Por Ricardo Stumpf Alves de Souza

quinta-feira, 29 de abril de 2010



Mockus Pocus

Prezados amigos leitores

Segundo a Wikipédia, "Hocus Pocus é o nome de um encantamento utilizado por mágicos do século XVII (hocus pocus, tontus talontus, vade celerita jubes) com a função de criar um ar de mistério em suas perfomaces."
Pois não é que um candidato do Partido Verde da Colômbia, de nome Antanas Mockus, acaba de assumir a primeira colocação nas prévias para a eleição presidencial marcada para 30 de maio, desbancando os tradicionais partidos Liberal e Conservador?
Mockus conseguiu a mágica de sair de 5 para 38%, apenas usando poucos recursos de internet e mais do que isso, apresentando propostas novas e inteligentes para um desenvolvimento sustentável, já aplicadas por ele nas suas duas gestões como prefeito de Bogotá.
Parece que ele conseguiu se libertar de um debate que insiste em se manter nos limites tradicionais entre direita e esquerda (no caso da Colômbia, entre uma elite militarista e fascista e agrupamentos de esquerda que há muito desistiram do espaço democrático e partiram para a luta armada), para desenvolver uma nova lógica, que questiona o desenvolvimentismo e o crescimento econômico, a qualquer preço, gerador de injustiças sociais, que criam a base para os conflitos de classe.
A economia sustentável é um desenho de desenvolvimento que busca o equilíbrio entre a economia humana e a natureza, o que inclui a valorização do trabalho, já que a pobreza é um dos maiores fatores de desequilíbrio ecológico, e a dignidade humana em todos os seus aspectos.
Na verdade a sustentabilidade é um conceito que se estende a tudo, não apenas à natureza, mas que significa a possibilidasde de permanência, de continuidade, sem esgotamento dos recursos, sejam humanos (embora esse conceito de "recursos humanos" esteja ligado à exploração capitalista do trabalho), quanto naturais ou mesmo da própria capacidade da sociedade evoluir pacificamente em seus relacionamentos, sem fatores que estimulem conflitos, ou seja, sem injustiça ou violência.
Assim, esse novo desenho absorve a discussão anterior e amplia seu alcance, levando a noção de justiça, paz e equidade a todos os domínios da ação humana.
Mockus está conseguindo passar o recado para a sua sociedade com muita competência e tranquilidade.
Uma boa oportunidade para o Partido Verde brasileiro estudar (e seus dirigentes já estão indo a Colômbia ver o que está acontecendo) e passar a explicar melhor suas propostas ao eleitorado brasileiro, saindo das meras palavras de ordem, repetidas por todos os demais partidos.
Marina é uma candidata de peso, tem conteúdo e experiência administrativa como Ministra do Meio Ambiente e pode crescer muito. Quem sabe conseguimos nos libertar desse tal plebiscito entre direita e esquerda, que Lula quer impor ao país, e fazemos também a nossa mágica.

Abraço a todos

Ricardo Stumpf

segunda-feira, 26 de abril de 2010



Prezados amigos leitores.

Peço licença para transcrever aqui, hoje, artigo publicado no site "Vermelho", sobre esta mulher admirável que é Piedad Córdoba.

Piedad Córdoba e a luta pela paz na Colômbia

As imagens de Piedad Córdoba que o mundo conhece mostram a senadora colombiana, de 55 anos, embarcando em helicópteros brasileiros e partindo rumo a lugares perdidos na selva colombiana, enquanto jornalistas de meio mundo ficam olhando para o céu. Ela volta algumas horas depois, em companhia de reféns libertados.
No entanto, quando as luzes das câmeras se apagam, o país que deveria lhe agradecer pelo trabalho e pelos esforços não apenas deixa de fazê-lo como também, em várias ocasiões, retribui o favor com insultos e desqualificações.
Iván Cepeda Castro é o porta-voz do Movice (Movimento das Vítimas de Crimes de Estado) e foi eleito recentemente para o Congresso. Conhece Piedad desde a época em que ela e seu pai mantinham uma íntima relação pessoal e de trabalho.
"Esta relação com meu pai", conta Iván, "foi muito significativa para ela e, de algum modo, transformou sua visão da realidade do país. Por muito tempo eles compartilharam projetos de defesa dos direitos humanos no parlamento e, quando mataram meu pai, foi um golpe muito duro para ela, não só em termos políticos, mas também pessoais. A busca de justiça pela morte de meu pai nos aproximou muito. Minha amizade com Piedad nasce como uma herança de meu pai, que ao longo dos anos fortificamos e estreitamos."
Os ataques a Piedad, segundo Iván, se explicam pelo fato de a senadora ter desafiado a crença de que somente pela via militar, com a guerra, é possível pôr fim ao conflito colombiano.
"A busca de negociações e acordos é uma postura que se defende com relativa facilidade em um momento de consenso social sobre a paz, mas é muito difícil de defender em momentos nos quais a sociedade dá preferência a uma ideologia de segurança quase dogmática, que acredita apenas na guerra e na opção militar", conta.
E completa: "Creio que parte da virtude e da novidade política da posição de Piedad Córdoba reside no fato de ela ter desafiado essa política de segurança democrática, criando a possibilidade de uma prática humanitária em condições muito adversas, uma prática que levou à libertação, até agora, de 14 pessoas."
A definição de Piedad Córdoba como uma mulher que conseguiu desafiar e vencer as adversidades é compartilhada por Olga Amparo Sanchez, diretora da Casa da Mulher de Bogotá e amiga da senadora desde os tempos de universidade.
"É uma mulher que encarna o grande esforço necessário na Colômbia para romper múltiplas formas de discriminação, tanto por sua condição de mulher e de afrodescendente quanto pelo perfil de opositora com convicções políticas alternativas. Por isso acredito que Piedad é uma mulher que venceu e vence a cada dia a discriminação e o preconceito. Este valor e sua inesgotável capacidade criativa de gerar iniciativas políticas que resultem em espaços novos, de encontrar saída para os problemas da Colômbia, são as características que mais me motivam a respeitá-la e admirá-la".
O jornalista Hollman Morris, que acompanhou durante anos o trabalho da senadora na área social, declarou ao Opera Mundi: "Piedad Córdoba é uma pessoa capaz de gerar dinâmicas com suas ações políticas, o que permite que suas posições e iniciativas ocupem o centro do debate político. Isso vale não só para sua dedicação à busca da paz na Colômbia, mas também no âmbito dos direitos humanos. Piedad é uma das poucas figuras políticas da Colômbia que promoveram grandes processos legislativos e debates políticos favoráveis aos setores mais excluídos. Isso apesar de pertencer ao Partido Liberal, que faz parte do establishment político do país."
Piedad é também uma vítima da violência estatal e paramilitar na Colômbia - e sofreu esta violência de várias formas. Em 1999, a senadora foi sequestrada pelo chefe paramilitar Carlos Castaño, que só a libertou graças a uma forte pressão internacional. Ela decidiu viver um período no Canadá que definiu como exílio. Assim que voltou à Colômbia, foi alvo de dois atentados, o que a obrigou a separar-se da família, que por isso ainda vive naquele país.
"Acredito que a partida para o Canadá foi o momento mais difícil", diz Olga. "Ela teve de deixar tudo para trás e, sem ajuda do Estado e de seu partido, cuidar dos filhos em uma situação muito difícil, abandonando suas causas e lutas. Até hoje Piedad vive uma vida de grandes sacrifícios, quase sempre confinada em casa. Não é fácil para ela, que tanto ama a música, a dança, e é uma excelente dançarina de salsa. Mas isso, ou simplesmente ir a um restaurante ou supermercado, são atividades que hoje ela não pode se dar o luxo de praticar. Ela teve de eliminá-las de sua vida por segurança, por causa da perseguição da imprensa e da pressão do governo. Aprendeu a lidar com a situação com sua própria força, renunciando até mesmo a uma escolta do Estado. É uma mulher forte, mas também muito sensível, capaz de superar essas situações - que não deixam de lhe causar muita dor. Para mim, o que lhe dá força para continuar é ter um objetivo muito claro, que hoje é o de libertar os reféns".
Iván explica desta forma a rejeição de alguns setores da opinião pública: "Trata-se de uma série de campanhas midiáticas artificiais de deslegitimação e difamação, que em alguns contextos levaram a golpes muito baixos contra ela, por sua condição racial e de mulher, como no famoso voo Bogotá-Caracas no qual alguns passageiros insultaram e quase a agrediram fisicamente. Mas não é verdade que Piedad seja uma mulher repudiada pela sociedade colombiana. O que ocorre é que alguns meios de comunicação e alguns ideólogos do governo de Uribe exageram esses ataques na tentativa de transformá-los em crença social. Assim como há esse tipo de reação, há manifestações de ampla simpatia e respaldo".
Citando um episódio específico para exemplificar, ele continua: "Lembro-me perfeitamente do momento em que acompanhamos a libertação do ex-deputado Sigfrido Lopez, do departamento de Valle. Quando chegamos à praça central de Cáli, havia uma manifestação com milhares de pessoas. Não conseguíamos chegar à tribuna por causa da quantidade de demonstrações de respeito, admiração e carinho por Piedad. Ela é uma mulher admirada e respeitada por muitos setores da sociedade. A população e seus votos comprovam isso."

