Histórias de outras vidas (42)
ONDE FICA A 408?
O ano era 2001, o dia, 22 de setembro, onze dias depois dos atentados às torres de Nova Iorque. A cidade: Brasília. O local: setor comercial local da superquadra 102 norte, nos fundos do Hospital Regional da Asa Norte, o HRAN. A hora: 11:30 da manhã.
Eu estava em Brasília a pouco tempo. Tinha largado o emprego na Prefeitura de Itaberaba, atendendo ao pedido de meu pai para que voltasse a Brasília, para fazer o projeto e acompanhar a obra do condomínio que ele queria implantar no seu terreno, no bairro Park Way.
Meu filho pequeno já tinha ido pra Brasília desde fevereiro, depois que uma epidemia de dengue derrubou a metade da cidade de Itaberaba, inclusive eu. Ele gostava de desenho e pintura e estava matriculado havia poucos dias em uma escolinha naquela quadra. A aula terminava as 11,30 e eu o aguardava no estacionamento, no carro de minha mãe, um bonito Toyota Corolla, enquanto lia a Folha de São Paulo.
Um jovem se aproximou da minha janela e perguntou:
_Por favor, o senhor sabe informar onde fica a quadra 408 norte?
Abri a porta e saí, para indicar a direção. Ficava do outro lado do Eixo (a grande avenida que corta todo o plano Piloto de Brasília), era preciso atravessar pela passagem subterrânea e depois virar a esquerda e caminhar seis quadras. Fui até a calçada e expliquei tudo. Ao lado do rapaz, um pouco distanciado, um outro, mais velho, também magro e com uma careca inicial, escutava as explicações.
Ele agradeceu e voltei para o carro e para meu jornal, mas pude observar que eles não seguiram na direção indicada. Achei estranho, mas decidi não controlar para onde eles iam. Vai ver resolveram passar em algum outro lugar antes. Mas a aquilo ficou na cabeça, como uma pequena luz acesa, de que havia algo de errado.
Alguns minutos depois o mesmo jovem bateu novamente no meu vidro. Trazia um casaco enrolado na mão. Abri, pensando que ele iria me pedir mais alguma informação, e então ele desembrulhou rapidamente, de dentro do casaco, um enorme revólver que colocou na janela, na altura do meu coração, e me disse:
_Passe para o banco do carona!
Surpreso, sem saber o que fazer, obedeci.
O outro, entrou rapidamente no banco de trás e me encostou na altura da cintura, do lado esquerdo, algo que ele disse ser uma arma.
_É melhor você colaborar porque hoje já matamos dois – disse ele.
O mais jovem, ao volante, me pediu explicações sobre o câmbio automático e saiu satisfeito com o carro. O de trás pegou minha bolsa e começou a escarafunchar minha carteira, retirando cartões de banco e pedindo senhas.
Pegaram a avenida do Setor de Indústrias,que passa por fora do Plano Piloto e pararam num posto Shell que existe ao lado do supermercado Extra. Ali vi minha chance de pular fora. Pensei: eles não vão atirar em mim aqui, no meio de todo mundo. Eu podia simplesmente ter aberto a porta e saído, enquanto o bombeiro enchia o tanque. Mas o de trás apertou a arma na minha cintura e disse que se eu me mexesse atiraria.
Era uma questão de avaliar rapidamente qual eram as chances e assumir riscos muito grandes. Certamente se eles atirassem iam tentar sair correndo do posto. Aquele modelo de carro abria a tampa do tanque por dentro, portanto, a chave continuava na ignição durante o abastecimento, permitindo que eles arrancassem a qualquer momento. Isso facilitaria a fuga, o que talvez evitasse uma situação em que os bandidos ficassem encurralados e começassem a atirar em todo mundo.
Eles mandavam que eu ficasse com os olhos fechados e disseram para o bombeiro que eu tinha bebido muito e estava dormindo. Foi nessa hora que me decidi. Até aí estava sendo arrastado pelos acontecimentos, ainda surpreso com tudo aquilo e sem querer acreditar no que estava acontecendo. As várias alternativas sobre o que fazer percorriam minha mente rapidamente, procurando respostas nos meus seqüestradores.
Eu podia dar uma de herói e sair correndo do carro, podia me revoltar contra eles, ou simplesmente entrar em pânico. Mas a decisão veio súbita: iria procurar dialogar com eles, de forma que pussesse minimamente em risco minha vida e a deles também. Procuraria vê-los como seres humanos, iguais a mim, com quem podia dialogar.
