Histórias de outras vidas (1)
NOITE AMAZÔNICA
O chefe me chamou e disse que eu teria de viajar para o interior.
Era um posto de gasolina em Maués, a umas doze horas de barco de Manaus, quase na divisa com o Pará.
Eu gostava daquele emprego, de projetar postos na Amazônia. A multinacional tratava bem seus funcionários, pagava bem, e esta seria minha primeira oportunidade de conhecer o interior do Estado do Amazonas.
Na tarde do dia seguinte, uma quinta-feira, embarquei.
Era um barco de tamanho médio, naquele universo de barcos do grande oceano amazônico, formado por rios, lagos e furos, que são aqueles canais que interligam tudo.
Peguei uma cabine, pequena, com beliche, no andar de baixo. Em cima, a cabine de comando, na frente, e o bar atrás, onde se podia tomar uma cerveja olhando a esteira do barco e sentir a brisa noturna que amenizava o calor da floresta.
Na sexta de manhã cedo, chegamos à Maués. A cidadezinha apareceu numa curva do Rio Maués, um rio largo, de águas verdes.
Fiquei hospedado em um pequeno hotel, no centro, próximo à pracinha do Fórum, na beira do rio.
Da minha janela eu via um quintal arborizado que terminava nas areias brancas da margem. Do outro lado, ao longe, algumas casas em meio a plantações indicavam a presença de sítios, na várzea do rio, onde costuma acontecer a produção agrícola nas pequenas propriedades da amazônia brasileira.
Ao longo do dia, enquanto visitava o local da obra e verificava o que precisava ser construído, me informei sobre aquele povoado e soube que se chamava Vera Cruz, um aglomerado de pequenos sitiantes.
À tarde arranjei um barco e fui conhecer Vera Cruz. O barqueiro me levou à casa de um casal diferente. Ele, gaúcho, louro, de cabelos compridos. Ela, cearense, traços levemente indígenas, e duas crianças pequenas.
A casa deles, feita com paredes de varas finas de madeira, bem juntinhas, era extremamente artesanal. Tudo era muito bonito, feito com gosto e cuidado. Me receberam muito bem e me convidaram para me hospedar lá. Fiquei o fim de semana todo.
No sábado à noite fui com eles a um festejo no interior do município. Era início da campanha eleitoral de 1992 e haveria um comício em um povoado, seguido de várias festividades e comes e bebes pagos por um candidato. Fomos à tarde numa voadeira comandada pelo gaúcho.
O lugar ficava numa curva de rio, um barranco alto que havia sido desmatado para abrigar meia dúzia de casa e um campinho de futebol, onde se realizou um disputado campeonato com os times dos caboclos que trabalhavam nos sítios e fazendas da região. No pequeno porto, repleto de canoas e voadeiras, realçava fulgurante, o iate branco do deputado candidato à reeleição, que patrocinava a festa.
O gaúcho começou a beber cerveja (de graça) e não queria parar. Fiquei preocupado com a volta, afinal ele iria guiar o barco. À meia-noite consegui tirá-lo da festa e rumamos de volta.
Ele, apesar da cerveja, dirigiu bem a embarcação, que deslizou no meio da noite, em meio a furos e igarapés, e minha preocupação com a capacidade do piloto em dirigir a lancha foi logo substituída pelo êxtase. Percebi o inusitado daquela ocasião que eu vivia, deslizando em meio à floresta, em noite de lua, naquele ambiente pleno de vida e mistério.
Os cheiros, os ruídos vindos do rio e da mata, eram ao mesmo tempo assustadores e fascinantes. O reflexo da lua nas águas e nas folhas me fez ter consciência da pequena dimensão do meu ser naquela imensidão da qual eu fazia parte naquele momento e de como era bom pertencer àquele mundo, a essa natureza que nos envolve e da qual nos afastamos tanto na vida urbana.
Naquele momento entrei em comunhão com a natureza e com a sua dimensão divina, que está em nós e que é a vida, e tive a certeza de que já tinha valido a pena ter vivido.
Abraço a todos
Ricardo Stumpf