A Manilha e o Libambo I
A Senegâmbia, a Costa do Ouro e Tumbuctu
Prezados amigos leitores.
Já fazem algumas semanas que venho me deliciando com a leitura deste livro, de Alberto Costa e Silva, intitulado A Manilha e o Libambo - a África e a escravidão, de 1500 a 1700, (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro- 2011).
Pensei em terminar a leitura e fazer uma resenha, como sempre faço, mas à medida em que a leitura avança isto me parece, cada vez mais, uma tarefa impossível, dada a quantidade imensa de informação sobre os povos africanos e suas relações com os europeus, principalmente os portugueses, nos séculos XVI, XVII e XVIII. Assim que resolvi partir a resenha em várias, para que não fique grande demais.
A primeira surpresa, para quem não é do ramo, é perceber o total desconhecimento que nós, brasileiros, temos sobre a África. Não sabemos nada, além da historinha que nossos livros escolares contam sobre a escravidão.
No decorrer do livro, uma realidade imensa e deconhecida se derrama sobre nós, trazendo ao nosso imaginário centenas de povos, organizados em reinos e cidades-estado.
Costa e Silva começa a contar sua história à partir do norte, pelo mediterrâneo, analisando as sociedades africanas, já conquistadas pelos árabes e pelo Islam, sempre focando na instituição da escravidão, que segundo ele, é muito mais antiga do que possamos imaginar, e já era praticada por chineses, indianos, indonésios e outros povos orientais, muito antes de se disseminar pela África Negra, onde também já existia antes da chegada dos europeus, embora com menos intensidade.
Ele trata o deserto de Saara como um oceano, que assim como os formados por águas, também exigiu uma tecnica para conseguir ser atravessado, para que os povos mediterrâneos pudessem entrar em contato com a África subsaariana.
A grande mudança neste ambiente tão hostil ao ser humano, ocorreu com a domesticação do dromedário e do camelo, por volta do ano 650, permitindo que os árabes fizessem o reconhecimento do grande deserto e começassem a abrir passagens para o sul e a comerciar com os povos da África Negra, através das suas grandes caravanas transaarianas.
Junto com eles, seguiam as especiarias da Índia e o sal, que seria trocado com os africanos por ouro e escravos. Muito embora o islamismo impusesse uma série de barreiras à escravização de seres humanos, essa prática rapidamente se disseminou por uma razão muito simples, e que se repetiria na aventura atlântica dos europeus: o comércio de seres humanos era de longe o mais lucrativo e permitia a acumulação rápida de grandes fortunas, tanto para os compradores quanto para os vendedores.
Segundo Costa e Silva, "Ralph A. Austen calculou em um milhão, 740 mil os escravos negros que chegaram ao mundo islâmico pelas rotas transaarianas, entre 650 e 1100."
Quando os portugueses começaram seu desbravamento do litoral africano, nas costas do Marrocos, tiveram logo que enfrentar a concorrência das caravanas, que acessavam cidades interiores africanas, muito distantes do litoral e desconhecidas dos europeus e desenvolveram uma rede de pequenos comerciantes internos, os uângaras, que corriam por todo norte da África a mercadejar com seus produtos. Os árabes entram na África por dentro e os europeus pelas bordas. Entre as duas investidas uma guerra religiosa se trava entre cristianismo e islamismo, tentando se sobrepor às religiões tradicionais africanas e desenhando fronteiras ideológicas que ainda hoje se fazem sentir fortemente, como as que atualmente provocaram a divisão do Sudão em dois estados, um cristão ao sul e outro islâmico ao norte.
Mas o mais surpreendente para o leitor desavisado, é o estágio de desenvolvimento mercantil dos africanos. Ao contrário do querem nos fazer crer, a África já dispunha de um grande mercado interno, com trocas intensas.
Não haviam fronteiras fixas, desenhadas em mapas, como as conhecemos hoje (nem tampouco na Europa isto havia ainda se consolidado), mas reinos que se expandiam e se contraíam, à partir de guerras de conquista, onde pequenos estados se submetiam à suserania de outros, num sistema de tributos e prestação de contas entre lideranças, em constante mutação, onde os pequenos tentavam crescer a custas dos maiores, buscando posições mais vantajosas, o que resultava em muitas guerras.
Mas o comércio era intenso e constante. Os africanos dominavam a fundição do ferro e até do aço, mas especialmente do cobre, com o qual produziam as
manilhas (à esquerda) em forma de pulseiras, que lhes serviam de moeda. Produziam também tecidos finos, dominavam a pesca e a agricultura, assim como a mineração.
O autor então começa a descer o atlântico, descrevendo a epopéia pioneira portuguesa onde vão fundando entrepostos e tratando de fazer acordos com os reis africanos, estabelecendo contatos comerciais que vão se aprofundando, sempre em busca de riquezas como o ouro e a prata, à qual davam em troca produtos europeus, como os tecidos italianos, cavalos lusitanos, contas de vidro, tecidos de veludo e outras mercadorias.