Assim, quando o bombeiro viu que eu estava de olhos fechados e fez algum comentário, e o cara ao volante disse que eu havia tomado muito Red-Bull, me fiz de bêbado e disse com a voz meio embriagada:
_Eu tô legal..., muito legal.
Eles riram e isso provocou uma distensão geral. Eu estava tentando quebrar aquela parede entre bandido e vítima, mas não tinha a menor idéia do resultado.
Na seqüência, mandaram eu permanecer de olhos fechados e seguiram. Eu, pelo canto do olho, pude ver que estávamos indo para o núcleo bandeirante e que depois tomamos o caminho de Taguatinga, mas o sujeito ao volante me disse:
_Você está olhando, fecha o olho!
Achei melhor obedecer e procurei conversar com eles, pedindo que me deixassem em qualquer lugar e levassem o carro. O de trás, revirando meus documentos, me fez um monte de perguntas. Onde eu morava, de quem era o carro, além, é claro, sobre senhas e dinheiro nas contas. Fiquei com medo de que eles fossem para a casa dos meus pais e assaltassem todo mundo. Eles podiam simplesmente entrar lá comigo, render todo mundo e fazer uma porção de barbaridades.
Menti, dizendo que o carro era de uma tia minha, que eu tinha vindo da Bahia a poucos dias e estava desempregado (o que era verdade) e que ninguém dava emprego para um homem de 50 anos como eu. Aí eles concordaram e disseram que era por causa do desemprego que eles faziam aquilo. Concordei que a situação estava mesmo ruim e que os homens do governo eram uns filhos da puta. Foi um segundo momento de distensão, em que eles deixaram a postura de carrascos e falaram da situação deles, muito embora eu não concordasse que aquilo fosse uma justificativa válida.
Foi aí que comecei a receber alguns sinais. Eu sou muito atento a sinais.
O de trás, no meio do interrogatório, tinha achado a identidade do meu filho (o que estava no curso) e me perguntado sobre ele. Disse que estava em casa e que eu estava ali parado fazendo hora para ir a uma entrevista de emprego (com medo de que eles voltassem e seqüestrassem o menino também). De repente, depois de examinar tudo, ele me entregou a identidade, dizendo:
_Toma a identidade do seu filho.
Achei estranho. Porque ele me devolveria um documento, no meio de um seqüestro? Gostei disso, porque esse filho é como uma benção para mim. Tudo que ele participa dá certo, e tudo que ele põe a mão também dá certo. Colocar sua identidade no meu bolso, foi como obter a proteção da luz que sempre emanou dele. Achei também que aquele foi um gesto de simpatia, como se ele dissesse, bom toma aí teu filho pra te fazer companhia.
Enquanto corríamos pelo asfalto, eu perguntava a eles o que iam fazer comigo e pedia que me soltassem.Uma hora eles me disseram que iam me levar para um cativeiro, onde já se encontravam duas pessoas.
Logo veio um segundo sinal. O da direção havia me pedido instruções sobre como ligar o rádio. De olhos fechados fui explicando. Ele ligou e sintonizou numa rádio qualquer. No meio da programação entrou uma música evangélica, dessas que só fala de Deus. Prestei atenção: a música falava algo sobre confiar em Deus e deixar nas suas mãos a solução. Depois entrou um anúncio e logo vieram outras músicas que não tinham nada a ver com religião. Pensei: uma música sobre Deus no meio de uma programação comercial, não é normal. Guardei a mensagem de fé e esperança.
Depois de muitas voltas e algumas confabulações entre eles, finalmente pararam, à beira de uma estrada, onde havia um mato. Mandaram que eu caminhasse lá pra dentro, em direção à uma torre de energia. Pensei que eles iam me matar ali e disse para o do volante:
_Você não vai atirar em mim, não é? Me deixa aqui que eu não denuncio vocês.
Mas ele apenas dizia para que eu caminhasse. Houve um momento que eu não ouvi mais seus passos e pensei que ia ser baleado, mas logo depois ouvi novamente a voz dele, mandando que eu seguisse. Acho que foi nesse momento de ausência, que eles resolveram o que fazer comigo.