Abraço a todos

Ricardo Stumpf

domingo, 25 de abril de 2010

Histórias de outras vidas (8)

                                                        
                                A HORA DA PIADA

Era uma repartição pública em Brasília. Corria o ano de 2004. A sala pequena enjaulava 25 funcionários que não tinham muito o que fazer.
Na verdade eram duas seções dentro de uma sala, dividida ao meio por um corredor. Um chefe de cada lado, distribuindo tarefas e tratando de conter seus subordinados quando não havia muito serviço, o que era bem freqüente.
No final do corredor, a sala da diretora, uma mulher alta, dos seus 60 anos, tratava todos como se fossem crianças e esperava de todos uma fidelidade canina, pessoal mesmo, a ela, a grande benfeitora.
Os que haviam entrado no último concurso, gente pós-graduada, se espantava com aquele tipo de relação primitiva, difícil mesmo de ser contestada, de tão desrespeitosa: uma piração.
Os dias transcorriam sufocantes até que numa sexta-feira, os chefes haviam saído mais cedo e alguém contou uma piada. Todos riram e pareceu que pela primeira vez o ambiente se descontraiu. Alguém lembrou que já era tarde e podiam pedir uma pizza, e assim uma espécie de happening se instalou, com as pessoas se aproximando e conversando, pela primeira vez, subvertendo a ordem rígida da burocracia e da loucura inflada do ego da diretora, com seu implacável autoritarismo maternal que dominava havia muitos anos, parte daquela infeliz comunidade. Os antigos também gostaram da novidade, mas à toda hora iam até a porta, dar uma espiada para ver se ela não vinha no corredor.
Outras sextas-feiras se sucederam e aquela virou uma espécie de hora do relaxamento das tensões da semana. Até os chefes começaram a participar e um dia alguém sugeriu que todos contribuíssem para que toda semana fossem comprados salgados e refrigerantes, oficializando assim naquele horário um momento de congraçamento.
Um dos chefes, porém, zeloso de sua fidelidade à grande mãe, tratou de prestar-lhe conta do que estava acontecendo à revelia do seu controle e liderança.
Ao ouvir o relato do seu informante, a velha mãe-patroa calou-se, pensativa, mas logo recobrou seu insuperável senso prático e decidiu:
_Não há nada de errado no que eles estão fazendo. Acho que isso pode ser bom para o trabalho. Vamos aderir ao movimento deles e eu também vou colaborar com a pizza. Você fica encarregado de encomendar a cada funcionário uma piada, que deve ser escrita e depois de lida, cada qual na sua hora, deverá ser entregue a mim, para ser arquivada.
O chefe falou, mas ninguém acreditou muito, tão acostumados já estavam ao seu momento. Na sexta-feira, porém, lá estava ela, na hora certa.
A pizza chegou, aquele dia enriquecida com mais salgados e refrigerantes. Ela bateu palmas e fazendo todos se calarem, ordenou feliz:
Hora da piada!

sábado, 24 de abril de 2010

50 anos de Brasília

     Prezados amigos

     Depois de passar pelo Rio , vim a Brasília para os 50 anos da Capital.
     Eu que cheguei aqui em 1960, poucos meses após a inauguração, posso dizer que vi essa cidade crescer, sair de um projeto para a realidade de metrópole de hoje.
     Os jornais do Rio e São Paulo até hoje fazem muxoxo, não querendo reconhecer sua importância, mas Brasília não precisa mais da aprovação do sudeste, alçou voo próprio, tornou-se ponta de lança da civilização brasileira, decidida a ocupar seu território até então abandonado aos que se aventuravam pelo êrmo desses sertões.
     Acontecimento importante no mundo, nos anos 50, o cinquentenário também é importante, porque foi Brasília que desencadeou o processo de afirmação nacional que trasnformou o Brasil no que é hoje.
     Nós que a vimos crescer, mesmo os que se afastaram como eu, mas que tem ainda raízes por aqui e a visitam com frequência, sabemos dos seus males e das suas qualidades. E seus defeitos não são aqueles que a grande imprensa gosta de mostrar, chamando a cidade de corrupta, de Ilha da Fantasia (em referência à uma antiga série de TV), nem de desperdício, em função da sua grandiosidade.
     Brasília tinha que ser grande para representar a grandeza do Brasil e será maior ainda, na medida em que seu amadurecimento vá aproximando os mundos diferentes que aqui se reuniram, dos povos mais adiantados da nação às criaturas saídas do isolamento dos êrmos, numa mescla difícil e demorada.
     A crise que a cidade vive atualmente é o melhor exemplo disso, pois está passando a limpo toda uma geração de políticos nascida sob a ditadura e que se amesquinhou à sombra do poder federal.
     A prisão do ex-governador e sua posterior cassação, puseram em funcionamento os mecanismos constitucionais que podem repor as coisas no seu devido lugar.
     Tenho fé que os próximos 50 anos se iniciarão sem o lixo político que havia tomado conta da cidade e novas portas se abrirão para sua população.

