelos rapazes, destinada apenas a entretê-los, sem poder sonhar em encontrar um marido que a respeitasse.
     A turminha se reunia debaixo dos blocos da quadra e Elça morava no Bloco 1, na extremidade inferior da quadra, perpendicular ao eixo rodoviário sul. Ligando os blocos uma enorme garagem, cuja laje superior servia como local de brincadeiras e encontros para os jovens da quadra. Era ali, na muretinha sobre a garagem que nos sentávamos, eu e ela, para namorar, junto com o restante da turma.
     O pai de Elça era deputado da bancada do governo e portanto visto como comunista pela classe média local, temerosa de perder seus privilégios se ocorresse um possível golpe comunista, num tempo em que esses golpes se sucediam pelo mundo e os comunistas fuzilavam os burgueses responsáveis pela exploração do povo, segundo eles.
     Num tempo em que a indústria automobilística nacional estava começando, nossos pais tinham DKWs, Aero-Willys e Simca Chambords, mas o pai de Elça tinha um carro muito diferente, um Rambler americano, carro médio, num tempo em que os americanos fabricavam aqueles carrões imensos.
     No dia 31 de março, tinha havido muita movimentação em Brasília. Minha mãe, funcionária do Congresso Nacional, tinha me levado para assisitr os debates das galerias da Câmara, quando pude ver os discursos do líder das ligas camponesas, Francisco Julião e do lacerdista Padre Godinho, e o debate acalorado que se seguiu entre eles. Havia uma eletricidade no ar e todos espervam que alguma coisa acontecesse. 
     No dia primeiro de abril, passamos a tarde toda na laje da garagem, eu, Elça, Lige (Luis Antonio), Geraldo (Costa Manso), Claudia e outros que não me lembro bem e que iam e vinham.  
     Os aero-willys pretos do governo passavam velozes pelo eixão a toda hora, sinal de que os governantes estavam nervosos. Quando anoiteceu, pudemos observar o Coronado da Varig, o avião mais moderno da época, pousar e estacionar no aeroporto, mantendo suas luzes piscando. Sim, naquela época se via o aeroporto dali, o que hoje é impossível devido as quadras que foram construídas. 
     Indiferentes a tudo, na irresponsabilidade dos nossos 13 anos, brincávamos que a coisa estava esquentando. Foi quando Elça se virou e nos disse com a graça que era sua característica: Mas quem vocês pensam que já está no poder? Os comunistas claro! Concordamos todos, mesmo que alguns o fizessem a contragosto, refletindo opiniões de seus pais, pois a situação parecia completamente definida.
     Naquela mesma noite, um daqueles aero-willys passou por ali ventando, com João Goulart a bordo, para pegar o seu Coronado, que o levaria à Porto Alegre, de onde partiria para o exílio, do qual nunca retornaria com vida.
     Na manhã do dia 2 de abril a cidade amanheceu tomada por tanques do exército. A hesitação de Goulart dera tempo à direita de organizar a contra-revolução e executar o golpe, instalando em nome da democracia, a ditadura que marcaria nossas juventudes e nossas vidas. Depois mudaram a data do golpe para 31 de março para não pegar mal.
     O pai de Elça se exilou numa embaixada e nunca mais a vi. O dia primeiro de abril de 1964 foi a maior mentira da nossa história, uma mentira trágica que mudou nossas vidas para sempre.

Boa segunda-feira a todos

Ricardo Stumpf Alves de Souza