Por fim mandou que eu sentasse junto a uma pequena árvore. Tirou uma corda fininha de uma sacola plástica e mandou que eu esticasse as mãos pra trás, em volta do tronco da árvore. Obedeci e ele começou a me amarrar, mas mandou que eu esticasse os braços. Não entendi, porque se eu esticasse, depois que eu relaxasse a corda ia afrouxar. Fiquei com medo de fazer isso e ele achar que eu estava querendo engana-lo. Aí foi demais a minha colaboração com eles, porque eles queriam justamente que eu me soltasse depois de algum tempo, o suficiente para que se afastassem.
Ele pediu de novo que esticasse os braços e como eu vacilasse ele me amarrou assim mesmo, bem junto ao troco. Depois eu me arrependeria amargamente de ter sido tão bem comportado.
Em seguida me amordaçou e me vendou com panos velhos. Antes de sair disse que ia chamar os bombeiros para me soltar, ...daqui a uma hora!
E foi assim que me vi, no meio do mato, amarrado, amordaçado e vendado, como um bicho, para morrer. Qual tinha sido o meu crime para sofrer uma provação dessas? Eu não sabia.
É aí que se sente o desafio pela vida gritar dentro da gente. Agoniado, comecei a me esfregar no tronco da árvore e rapidamente me livrei da venda e em seguida da mordaça, o que foi fundamental para minha salvação. Percebi que os panos que usaram para me vendar e amordaçar eram velhos se rasgaram facilmente. Parecia que eles queriam realmente que eu me soltasse e que tudo aquilo era só pra ganhar tempo.
A partir daí foram quatro horas de gritos de socorro e tentativas inúteis de me soltar das cordas, até que meus pulsos ficassem em carne viva. Mas durante esse tempo muita coisa passou pela minha cabeça. Falava alto, conversava com os pássaros, pedindo que eles fossem avisar a minha família, conversei com as formigas, que rodeavam a árvore e nenhuma delas me mordeu. Falava comigo mesmo, amaldiçoando a hora em que não estiquei os braços, pensava nos meus filhos, conversava com Deus e os espíritos.
Foi aí que me lembrei da menina do orfanato. Sim, eu havia dito que se tivesse um emprego a adotaria e logo depois fui chamado para trabalhar em Itaberaba, mas fiquei inventando um monte de desculpas para não adotá-la: estava velho demais, ganhava muito pouco, já tinha criado tantos filhos...
Mas será que essas entidades seriam tão cruéis, a ponto de me colocar numa provação daquelas só para me obrigar a cumprir o prometido, só para que eu me lembrasse de uma promessa não cumprida? Aliás, será que eu havia feito mesmo uma promessa ou apenas tinha dito pra mim mesmo que faria aquilo?
Fiquei triste pensando na menina lá no orfanato enquanto eu ia morrer ali, amarrado feito um animal. Pensei em tudo que podia ter feito na minha vida, que podia ter vivido, ao invés de ficar me preocupando em ter um carro novo ou em comprar coisas... Pensei nos meus filhos, nos sonhos que eu tinha de criar abelhas na serra, no meu sítio em Rio de Contas, que estava lá abandonado, enquanto eu ficava sonhando com empregos públicos, burocráticos...
Pensava isso nos intervalos dos meus gritos de socorro. Tentava me soltar, mas não havia jeito. Consegui tirar os óculos, pendurados no pescoço, me roçando para cima e para baixo na árvore, até que eles caíssem nos meus pés. Comecei então a pisoteá-los, para que se partissem. Quando vi que uma das lentes estava partida, consegui me abaixar e pegar um caco, para tentar cortar a corda. Mas quando eu tentava, só conseguia cortar o meu braço.
Uma tristeza enorme me invadiu ao perceber que estava ali por egoísmo, por materialismo, porque havia abandonado meus sonhos e minha maneira despojada de ser, por haver me deixado contaminar pelo materialismo da minha família, sempre me chamando pra Brasília, aquela cidade que sempre havia sido ruim para mim.
Decidi, com lágrimas nos olhos, que se saísse dali, a primeira coisa que eu faria seria adotar aquela menina e viver todas as coisas que eu queria fazer... escrever, criar abelhas, morar no interior. Sim, eu abandonaria o cursinho que estava fazendo para um concurso e iria morar no interior, junto aos meus amigos, para uma vida mais simples, com meus filhos.
Pensei na menina e pedi desculpas a ela, mentalmente. Jurei para mim mesmo, que nada me deteria, se eu saísse dali, para cumprir aquela obrigação. Que não seria por mim, mas por ela, não importasse o que acontecesse. Que se aquelas entidades queriam tanto que eu fizesse isso, então deveria haver um sentido maior em tudo isso.