     Que Deus abençoe Brasília e o Brasil.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf

quarta-feira, 21 de abril de 2010



Histórias de outras vidas (7)

FRANK

     Corria o ano de 1994, eu havia voltado de Manaus para Brasília e conseguido entrar na Universidade de Brasília como professor temporário, para dar aulas na Faculdade de Arquitetura.
     Como até 1990 eu tinha participado ativamente da militância política que me levou ao PT e depois ao velho PCB, e já tinha sido muito perseguido por isto, eu tinha por hábito esconder minhas idéias, até que soubesse com quem estava lidando.
     A direita brasileira identifica logo a gente. Já fazia quase dez anos que a ditadura tinha acabado, mas a esquerda ainda era muito marcada, pois na transição eles haviam mantido o controle da Constituinte e estavam levando o Brasil para o neoliberalismo, uma ditadura econômica dentro da democracia formal, onde qualquer tentativa de governar para os interesses da maioria era rotulada de populismo.
     Percebi logo que o ambiente era dominado pela direita. Imagine que dentro da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Brasília era proibido elogiar Oscar Niemeyer, o gênio criador das mais importantes obras da cidade. Claro que o motivo era sua militância no Partido Comunista, o meu partido.
     Preocupado em manter meu emprego, procurava me manter afastado de polêmicas. Mas eu tinha um amigo lá dentro, Cláudio, que também era simpatizante do Partido. Ele trabalhara com Niemeyer na Argélia e não se intimidava com a campanha raivosa de direitistas remanescentes da ditadura e defendia abertamente a obra e as idéias de Oscar Niemeyer.
     Claro que ele comentou com alguns colegas sobre minha militância, porque logo fui identificado e colocado no rol dos inimigos daquela gentinha miúda, que havia entrado ali no tempo de Azevedo, o reitor militar que dominou a universidade durante muitos anos, com a missão explícita de impedi-la de produzir idéias.
     Começaram logo a implicar comigo, ao ponto de um colega de disciplina chegar a dividir a turma (a metade dele e a minha metade), numa tentativa explícita de me desprestigiar ante os alunos. Percebi a dificuldade que teria em me manter ali, mas fui contornando como pude.
     Um dia recebi um recado que o diretor da Faculdade queria falar comigo. Era um velho professor de nome Frank. Andava meio curvado e tinha uma fala arrastada, lenta. Pensei comigo: pronto, chegou a hora de ir embora.
     Na hora marcada fui ao encontro dele, no seu grande gabinete do andar térreo da faculdade, que fazia parte, do imenso edifício onde se localizavam inúmeras outras faculdades. O prédio projetado por Niemeyer, é um grande arco de 750 metros de extensão e três andares, mais um subsolo, com o pomposo nome de Instituto Central de Ciências, mas carinhosamente chamado pela comunidade acadêmica de minhocão.
     Entrei na sala e fiquei frente a frente com o Professor Frank. Ele me mandou sentar a frente de sua grande mesa e me olhou com ar cansado. Pediu a sua secretária que saísse e fechasse a porta, porque iria ter uma conversa particular. Esperei pelo pior.
     Ele me disse então que havia sabido que eu pertencia ao Partido Comunista e perguntou se era verdade. Pensei então que era hora de levantar as bandeiras e ir à luta. Já havia sido identificado mesmo e o melhor era cair de pé. Confirmei e contei um pouco da minha participação política, justificando minhas atitudes com denúncias sobre as injustiças sociais e todo o meu inconformismo com a submissão do Brasil aos interesses geopolíticos dos Estados Unidos. Enfim, assumi o discurso comunista e me declarei militante, para o que desse e viesse.
     Ele, que me escutara calado, se virou para mim e disse com sua voz cansada.
     _Até que enfim tenho com quem conversar!

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf

terça-feira, 20 de abril de 2010



Histórias de outras vidas (6)

A IRMÃ DO ASTRONAUTA

O ano era 1984, o local; um convento de freiras em Ariquemes, Rondônia.
Como eu fui parar lá? Bom, tudo começou na Vila Maria da Conceição, em Porto Alegre, um ano antes.
     Ao final do meu curso de arquitetura, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, escolhi como tema para o trabalho de diplomação a urbanização de uma favela, próxima à minha pequena casa alugada, conhecida como Vila Maria da Conceição, ou Maria Degolada.
     Era uma favela espremida no meio de prédios e casas, ao longo de uma faixa que subia o morro por um lado e descia pelo outro, começando na avenida Bento Gonçalves, passando pelo bairro Caldre Fião (no alto) e descendo em direção à Terezópolis.
     O apelido Maria Degolada, se devia a um crime, onde uma Maria foi degolada por seu amado, em cima de uma pedra, local que se tornou alvo de devoção e peregrinação em torno de supostos milagres.
     Me ofereci para fazer o trabalho junto ao Centro Comunitário, que funcionava no alto do morro, e onde trabalhavam várias estudantes do serviço social, orientadas por uma assistente social formada. Entre elas uma freira, Lúcia, que tinha um sobrenome italiano.
     Fiz muitas amizades por lá, embora o trabalho não tenha sido concluído devido à interferência de uma outra freira que controlava tudo por lá, em nome de uma ONG de propósitos mais do que duvidosos.
     No ano seguinte, 1984, soube que irmã Lúcia tinha ido para Rondônia, servir em Ariquemes. Era época de muito desemprego e também de grandes migrações de agricultores do sul para Rondônia, expulsos pela cultura da soja e que iam em busca de terras distribuídas pelo governo do então território.
     Pensando em conseguir um emprego e também curioso para conhecer e entender o que estava acontecendo por lá, peguei um ônibus para Campo Grande, outro para Cuiabá e finalmente um para     Ariquemes, pela BR-364, Cuiabá-PortoVelho, então inteiramente de terra. De Cuiabá a Porto Velho eram mais de 2.000 Km de estrada de chão, num ônibus que ia corcoveando. Uma aventura.
     Consegui chegar a Ariquemes e fui muito bem recebido pela irmã Lúcia, que inclusive me hospedou no convento das freiras, o que eu supunha fosse proibido.
     Lá, as várias irmãs se revezavam nos trabalhos, apoiando as famílias que chegavam do sul e recebiam um pedaço de mata virgem para derrubar, sem nenhuma ajuda do governo. Muitos morreram em função de doenças ou árvores que caíam sobre eles. Crianças pequenas morriam de malária logo nos primeiros anos, desacostumadas que estavam àquele meio ambiente.
     Era um projeto americano, patrocinado pelo Banco Mundial com apoio do governo militar, para ocupar a fronteira com a Bolívia de forma a prevenir a ameaça de possíveis guerrilhas, como a tentada por Che Guevara.
     Em termos ambientais e humanitários o projeto foi um grande desastre, embora tenha conseguido povoar Rondônia. A principal conseqüência da ocupação foi transformar Rondônia em porta de entrada para o tráfico de drogas, que a partir dali instalou seus cartéis nas grandes cidades brasileiras, principalmente nas favelas do Rio de Janeiro.
     Saí com irmã Lúcia, algumas vezes para visitar as linhas, estradas que entravam mata adentro, e por onde se tinha acesso aos lotes de mata amazônica, dados aos louros imigrantes do Paraná. Era incrível!
     Dentro do convento, muitas irmãs simpáticas se revezavam para que eu me sentisse à vontade no ambiente delas, e olhe que nem católico eu era. Às vezes elas me pediam que tocasse violão e cantávamos todos juntos, depois do jantar. Lúcia tocava e cantava muito bem.
     Dentre as irmãs, uma pequena e loura, catarinense era uma de suas melhores amigas. Devia ter uns quarenta ou quarenta e cinco anos, na época. Sua pele muito branca era envelhecida precocemente pelo sol, como costuma acontecer com os colonos do sul, descendentes de europeus.
     Não me lembro seu nome, mas numa dessas noites de violão e cantos, ficamos conversando os três, eu, Lúcia e a pequena catarinense. No meio da conversa uma revelação surpreendente. Lúcia me perguntou se eu sabia guardar um segredo, coisa que fiz até hoje, mas não vejo mais sentido em manter.
     Feita a promessa, Lúcia me perguntou se eu não achava a pequena freira catarinense parecida com alguém. Depois de contemplá-la com atenção, não consegui me lembrar de ninguém. Então, Lúcia me disse que ela era irmã de Neil Armstrong, o primeiro homem a pisar na lua, em julho de 1969.
     Me lembrei das especulações surgidas na época, de que Armstrong teria nascido no Brasil, no interior de Santa Catarina. A revista Veja inclusive visitou o local e fez uma reportagem, mas logo tudo foi desmentido e dado como um equívoco.
     Mas realmente a pequena freira era a cara de Armstrong. Então ela calmamente me contou que Armstrong era seu irmão, tinha nascido em Santa Catarina e depois, por motivos que não me lembro, tinha sido levado ainda pequeno para os Estados Unidos, creio que pelo pai, mas que isso não podia ser revelado e que sua família tinha recebido muitas instruções sobre isso, porque o primeiro homem a pisar na lua tinha que ser nascido nos Estados Unidos.
     Logo retornei a Brasília e nunca mais soube daquelas freiras.
     Hoje vejo por aí muitas histórias de que o homem nunca esteve na lua e tudo teria sido uma grande farsa, como, aliás, todas as pessoas simples e humildes diziam na época. Como saber? Mas pelo menos uma parte da história era mesmo mentira e aquele americano que dizem ter sido o primeiro ser humano a colocar os pés em outro astro, na verdade, nasceu no Brasil.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf

