Histórias de Outras Vidas (13)
LADRÕES DE FEIJOADA
Eu era amigo de uma turma muito alegre. Havia de tudo: meninas bonitas, rapazes jovens, outros mais velhos, gays, às vezes os pais de alguém também se enturmavam, enfim, gente que gostava de se divertir, beber e comemorar a vida.
Assim iam escorrendo os fins de semana, sempre com muita cerveja, encontros do pessoal, churrascos e reggaes. Pode-se dizer que foram alguns verões divertidos.
Um dia, um casal gay resolveu fazer uma festa de casamento, ou de ajuntamento, com uma feijoada. Assim nos reunimos para comer e comemorar a união dos dois rapazes, que apostavam numa nova vida juntos.
A panela de feijão era impressionante, não só pelo tamanho, mas pela quantidade de carnes, das mais diversas, e da melhor qualidade, que transbordavam. Sem dúvida a comida daria para alimentar meio batalhão e o aroma delicioso que exalava, não deixava dúvida sobre as qualidades gastronômicas do cozinheiro.
O dono da casa se esmerou em servir a todos, enquanto seu parceiro preparava caipirinhas e buscava na esquina as cervejas que faltavam. A tarde passou muito agradável, e quando finalmente o calor cedeu e a brisa da tarde percorreu o apartamento, todos já estavam saciados e razoavelmente embriagados.
O problema começou na hora da saída. Uma amiga, convidada, perguntou se podia levar um pouquinho de feijoada para seu vizinho, que era muito amigo de todos e enquanto os donos da casa permaneciam na sala, a jovem, muito discretamente, tirou da sacola algumas tigelas plásticas, dessas de microondas, e foi para a cozinha providenciar a encomenda.
Fiquei por último observando da varanda os amigos irem em direção ao ponto de ônibus, se despedindo como sempre, com muitas risadas e brincadeiras.
Na cozinha, como acontece nessas ocasiões, reinava o caos. Tampinhas de cerveja pelo chão, copos e pratos sujos, garrafas por toda a parte, bagaços de limão das caipirinhas que tinham caído fora da lixeira. E no canto, reinando absoluta, a imensa panela de feijoada...vazia!
Meus amigos não entediam direito do que havia acontecido. Eles olhavam para a panela e não se lembravam, preferindo deixar pra pensar no dia seguinte. Tratei de ir embora.
Muitos dias se passaram e o assunto caiu no esquecimento.
No fim do ano resolvi me mudar para Vitória da Conquista e para me despedir, resolvi fazer uma festa de Natal para as crianças do bairro São Miguel, uma colônia de pesca onde eu morava.
Convidei vários amigos, entre eles o casal de rapazes e sua turma. Eles me ajudaram a organizar uma programação intensa: fizemos uma campanha de doações de roupas, para a realização de um bazar, que arrecadou os recursos para as despesas da festa. Foram muitos dias de preparação.
O dia da festa transcorreu com muita agitação: promovemos uma gincana pela tarde, com premiação em medalhas para as três primeiras equipes. À noite houve o Natal ecumênico, com representante de várias igrejas, terminando com bolo, refrigerante e distribuição de presentes para as crianças.
As crianças do bairro compareceram em peso fazendo uma tremenda algazarra, tanto durante a gincana, quanto após a cerimônia ecumênica, na hora de comer o bolo. O ponto alto da competição foi a corrida de gaiamuns (uma espécie de carangueijo azulado que vive na terra), disputadíssima, vencida pelo menor de todos, que em meio a uma fila de crianças gritando desesperadamente, correu reto para a chegada, levando sua equipe à vitória.
Na cozinha, montanhas de comida, trazidas por vários participantes, entre elas uma enorme panela de feijoada presenteada pelo presidente do Partido Comunista, do qual eu era militante.
Ao final da distribuição do bolo, os participantes foram de dispersando e a turma muito cansada, resolveu encarar a cozinha. Alguém então se lembrou da feijoada, esquecida no meio de tanta confusão.
_Puxa, esquecemos de servir a feijoada! - eu disse, dirigindo-me à panela.
_Vou guardar para amanhã.
Mas quando tirei a tampa...nada. A panela estava vazia, raspada.
Lembrei então da menina, a mesma da festa dos rapazes, e do seu vizinho, que estavam presentes e não desgrudaram da cozinha o tempo todo. Sim eram eles. Só podiam ser eles, com suas enormes sacolas cheias de tigelas plásticas estrategicamente preparadas.
Lembrei-me então de vários aniversários infantis que eu tinha visto na Bahia, onde as crianças ficavam morrendo de vontade de comer o bolo depois do parabéns, mas este era deixado para depois e ia desaparecendo rapidamente nos tapewares, levados por várias mulheres, ...um pedacinho pra D. Lourdes, outra para a comadre, um para minha filha que ficou doente e não pode vir.
Era o famoso bolo de fotografia, intensamente fotografado, mas nunca devidamente comido pelas crianças. Era um tipo de gente que adorava carregar comida de festas.
Mas esse caso era diferente, não era como levar pedacinhos de bolo autorizados pelo dono da festa: era uma especialidade em roubar feijoadas inteiras, completas!
Abraço a todos
Ricardo Stumpf