Passados poucos minutos da minha decisão, ouvi pela primeira vez uma resposta aos meus gritos. Fiquei em silêncio, para confirmar. Logo veio outro grito:
_Tem alguém aí?
Com o coração aos pulos gritei com força:
_Tem. Eu estou amarrado, me acode por favor!
A voz então perguntou:
_Você está sozinho?
_Estou! Respondi.
_Espera aí que eu vou chamar a polícia!
Entrei em desespero e gritei.
_Por favor, não me deixa aqui!
Mas a voz me respondeu firme:
_Não se preocupe, eu não vou deixar você aí. Vou chamar a polícia!
Depois disso se passaram alguns minutos de silêncio e eu me convenci que aquilo devia ser alguma crueldade dos bandidos só para se certificar de que eu continuava preso. Resolvi continuar gritando e tentando me soltar. Cheguei a conseguir me deitar, para tentar uma posição mais relaxada, que me permitisse cortar a corda, sempre com o caco de vidro na mão direita, mas nada.
Eu só me cansava cada vez mais e começava a me sentir fraco e muito cansado. Pela primeira vez pensei em me deixar morrer, pra me livrar do sofrimento.
Já havia passado um longo tempo, pelo menos para mim, quando ouvi novamente a voz:
_Ei!
_Estou aqui! Respondi de novo.
_A polícia está aqui, já estamos entrando!
Uma segunda voz então falou:
_Você está sozinho?
_Estou! Estou amarrado! Respondi.
As vozes foram se aproximando e gritando e eu respondendo, para que eles me localizassem, no meio do mato, até que vi aparecerem quatro policiais. A cena foi parecida com, a que eu havia imaginado logo que os bandidos me deixaram. Foi como uns flashes que eu via na minha imaginação, com a polícia chegando.
O Policial que liderava, quando me viu deitado no chão, todo sujo de terra, disse:
_Olha isto!
Pediu que eu me sentasse para cortar minhas cordas, mas eu não conseguia me mexer. Levaram alguns minutos cortando as cordas, minutos intermináveis antes da minha libertação. Finalmente, quando conseguiram, ele disse:
_Me dá sua mão pra eu te ajudar a levantar.
Mas quem disse que eu conseguia colocar meus braços pra frente. Eles simplesmente não me obedeciam. Foram preciso dois policiais para me levantarem.
O guarda então me ofereceu um celular para telefonar e eu dei a ele o número da casa de meus pais Ouvi ele falando com alguém, que eu havia sido seqüestrado, mas já estava tudo bem e eles me levariam para uma delegacia em Taguatinga.
Finalmente me tiraram dali e ao chegar na beira da estrada me apresentaram ao dono da voz inicial. Me disseram: foi ele que chamou a gente. Ele tem alguma coisa a ver com isto? Eu olhei bem pra ele e disse: não. Jamais me esqueceria do rosto dos dois bandidos. Perguntei o seu nome e ele disse: Antônio. Então o abracei e comecei a chorar dizendo: Antonio não, Santo Antônio, Santo Antônio!
Fui na viatura pra tal delegacia. Lá, sujo e arrasado, fiquei sentado numa cadeira, respondendo perguntas de um agente. Depois veio um delegado e me perguntou o que tinha acontecido. Respondi que havia sido seqüestrado. Aí ele confabulou com o agente e me disse:
_Isso não foi seqüestro. Seqüestro é só quando pedem resgate. Foi roubo.
Fiquei olhando pra ele, pensando em que diferença fazia aquilo pra mim. Me lembrei também de quando eu me separei da minha mulher e levei meu pequeno filho e fui acusado de seqüestro. Engraçada essa polícia!
Logo meu pai chegou, com dois amigos que estavam jogando pôquer com ele. Parecia irritado e quando me viu foi logo falando:
_Você está todo sujo!
Não entendi aquilo. Eu estava todo vermelho de barro, porque ele estava falando assim comigo?
Quem agiu com um pouco de consideração foi um dos amigos dele, um velho dentista que freqüentava nossa casa. Se aproximou de mim, perguntou o que tinha acontecido, olhou minhas feridas e me disse algumas palavras reconfortantes. O outro amigo, um advogado particularmente desagradável, nem chegou perto de mim, e me olhou com uma cara esquisita. Não liguei muito porque ele sempre tinha uma cara esquisita, como se estivesse julgando os outros.