sexta-feira, 16 de abril de 2010




            Histórias de outras vidas (5)

                  UM SONHO RUIM

     Corria o ano de 2003 e eu estava no Ministério da Integração Nacional, no programa Faixa de Fronteira, por onde às vezes viajava fiscalizando obras em municípios de fronteira.
     Eu havia sofrido um seqüestro em 2001 e, devido ao trauma, passei alguns anos sonhando com isso, mas estranhamente nunca sonhei com o meu próprio seqüestro.Sonhava com situações muito difíceis, pessoas presas, maltratadas, muita maldade, pessoas ruins fazendo coisas más, muito sofrimento e dor.
     Uma noite sonhei com uma rua de terra que ia direto para uma cerca, por trás da qual haviam muitos eucaliptos. Ao chegar à cerca a rua virava em ângulo reto para a esquerda e continuava, sempre de terra, até desembocar em uma outra bem mais longe. No meio da cerca, há uns 100 metros da curva em ângulo, um portão dava para a propriedade, onde havia uma casa e algumas outras construções.
     Como costumava acontecer nos sonhos, eu entrei por cima, como se estivesse flutuando, mas bastante próximo do chão para ver e ouvir tudo o que acontecia e podia sentir as coisas, mesmo antes de vê-las. Sentia se havia felicidade no local, dor, medo, ódio e todos os sentimentos que circulavam no ambiente.
     Ao entrar flutuando sobre a cerca pude sentir o ódio, o medo e o sofrimento que havia ali. Um sentimento de terror, de pessoas indefesas à mercê de outras capazes de lhes fazer muito mal, indiferentes à dor que poderiam causar. O mesmo sentimento de impotência e de irracionalidade que senti no meu seqüestro ao me ver reduzido à condição de um animal, sem direito nem a minha própria vida, sujeito aos desmandos de pessoas que nem sequer me conheciam e para as quais eu era apenas uma fonte de renda, que eles podiam matar, torturar, descartar, sem nenhum sentimento de solidariedade humana.
     Vi pessoas amarradas durante a noite e senti todo o clima. Acordei muito impressionado e, mais uma vez, atribuí o sonho ao seqüestro que havia sofrido e à tentativa constante de procurar empurrar para dentro do meu inconsciente todo o medo que me perseguia há dois anos.
     Poucas semanas depois fui designado para fazer uma viagem de inspeção no Rio Grande do Sul, fronteira com a Argentina. Fiz minha programação, organizando todos os orçamentos, cujas obras já executadas eu tinha que conferir. No total eram mais de 20 municípios e mais de trinta pequenas obras.         Calçamentos de ruas, estradas vicinais, pequenas pontes, calçadas e coisas do gênero.
     Seguindo instruções da nossa Secretaria, como sempre, montei o roteiro de viagem com as passagens aéreas, reservas nos hotéis, aluguel de um veículo e os dias em que passaria por cada cidade, já avisadas da minha chegada através de contato com as respectivas prefeituras. Quando tínhamos que visitar muitas cidades próximas escolhíamos um ponto de apoio, que ficasse mais ou menos eqüidistante de todas as outras, e ficávamos ali alguns dias, indo e vindo com o carro alugado.
     No dia certo viajei com aquele monte de processos, pernoitei em Porto Alegre, onde revi muitos amigos e no dia seguinte, bem cedo, segui para São Borja, num Fiat Pálio alugado. Dois dias em São Borja e arredores, medindo eletrificação rural e outras coisas, mais uns três na região das Missões e fui subindo para o norte, rumo à divisa de Santa Catarina, que também faz fronteira com aquela linguinha da Argentina, que se infiltra ente o Brasil e o Paraguai.
     A desvantagem daquele trabalho estava em viajar sozinho, fazendo medições, que muitas vezes constatavam irregularidades e desvios de verbas, alguns deles muito grandes. Por isso quando medíamos, sempre acompanhados por alguém das prefeituras, dizíamos que só poderíamos calcular com exatidão se estava tudo certo ao retornar para Brasília. Essa era a orientação para todos os fiscais do programa.
     Algumas vezes eu sentia um clima de ameaça no ar e sabia que estava completamente à mercê dos corruptos, sem apoio policial nenhum, por isso eu não gostava de me demorar muito em um local nem revelar para onde iria, no dia seguinte.
     Nessa viagem, ao prosseguir para o norte, a estrada, que já era um pouco erma, de repente ficou sem asfalto. Entrei numa estrada de terra, no final da tarde, em busca de uma cidade de fronteira desconhecida. Senti uma sensação ruim, mas consegui encontrar a cidade, que era bem razoável e me hospedar em um hotel decente.
     Era um fim de semana e eu não deveria trabalhar, segundo as normas do Ministério. Mas quem agüenta ficar parado num hotel, numa cidade estranha, sábado e domingo sem fazer nada, depois de uma semana fora de casa?
     Na sexta-feira liquidei o que tinha de fazer ali e consegui falar com os secretários de obras de duas outras cidades próximas. No sábado já estava a caminho e a última delas era bem distante de tudo. Tive que atravessar um rio em uma balsa e sair novamente do asfalto, andando uns 60 quilômetros por uma estrada de terra para chegar ao local.
     Eu nem imaginava que havia lugares assim no Rio Grande do Sul. Sempre achamos que no sul tudo é perfeito, mas aquela região noroeste do Rio Grande era bem atrasada.
No caminho fui me sentindo vada vez mais inquieto.
     A cidade era bem pequena e logo achei uma praça com um orelhão de onde liguei para o número do secretário. Ele me atendeu e disse que me encontraria no parque de máquinas da Prefeitura, que era a obra que eu devia inspecionar. Segui ao local indicado e logo me deparei com o alambrado, ao longo da via, com o grande prédio ao fundo.
     A inspeção foi rápida. Tudo estava certo e as pessoas que me atenderam foram gentis e eficientes em me mostrar tudo. Eu estava com pressa, pois tinha que voltar até a balsa, pegar novamente o asfalto e ir para a última parada, onde ainda ficaria uns dois dias fiscalizando várias cidades ao redor do ponto de apoio escolhido.
     Ao sair, o secretário me avisou para usar o portão lateral, que dava acesso à saída da cidade. Apressado, rumei para o portão e parei, num gesto automático, para ver se vinha algum carro. Olhei para a esquerda e vi que a estrada voltava para o caminho de onde eu tinha vindo. A saída mais curta devia ser pela direita. Olhei para direita e então vi,... a rua que seguia direto para a cerca com os eucaliptos, a rua do meu sonho.
     A visão me deu um choque, um estranho choque em que realidade e sonho se misturam. Foi como acordar sonambulando. Todo o clima do sonho retornou intensamente. Pude sentir novamente o medo e o sofrimento presentes naquele lugar e tudo se misturou com as sensações que eu vinha tendo naquela viagem, tanto na primeira estrada de terra quanto na segunda. Era como se eu estivesse andando por lugares perigosos, cujas ameaças eu desconhecia, mas pressentia.
     Olhei novamente para a rua e tive certeza. Quis seguir pela estrada em direção a cerca, só pela curiosidade de conferir, mas meu instinto de sobrevivência falou mais alto. Virei o carro para a esquerda e me afastei rapidamente daquele lugar.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf

quinta-feira, 15 de abril de 2010




Cultura gay?

     O Pessoal do movimento LGBT de vitória da Conquista, me pede que escreva alguma coisa sobre o tema "cultura gay", que está sendo discutido no seminário que está acontecendo naquela cidade.
     Pelo que entendi, há uma grupo querendo afirmar o que eles consideram cultura gay, que seria relacionada à arte dos transformistas, ou seja, aqueles gays que se vestem de mulher para se apresentarem em shows e boates.
     Achei estranho e fiquei pensando sobre o assunto. Tem um pessoal no movimento gay que tem mania de gueto. Querem se fechar em pequenos grupos e criar um mundinho particular, só deles, e agora querem que esse pequeno universo seja reconhecido como cultura.
     Tudo bem, que alguns grupos queiram se diferenciar na sociedade, até para serem reconhecidos.
     Os judeus se fecham na sua cultura, os ciganos também, os gaúchos inventaram o CTG (Centro de Tradições Gaúchas), que pretendem que seja a cultura gaúcha, mas na prática essas manifestações acabam sendo apenas subculturas, que participam de algo maior, que é a cultura dos povos. Dizer que a cultura judaica se resume as comemorações do Bar Mitzvah, é desconhecer a colaboração que eles deram à nossa sociedade, principalmente através dos três pilares do pensamento moderno, Marx, Freud e Einstein.
     Dizer que a cultura gaúcha se resume ao CTG é desconhecer toda uma contribuição, começando por Anita Garibaldi, a Revolução Farroupilha, que levantou a bandeira da República no Brasil, Oswaldo Aranha, Érico Veríssimo e tantos outros gaúchos que ajudaram a construir a cultura brasileira.
     Assim também dizer que a contribuição dos gays à cultura é o transformismo é desconhecer que os gays estão em toda parte, especialmente na área da cultura e da arte, até pela sua sensibilidade aguçada, que os leva a serem atores e atrizes, pintores, cantoras, poetas, escritores, arquitetos e engenheiros.
     Pois é, os engenheiros, tão machões, deveriam reconhecer num engenheiro o patrono dos gays, o nosso fantástico Santos Dumont, inventor entre outras coisas do avião e do relógio de pulso. Ele, como tantos outros, deu uma imensa contribuição à cultura brasileira e mundial ao desenvolver uma tecnologia que revolucionou a vida moderna.
     Infelizmente se suicidou, por razões desconhecidas e que a nossa historiografia teima em disfarçar, como tendo sido desgosto por ver os aviões serem usados como arma de guerra. Mas terá sido esta a razão verdadeira?
     O romance "O Ateneu", um dos primeiros romances brasileiros a tratar do tema, (outro romance pioneiro é O Bom Crioulo de Adolfo Caminha) teve em seu autor, Raul Pompéia, um destemido e sofrido comentarista da vida nos internatos e das práticas homossexuais entre os estudantes. Infelizmente Raul Pompéia também se suicidou.
     Porque tantos gays suicidas naquela época?
     Com certeza pelas pressões exercidas por uma sociedade hipócrita, ultraconservadora, marcada pela escravidão e pelo patriarcalismo.
     Dizer que a cultura gay se resume a um punhado de homens travestidos me parece querer reduzir a contribuição cultural de 10% da humanidade, o que signica algo em torno de 600 milhões de indivíduos, à um pequeno grupo de pessoas. Os gays com certeza são muito mais do que isso.
     A Inglaterra reconheceu no ano de 2009, que um cientista gay, o matemático Alan Turing, havia descoberto o código da máquina de criptografia enigma usada pelos nazistas nas suas comunicações secretas e, por isso, tinha sido uma peça chave para a vitória dos aliados. Ele também se suicidou após haver sido submetido a um tratamento forçado com hormônios.
     Esta vítima da homofobia oficial dos britânicos, porém, teve sua dignidade resgatada pelo governo do primeiro-ministro Gordon Brown, que admitiu o erro do Estado e deu-lhe a status de herói nacional.
     Pois é, queridos amigos, quantos heróis gays haverão neste mundo, quantos contribuiram e contribuem tanto em todas as áreas do conhecimento. Os gays não precisam se refugiar num gueto cultural, pois sempre estiveram na linha de frente da cultura mundial.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf

quarta-feira, 14 de abril de 2010

Histórias de outras vidas (4)