É antes de mais nada um relacionamento comercial, onde a concorrência se trava, em primeiro lugar, entre árabes e europeus, uns adentrando a África pelo deserto e outros bordejando-a pelo mar. A conquista de Ceuta, em 1415, embora tenha sido um
feito militar, não levou Portugal a conquistar um território, semelhante ao que hoje consideraríamos uma
colônia, mas apenas uma cidade à beira-mar, uma base para garantir o seu comércio, onde, antes de tudo, buscavam ganhar a confiança dos reis e, sempre que possível, o monopólio do comércio.
A escravidão é tratada como tema central do livro, desde os primórdios dos contatos entre árabes, europeus e africanos, porque o comércio de seres humanos não cessa de se intensificar nessa época, representado pelo
libambo do título, que era uma espécie
de forquilha usada para imobilizar os escravos que caminhavam em fila (na figura à esquerda), ligados por cordas ou correntes. A
manilha e o libambo, portanto, simbolizam bem esta época onde o comércio era pago com as manilhas e seu principal produto o próprio ser humano,
preado em excursões pelo interior do continente, de início por árabes e europeus e depois pelos próprios reis africanos que descobriram no comércio de
corpos uma fonte do aumento de seu poderio e riqueza, assim como de enfraquecimento dos seus rivais.
O escravo, de início capturado pelos árabes principalmente entre europeus nórdicos e eslavos (a palavra escravo vem de eslavo), precisa ser alguém de longe, para que não fuja com facilidade, retornando à sua comunidade. Precisa ser diferente, preferencialmente até de outra etnia, para que possa ser identificado como estrangeiro e à partir daí desumanizado e tratado como coisa.
A escravidão já existia na África Negra, segundo o autor, principalmente nos grandes reinos da savana sudanesa, como os de Gana, Mali, Canen-Bornu e Songai, "...estados de maiores dimensões e mais centralizados e hierarquizados", mas com o contato com os mercadores árabes e europeus, os reis africanos logo descobriram que, o que até então era um modo de produção para fornecer mão de obra a um continente de terras vastas e férteis, podia também se transformar num comércio lucrativo e passaram a caçar seres humanos nos reinos vizinhos, até para impedir que os seus próprios fossem caçados, e vendê-los aos mercadores.
A Senegambia
Na viagem que vai fazendo para o sul, através da costa atlântica da África, o autor descreve os reinos da Senegâmbia, ao sul da atual Mauritânia entre o Rio Senegal, no noroeste africano, onde predominavam os jalofos, com seus reinos vassalos de Ualo, Caior, Baol e Sine e o Rio Gâmbia, mais ao sul, de onde se descortinava o grande império do Mali suserano dos reinos de Sangoli, Cantorá, Niumi, Uli, Jalom, Futa e Gabu, além do reino de Songai, muito mais a dentro do continente, já nas margens do alto rio Níger. O mapa abaixo, à direita, retirado do livro, mostra a região noroeste da África na época das navegações portuguesas, com os povos que eles encontraram na Senegâmbia, na chamada Costa do Ouro e no golfo de Benin. o mapa à esquerda mostra a Senegâmbia atual, formada pelos territórios do Senegal (à partir da margem sul do rio Senegal) e de Gâmbia, que é um pequeno enclave dominando as duas margens do rio Gâmbia.
Todos esses reinos tinham suas capitais no interior, muito distantes do litoral e mais próximas às
praias do grande deserto, por onde chegavam as
cáfilas, como eram chamadas as grandes caravanas de mercadores. Com o advento das caravelas, parte desse comércio se deslocou para o litoral, mas mesmo assim, as grandes caravelas portuguesas eram obrigadas a subir os rios para fazer acordos com os reis, pagando tributos e ofertando presentes, para adquirirem o direito de comerciar.
A Costa do Ouro
Continuando para o sul, ainda seguindo mapa do noroeste africano, os portugueses entraram em contato com os povos do que eles chamaram de Costa do Ouro. O país dos Acãs, já se situava em plena floresta tropical, ao sul da savana africana, e dentre os vários reinos em que se dividia, tinha no reino de Bono, cuja capital era a cidade de Bono Mansu, no chamado Volta Negro (Rio Volta), o seu centro mais importante, irradiador do seu modelo político. Um pouco mais ao norte, a cidade de Bigu era uma espécie de entreposto por onde se comerciava o ouro, retirado pelos acãs do seio da grande floresta, com o Mali, o país dos mandingas, situado mais ao norte, às margens do grande deserto, e grande comprador de ouro em troca de produtos que vinham pelas cáfilas transaarianas.
Bigu não era apenas um entreposto, mas "...um importante centro textil, de produção de ferro e trabalho no marfim e no cobre".
Os acãs logo aprenderam a comerciar com os portugueses e, em troca de ouro, se tornaram grandes compradores de escravos para suas minas e para a derrubada da floresta na ampliação de suas plantações, que faziam a fortuna dos líderes dos clãs que se apropriavam das melhores terras.