No carro, de volta pra casa, meu pai foi conversando com eles, como se nada tivesse acontecido. Pediu desculpas a eles por haver interrompido o jogo.
Pensei que fossem me levar para um hospital, mas não. Direto pra casa.
Só depois de uns dias é que fui entender. Eles pensaram que eu estava envolvido em alguma coisa de natureza sexual, algum programa ou coisa assim, por isso a irrritação, a vergonha dos amigos e também um certo desprezo por mim e pelo meu sofrimento. Nas horas em que fiquei desaparecido, meu filho ligou para saber porque eu não havia ido buscá-lo e meu pai disse que eu devia ter ido fazer algum programa, porque eu era divorciado e coisas assim.
Ele me conhecia mesmo muito pouco. Eu jamais abandonaria um filho me esperando, especialmente esse filho.
Na noite seguinte, eu que há mais de um ano não tomava uma bebida alcoólica, nem comia nenhum tipo de carne, coloquei uma camisa de manga comprida para esconder os braços machucados, chamei um amigo e fui ao Beirute, tomar cerveja e comer quibe, para comemorar a vida.
Fiquei quinze dias sozinho em casa, me curando, sem nenhum cuidado médico. Me entupia de calmantes e depois, quando me senti forte, liguei para meu amigo na Bahia, avisando que iria pegar a menina no orfanato. Ele me disse que achava que ela já havia sido adotada, porque tinha sido levada por uma família, mas que iria falar com a freira. Disse a ele que iria assim mesmo.
Numa quinta-feira, véspera da partida ele me ligou de volta e falou que a família tinha desistido da menina e que ele iria tentar uma visita. Peguei o carro, chamei meu filho e me mandei para Vitória da Conquista. Antes passamos em Rio de Contas. Na manhã de sábado, quando saíamos de Rio de Contas pra Conquista ele me ligou na pousada pra dizer que tinha conseguido a visita, mas que era só até meio-dia, porque segunda-feira seria feriado e a freira ia viajar.
Chegamos à Conquista a tempo e levamos a menina para o fim de semana. Na terça-feira, ao invés de voltarmos para o orfanato, fomos direto ao juiz. Ela havia decidido ficar comigo. A participação de meu filho havia sido decisiva. O Juiz, surpreendentemente, me concedeu a guarda provisória e me deu uma autorização para viajar. Na quarta-feira estávamos viajando para Brasília.
Quando fui pegar suas coisas no orfanato, a freira me disse:
_Deus vai te recompensar.
_Já recompensou. Respondi, pensando na minha libertação.
_Mas vai recompensar mais! Disse ela.
Ao chegar em Brasília, depois de vencer a resistência inicial de minha mãe, quando viu aquela menina pobre e negra, de 9 anos, chama-la de avó, recebi um telefonema do Ministério da Integração, me chamando para um ótimo emprego, para o qual eu havia mandado um currículo havia meses e nem me lembrava mais.
Deus havia me recompensado mais, como disse a freira.
Do seqüestro guardo apenas uma certa perda de sensibilidade nos ombros, cujos nervos foram afetados e uma mancha no pulso esquerda, cuja pele ficou dilacerada pelas cordas. Guardo também a mágoa da reação de meus pais, tanto do velho, quando me pegou na delegacia, quanto de minha mãe, que só chorou com a notícia de que seu carro novo havia sido recuperado.
Ajudei o rapaz que me salvou a construir sua casa, numa região muito perigosa e cheia de bandidos, até que um dia desconfiei que ele tinha algum contato com os seqüestradores e me afastei. Mas dever a vida a alguém é uma coisa muito forte e decidi não julgá-lo.
Trabalhei mais três anos em Brasília e todo o dinheiro que ganhei, investi no meu sítio e em uma casa em Rio de Contas, para onde me mudei em agosto de 2004.
Minha nova filha está comigo até hoje e é uma linda e inteligente moça, que alegrou nossa casa e nos libertou da solidão em que vivíamos.
Só hoje, quase 10 anos depois, consegui publicar este relato. Espero que isso ajude a me libertar dessa terrível lembrança e que ajude também a outras pessoas a tomar cuidado e a não permanecer desavisadamente dentro de veículos em grandes cidades
Boa segunda-feira à todos.
Ricardo Stumpf Alves de Souza