Nunca acorde um sonâmbulo

     Sim, eu era sonâmbulo, na minha juventude. Sempre falei dormindo, assim como meus filhos, todos eles falam.
     Meu irmão, quando éramos pequenos e dormíamos no mesmo quarto, reclamava muito de que eu sentava na cama durante a noite e ficava conversando coisas incompreensíveis.
     Aos 18 anos fui acampar nos arredores de Brasília, num lugar que à época era ermo, mato mesmo. No local havia um tal de Volks Clube. Creio que devia ser uma espécie de clube de proprietários de fuscas, o modelo mais popular da Volkswagen na época. Mas não havia nada lá, a não ser um barracão onde morava um vigia.
     Alguém conhecia o local e, no início de 1969 (creio que era um mês de janeiro), lá fomos nós acampar. Naquela época não haviam barracas de camping para vender, e usamos um lona de caminhão. Os colegas que foram comigo eram, Romário, Valdez, Reinaldo, Aroldo, Pinduca e Murilo.
     O vigia nos meteu medo, dizendo que havia lobos no local e que não podíamos facilitar. Ele só andava armado com uma espingarda, até mesmo para ir poucos metros fora do seu barracão. Nos disse que tomássemos cuidado para ir tomar banho em uma bica que havia lá. Não ligamos muito e resolvemos ficar.
     Escolhemos um local próximo à bica e para garantir nossa segurança armamos um fogueira na entrada da barraca e para fechá-la, fizemos barreiras com tábuas e toalhas, de forma que não ficássemos expostos. Só deixamos aberta metade de um dos lados, para que pudéssemos entrar e sair.
     Como a barraca não era muito grande, dormíamos com a cabeça encostando numa das laterais e os pés na outra. Não sobrava nenhum espaço. Claro que ninguém queria dormir na beirada que ia ficar aberta, pois os pés ficariam expostos.
     Brincamos que o primeiro pé comido pelo lobo seria de quem ficasse ali. Para escolher o felizardo, fizemos um sorteio e caiu justamente para mim dormir no lugar perigoso. Armada a fogueira, bem na porta, nos recolhemos e assim se passou a primeira noite, sem nenhum incidente.
     Na segunda noite exigi ficar no meio. Já tinha dado minha cota de sacrifício e agora mereceria a maior segurança possível e assim foi feito. Havia três colegas de cada lado e nenhum espaço para circular.
     Todos adormeceram e só me lembro de um sonho estranho, em que eu caminhava no mato com alguma coisa na mão direita. Lembro que tive medo porque estava muito escuro e eu estava sozinho. Comecei a sentir frio e a chamar por Aroldo. Então aconteceu uma coisa incrível. O frio começou a se tornar real demais e eu, de repente, percebi que estava realmente caminhando do lado de fora da barraca, chamando por Aroldo.
     Ainda zonzo, olhei para minha mão direita e nela estava uma pequena toalha pegando fogo. Larguei a toalha e fui tomado por uma sensação muito estranha, muito ruim, onde sonho e realidade se misturavam e eu não sabia em qual delas eu estava.
     Tive imediatamente a consciência de que a gente sempre sabe que está sonhando, daí a surpresa quando o sonho vira realidade. Uma surpresa muito difícil. É como não poder mais confiar nos próprios sentidos para reconhecer o que existe e o que é imaginação. A loucura deve ser algo assim.
     Por sorte Aroldo havia escutado o meu chamado e acordou, vindo ao meu encontro. Ele que estava na extremidade fechada da barraca, derrubou a frágil parede de toalhas e tábuas para ver o que estava acontecendo. Eu ainda estava muito confuso quando ele viu que, não só a toalha que eu havia segurado estava em chamas, mas a própria barraca. Rapidamente acordou a todos e os retirou de dentro da cobertura de lona, que em poucos minutos foi consumida pelo fogo.
     Pinduca, que estava enrolado em um cobertor, junto à entrada da fogueira, certamente teria sofrido queimaduras graves, se não tivesse sido retirado na hora certa. Muitas mochilas foram perdidas com tudo dentro. Logo em seguido o dia amanheceu e ficamos olhando para aquela mancha escura no chão, onde antes estivera o nosso acampamento.
     Ninguém entendeu o que acontecera. Uns levantaram a hipótese de que eu teria posto fogo no acampamento durante o meu sonambulismo, outros que eu teria salvo o acampamento do incêndio, que teria se alastrado a partir da fogueira. Ninguém conseguiu entender, porém, como eu havia conseguido sair da barraca, passando por cima de três colegas, sem despertar ninguém, e ainda por cima, dormindo.
     Fomos embora naquele dia sem entender o que acontecera e até hoje não achei a explicação. Só me lembro do frio do sonho se tornando real na minha pele e daquele terrível despertar.
     Às vezes sonho com o episódio e julgo ver, naquela noite, no escuro do mato, alguém com botas brancas e uma espécie de uniforme também branco. Mas não tenho como saber se isso é apenas parte de um sonho ou de uma estranha realidade.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf

sábado, 10 de abril de 2010

Histórias de outras vidas (3)



OLHOS



     O ano era 1985, a cidade, Itabuna no sul da Bahia.
     Eu tinha vindo de Brasília, a convite daquela prefeitura, para fazer uma urbanização de favela. O convite partiu de um ex-integrante do governo de Lajes, em Santa Catarina, onde eu havia estagiado e feito uns projetos de habitação popular, inclusive urbanização de favelas.
     A equipe era responsável pelo trabalho comunitário nos bairros pobres de Itabuna. Trabalhávamos de terça a domingo, descansando na segunda-feira, devido às reuniões na periferia da cidade, que ocorriam aos sábados e domingos, inclusive à noite.
     O principal trabalho da Secretaria de Desenvolvimento Social, era a transferência da Favela do Bode, para o morro onde já havia uma outra favela, conhecida como Pau do Urubu.
     A esposa do chefe era assistente social, responsável pela resolução dos mais diversos problemas que surgiam naquele tipo de trabalho, problemas de doença, de brigas de família, de casamento, pais e filhos.
     Meu trabalho era planejar o bairro e fiscalizar as obras de urbanização, enquanto ao mesmo tempo, controlava a transferência dos moradores do Bode, de modo a impedir que novos barracos fossem erguidos na área que ia se abrindo, com a transferência dos barracos.
     Assim, eu transitava entre as duas favelas, a nova, que eu ia reorganizando, destruindo e reconstruindo casas para implantar ruas e terrenos regulares, e a velha, que ia sendo destruída aos poucos, na medida em que as famílias eram transferidas.
     Os moradores do Bode eram levados em Kombis, aos domingos, para escolherem seus terrenos entre os disponíveis. Seus barracos eram demolidos e eles transferidos com seus pertences para casas de aluguel, pagas pela prefeitura, enquanto novas casas eram erguidas no novo bairro, para o qual escolheram o nome de Novo Horizonte
     Muitas vezes na mudança para as novas casas, os trabalhadores da prefeitura eram instruídos secretamente por nós, da equipe, para jogarem de cima do caminhão objetos muito velhos e cheios de baratas, de forma que eles se partissem, dando a desculpa que precisávamos para acionar as assistentes sociais e comprar móveis novos para os moradores, principalmente camas e guarda-roupas.
     Às vezes eu ia ao Bode acompanhar o trabalho de remoção das famílias e dos barracos, cuja madeira era separada, naquilo que podia ser reaproveitado para a construção das novas casas, também de madeira, e o que não prestava, que era queimado ali mesmo. Tábuas com as pontas podres eram serradas ao meio.
     Numa dessas visitas, anoiteceu e ainda estávamos às voltas com famílias que seriam removidas e alguém veio me chamar. Havia uma emergência. Fomos ver do que se tratava e nos deparamos com uma mãe, em um barraco de um único cômodo, às voltas com uma criança doente. Perguntei o que a criança tinha, a mulher me olhou, com vergonha e não respondeu.
     Alguém, no pequeno grupo que se formou na porta, respondeu por ela.
     _A criança está morrendo de fome!
     Espantado, pedi para ver a criança, que estava em um berço, iluminado por um fifó. Quando me aproximei, meu espanto aumentou. A criança, que devia ter um ano e meio mais ou menos, tinha uma cabeça desproporcional, mas não era nenhuma doença. Apenas a cabeça tinha o tamanho normal para a idade, enquanto o corpo, esquelético, mostrava todos os ossos, revelando desnutrição e subdesenvolvimento.
     Mas o mais impressionante eram os olhos. Olhos de adulto, olhos que conheciam a dor da fome e do desespero, olhos que clamavam, faiscavam, me fitaram fixamente e me pediram ajuda urgente.
     Muito perturbado me afastei e perguntei à equipe o que fazer. Me disseram para chamar a esposa do chefe, que estava na favela. Mandei chamá-la e ela veio logo. Entrou, examinou a criança e com ares de quem estava acostumada a ver de tudo, me disse que ia providenciar a ajuda.
     Poucos dias depois perguntei pela criança e me disseram que havia morrido. Incrédulo fui falar com a assistente social e ela me disse calmamente que o pedido para a compra do leite não havia sido assinado à tempo pela secretária.
     Odiei aquela mulher e me odiei mais ainda por não ter simplesmente enfiado a mão no bolso e dado algum dinheiro àquela pobre mãe para comprar o leite. Meu respeito pela hierarquia havia deixado aqueles olhos desesperados sem uma resposta. A burocracia da Prefeitura havia condenado aquela mãe a ver seu filho morrer de fome.
     Ainda hoje vejo aqueles olhos e seu terrível apelo silencioso e, nos meus momentos mais difíceis, choro por eles e pela minha fraqueza de não ter sabido ajudá-los.