Recebiam também, em troca do ouro, objetos de cobre (que era considerado mágico, defendendo quem o usasse de raios, enfermidades e maldições), tecidos como os linhos brancos e a lãs azuis e vermelhas, o vinho branco, as pimentas e outras especiarias da Índia, o coral, o âmbar, a ágata, as contas de vidro coloridas e também alguns tipos de conchas raras que eram usadas como ornamento e até como moeda circulante (como o cauri das ilhas Maldivas).
Os portugueses passaram rapidamente de compradores a vendedores de escravos, na Costa do Ouro, escravos obtidos mais ao norte, na Senegâmbia, resultado das guerras internas, principalmente entre os reinos do Mali e de Songai, e preados pelos mercadores uângaras, que os levavam até o litoral para vendê-los aos europeus.
Para consolidar seu comércio com os reinos acãs, os portugueses construíram em 1482, na localidade conhecida como Mina, o forte de São Jorge da Mina, (na foto abaixo, hoje localizado em Gana) para defender seu entreposto e afungentar os barcos holandeses, franceses, espanhóis e ingleses, que já ameaçavam seu monopólio comercial.
Segundo Costa e Silva, "...os portugueses levaram para o castelo de São Jorge, no período que vai de 1500 a 1535, entre dez mil e 12 mil escravos. E estima-se que Lisboa tenha recebido anualmente, daquela fortaleza, nas duas últimas décadas do século XV, cerca de 400 ou 500 Kg de ouro, e entre mais de 410 e 700Kg, por ano, nos vinte primeiros anos do Quinhentos."Mas a competição entre as caravelas e as caravanas nunca foi vencida pelos portugueses, pois os uângaras tinham interesse em manter abastecidas as caravanas do deserto, lucrando com o comércio em duas frentes, a do Atlântico e a transaariana.
O Madimansa e Tumbuctu
O alto rio Níger tinha nas cidades de Jené e Tombuctu seus principais contatos com os mercadores do deserto. Ao final do século XV elas eram controladas pelo
Madimansa, como era chamado o imperador do grande estado central do Mali. Ao final deste século, porém, o reino do Songai começa sua grande expansão, às custas do Mali, até que o
Ásquia (rei de Songai), consegue controlar toda a região, o que inclui os
portos do deserto e as minas de sal, através do qual podia conseguir o ouro dos acãs.
Esta guerra que se estendeu por mais de 100 anos, criou grandes levas de escravos que eram levados à Senegâmbia e vendidos aos portugueses, que os levavam para serem vendidos na Mina ou em Portugal e Veneza e fez com que o reino do Mali encolhesse em tamanho e importância, embora nunca tenha desaparecido.
Os portugueses intervinham nessas guerras, apoiando os reis que lhes eram mais convenientes, e com isto ajudaram a destruir o grande reino Jalofo da Senegâmbia, que se dividiu numa constelação de pequenos reinos.
Em meados do século XVI, os marroquinos resolvem invadir os domínios de Songai, numa desforra pela perda da península ibérica, tentando tomar ao portugueses o controle do ouro acã, que saía pelo deserto. Cruzam o Saara com suas armas de fogo, arcabuzes e canhões, e logram tomar Tombuctu e Jené, avançando sobre o reino Songai.
O Madimansa da época, aproveita a oportunidade para tentar recuperar parte das suas terras perdidas para Songai e reúne um exército, tentando reaver seus domínios ao norte, especialmente Tombuctu e Jené, mas é derrotado pelos exércitos de Songai.
Perseguido na sua fuga, o Madimansa é alcançado pelos soldados de Songai, mas segundo os cronistas da época, estes ao prenderem-no, se ajoelham diante dele e pedem que fuja, para não ser capturado.
O Madimansa, apesar da perda de seu poder, mantinha sua aura de chefe sagrado, que transcendia o Mali e se espalhava pelos reinos Jalofos, Acãs e pela própria Songai.
Os marroquinos conseguem dominar por algum tempo os portos do deserto, e desviam toda a riqueza de Songai para o marrocos, através do deserto:
"Logo após a conquista do coração de Songai, o ouro correu para Marraquexe. O ouro, o marfim e a escravaria. Não só os marroquinos para lá encaminharam, sem permitir que tomassem outros caminhos, todas as mercadorias de exportação que, vindas do sul e do sudoeste, desciam em Jené, Tombuctu ou Gaô, como devem, com o resultado de saques e do confisco, ..., ter aumentado substancialmente os primeiros carregamentos.
Mas diante da dificuldade logística de manter esses postos avançados do outro lado do deserto, acabam abandonando-os. O Madimansa e seus prepostos, os Mandingas, preservam sua autoridade, mesmo com um território reduzido e continuam a influenciar toda a região, com sua estrutura política e econômica.
Tombuctu preservou sua aura de cidade governada por uma elite intelectual e Jené de cidade de ferreiros e artesãos, um verdadeiro centro industrial às portas do deserto. Tumbuctu ainda existe e hoje está situada no Mali, sendo tombada pela Unesco, como patrimônio histórico mundial, sediando a importante Universidade de Islâmica de
Sankore.
(para maiores informações sobre sobre Tombuktu, consulte o link
http://worldgeoblog-marilu.blogspot.com.br/2011_09_01_archive.html).