     Abraço a todos

     Ricardo Stumpf

sexta-feira, 9 de abril de 2010



REFORMA URBANA




Com a tragédia no Morro do Bumba, em Niterói, as TVs se lembraram de fazer a pergunta: porque são toleradas as ocupações irregulares nas encostas e outras áreas de risco?
Na verdade a pergunta deveria ser um pouco diferente: porque são toleradas as invasões e favelas, não apenas em áreas de risco, mas em qualquer área, permitindo que pessoas vivam em condições sub-humanas no meio das nossas grandes cidades?
     Em alguns casos, como o do Rio, mais de 30% dos habitantes da cidade moram nesses aglomerados.
Milton Santos, o grande geógrafo baiano que se dedicou ao estudo das cidades brasileiras, falava em urbanização corporativa, ou seja, uma urbanização determinada pelos interesses das grandes corporações, das grandes empresas.
     Segundo ele, as classes sociais têm influência diferenciada nas decisões tomadas pelos governantes. As classes médias conseguem influenciar porque formam aquilo que se chama opinião pública, não se deixando iludir por políticos populistas ou coronelistas, nem precisando vender seus votos. Reclamam muito e podem se tornar incômodas, por isso seus bairros são bem atendidos em infra-estrutura e serviços.
     Nas metrópoles os mais pobres conseguiram influencia através dos chamados movimentos sociais urbanos, associações e movimentos que reuniam milhares de pessoas em torno de objetivos coletivos. Na década de 1980 surgiu o Movimento de Defesa dos Favelados, que mobilizou milhões em todo o Brasil e conseguiu que o poder público destinasse recursos para melhorar as condições de vida dos favelados.
     Paradoxalmente com a redemocratização esses movimentos refluíram e os mais pobres foram deixados à mercê das barganhas eleitorais, enquanto seus líderes passaram a trabalhar para políticos ou ONGs que, com discursos gerencialistas e localistas, acabaram formando uma enorme indústria de consultorias e se distanciando dos objetivos sociais.
     As classes altas são as que estão ligadas diretamente às corporações empresariais, cujos interesses acabam predominando nas decisões dos administradores. Sua ligação com os políticos, quando é honesta, é de uma relação entre poderes. O poder das empresas contra o poder do Estado. Frequentemente o primeiro é maior e prevalece, mas os financiamentos de campanhas eleitorais, os favorecimentos e o suborno puro e simples são muito comuns.
     A própria lógica empresarial se tornou mais importante na hora de definir os rumos da cidade, na medida em que o mercado passou a determinar os rumos da economia. Assim, o chamado mercado imobiliário passou a dar as cartas, com apoio das mesmas TVs que agora se perguntam, porque as favelas estão nas encostas há tanto tempo.
     O mecanismo especulativo nas cidades é bastante simples. O governo investe o dinheiro público nas áreas que interessam às grandes corporações, valorizando-as para que elas lucrem. Este mecanismo faz com que os preços dos imóveis estejam sempre subindo, excluindo do mercado as classes C, D e E que, para morarem próximos aos seus trabalhos (já que os sistemas de transportes são ruins para estimular o mercado de automóveis) invadem áreas vazias. No caso do Estado do Rio, essas áreas estão nas encostas onde é proibida a construção regular.
     Em qualquer outro setor da economia, o Estado utiliza mecanismos de mercado para controlar os preços. Estoques reguladores de combustíveis, liberação de importação da carne ou do trigo, etc., de forma a impedir o aumento que gera desequilíbrios na economia. Só no mercado imobiliário o aumento de preços é visto como normal, já que a acumulação das incorporadoras é feita em grande parte sobre ele.
     Enquanto não houver uma intervenção federal reguladora existirão favelas e tragédias como a do Morro do Bumba. Essa intervenção é a chamada Reforma Urbana, que colocaria a qualidade de vida dos cidadãos à frente dos interesses da incorporação imobiliária.
     Impedir a valorização dos imóveis deve ser o objetivo dessa reforma.
     Nas maiores cidades do mundo, inclusive na América latina, o Estado controla rigidamente o uso do solo urbano. No Brasil, até agora, predominam  as medidas paliativas, de programas habitacionais que não resolvem as distorções desse mercado.
     Nas últimas eleições municipais, o PV fez algumas propostas nessa área para o Rio de Janeiro, embora ainda um pouco tímidas. A verdade é que essa discussão avançou muito pouco nos últimos anos.
     Vamos ver quem tem coragem de mexer nisso.



Abraço a todos



Ricardo Stumpf

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Histórias de outras vidas (2)



MENINOS NO COLCHÃO




     Era julho de 1994. Estávamos todos reunidos no pátio lateral da minha casa do São Miguel, em Ilhéus, para assistir a final entre Brasil e Itália na Copa do Mundo. Na disputa de pênaltis era vez de Baggio, o atacante italiano, chutar. Se ele errasse o Brasil seria campeão. Falei alto:
     _Se ele errar vou dar um caruru de 1.500 quiabos!
Baggio errou o pênalti e o Brasil foi tetra. Grandes comemorações se seguiram e a promessa do caruru ficou esquecida.
     Pra quem não sabe, o caruru na Bahia tem um significado especial, associado ao culto de Cosme e Damião. É o chamado caruru de promessa: promete-se dar um caruru em determinada época do ano, para quem quiser comer, para os amigos, vizinhos ou qualquer um que estiver passando pela rua. A pessoa que fez a promessa tem que servir pessoalmente cada prato e deve ter uma bacia cheia de balas ou bombons para oferecer às crianças.
     O caruru pode ser de uma vez só, no caso de um benefício menor ou pode ser para o resto da vida, para uma graça muito importante alcançada, como salvar a vida de um ente querido ou coisa assim. Esse tem que ser feito sempre na mesma data, geralmente o dia de Cosme e Damião. O tamanho da festa é medido pelo número de quiabos. 1500 é um caruru médio.
     Existem ainda alguns detalhes interessantes, como a mesa para sete crianças servida antes dos outros, onde também se oferecem bomboms, e a maneira como vai ser servido e comido. Alguns fazem promessa de caruru de mão, que tem de ser comido sem talheres, apenas com as mãos, uma técnica complicada para quem não conhece.
     Meses se passaram depois do jogo e a minha promessa andava esquecida.
     Nessa época, minha filha mais velha, ainda solteira, estava passando uns tempos comigo em Ilhéus e costumava reunir sua turma para animadas partidas de buraco, à noite. A pequena casa era de dois andares, sendo a parte de cima de madeira, assim como o piso que era de tábuas. Meu quarto, nos fundos era pequeno e dava para uma varanda que se abria sobre o rio Almada, próximo da sua foz, na praia de São Miguel.
     As noites de lua eram lindas pois ela se punha justamente sobre o rio, que ficava prateado, revelando silhuetas de pescadores noturnos solitários, nas suas canoas. De vez em quando, no meio do silêncio, ouvia-se o barulho de uma rede sendo jogada e via-se uma brasa de cigarro se avivar.
     Minha cama era um colchão no chão de tábuas enceradas e eu dormia com a janela aberta, sentindo a fresca da noite e ouvindo o ruído das águas.
     Numa dessas noites, em que a turma se reuniu para jogar baralho, tive um sono agitado e acordei com o barulho que eles faziam. Surpreso, vi que um menino louro dormia aos meus pés. Era uma criança de um ano ou dois no máximo. Pensei que aquele pessoal já estava abusando, pois além de ficarem até tarde, ainda traziam crianças e se achavam no direito de colocá-las na minha cama, enquanto se divertiam.
     Me levantei e fui procurar um colchonete em cima do guarda-roupa, no quarto do outro filho, que também dormia. Estendi o colchonete na saleta de televisão que ficava entre os dois quartos, forrei com uma colcha e fui buscar a criança para acomodá-la. Ao entrar no meu quarto, porém, a surpresa: não havia nenhuma criança.
     Chamei minha filha e perguntei se ela havia tirado o menino. Ela me olhou com uma cara estranha e perguntou:
     _Que menino? Acho que você estava sonhando!
     Confuso voltei a dormir e procurei evitar o assunto nos dias que seguiram, convencido que tinha tido um ataque de sonambulismo.
     Outra noite, nova sessão de buraco e acordei novamente agitado. Dessa vez dois moreninhos estavam dormindo no meu colchão. Pareciam gêmeos e da mesma idade do anterior. Levantei, olhei bem para eles para me certificar que não estava sonhando e fui buscar o colchonete para acomodá-los. Quando voltei, a mesma coisa: nada.
Intrigado, comentei com o pessoal em casa, pela manhã. A empregada, cujo apelido era Nega e era freqüentadora do candomblé, me perguntou logo:
     _O senhor não está devendo nada a Cosme e Damião?
Disse que não, que nunca fiz promessas a santos, logo eu de formação protestante, mas depois me lembrei da promessa da copa do mundo e disse:
     _Só se for a promessa do caruru que eu fiz na copa, mas não era pra Cosme e Damião!
     _Todo caruru tem a ver com Cosme! Arrematou Nega. Se o senhor não pagar eles vão ficar lhe cobrando. Essa visão dos meninos é uma forma de lhe lembrar e essas entidades são muito fortes!
     Nos dias que passaram pensei no assunto e resolvi que o melhor era pagar o prometido, fosse para Cosme, fosse para Deus ou para mim mesmo. Tratei de encomendar os tais 1500 quiabos.
     A preparação foi um tormento. Os 1500 quiabos eram dois sacos inteiros e levamos uns três dias tirando os fiapos e cortando as pontas. Depois comprei três galinhas e pedi a uma vizinha para me ajudar no preparo, inclusive do vatapá que acompanha.
     Na noite, servi pessoalmente vatapá para a rua inteira.
     Ao lado do balcão, uma bacia cheia de balas alimentou as ilusões de todas as crianças da rua, com quem eu já tinha uma relação especial, principalmente no Natal. Vieram amigos e inimigos, passantes e velhos moradores, gente de todas as idades e eu senti que aquilo me aproximou muito de pessoas que eu mal conhecia ou de quem não gostava.
     Fizemos também a tal mesa de sete crianças, organizada por Nega, que cuidou também dos seus rituais. Meu filho ficou na tal mesa. Foi aí que senti a força dessas entidades. Nega tinha razão. Não importa se eram os irmãos santos ou se eram orixás, mas havia no universo entidades invisíveis que cuidavam das crianças, assim como devia haver outras que cuidavam de muitas outras coisas.
     Minha ligação com crianças ficou clara para mim nesse dia. Sempre gostei muito delas, principalmente das pequenas. Acho que sempre me mantive um pouco criança na vida, correndo atrás de sonhos, de coisas bonitas, de natureza e de aconchego no amor.
     Por isso, talvez, minha vida tenha sido sempre difícil, por não querer renunciar à criança dentro de mim, que não aceita empregos chatos e patrões repressores, por querer morar em lugares de sonho e viver com simplicidade, sem acreditar nas ilusões consumistas e capitalistas que todos esperam que a gente acredite num mundo de adultos, cheios de objetivos sérios e inúteis.

Abraço a todos

Ricardo Stumpf




Velhas tragédias

     Em duas ocasiões anteriores, aqui no blog, comentei sobre construções irregulares em encostas, principalmente nas grandes cidades, dizendo que todos os anos haviam desmoronamentos e que continuariam morrendo pessoas, especialmente crianças, devido à omissão histórica de governantes que preferem fechar os olhos aos efeitos perversos de uma situação fundiária, que privilegia os especuladores em detrimento dos moradores das cidades brasileiras.
     Dezenas de livros já foram escritos sobre isso, seminários, estudos, e muitos discursos, tudo em vão, pois nem um partido político assumiu a reforma urbana como bandeira, a não ser muito marginalmente, como uma intenção no horizonte.
     Outro discurso falsificado, foi denunciado aqui também várias vezes, de que a água do planeta iria acabar em função do aquecimento global, que produziria grandes secas. Fomos bombardeados com imagens de pesadelo, num mundo ressequido, onde a vegetação e os animais morreriam de sede e a humanidade pereceria em meio a um pesadelo de calor e fogo.
     Para quem leu Arqueologia Brasileira, de Andre Prous (Editora Universidade de Brasília), fica evidente que a primeira consequência do aquecimento é o degelo dos pólos e que isso significa uma era de chuvas torrenciais. A água retida no gelo volta ao grande ciclo das águas e isso acontece em forma de chuvas. Segundo Prous, o fim da última era glacial resultou num período de 100 anos de chuvas intensas sobre o planeta.
     O que estamos observando no Rio de Janeiro por esses dias é o encontro desses dois fenômenos, as chuvas torrenciais, que estão se tornando cada vez mais frequentes, e que caem como um gigantesco balde d'água sobre pontos aleatórios da superfície terrestre, e a ocupação desordenada das encostas pelas construções irregulares, toleradas pelos governantes, por não quererem mexer nos interesses poderosos das incorporadoras que controlam a produção do espaço urbano no Brasil.
     Desde a primeira grande reforma urbana no Rio de janeiro, no início do século XX, quando ações moralizadoras destruíram os cortiços onde moravam os mais pobres, sem lhes oferecer nenhuma outra alternativa, essas populações começaram a subir os morros do Rio, criando aquilo que se tornaria conhecido como favelas, porque a primeira ocupação ocorreu no Morro da Favela, um morro onde era comum a pequena planta que dá favos e que por isso tem o nome de favela.
     A última política nacional de habitação digna deste nome (apesar de todos os seus equívocos) foi abandonada em 1986, com a extinção do BNH e substituída por ações ocasionais dos governos locais e estaduais. Só agora com o PAC, o governo federal retomou a iniciativa nesse setor, mas sem a preocupação de diagnosticar as causas do problema (o que iria ferir grandes interesses) e agindo sempre no sentido de corrigir os efeitos da especulação, ao invés de instituir um sistema de planejamento urbano digno deste nome.
     O pior é ver as caras cínicas dos governantes na televisão culpando a natureza pelas tragédias recorrentes, agora pioradas pelo degelo.
     Espero que os candidatos do Partido Verde, o único que propõe mudanças no modelo de desenvolvimento, se pronunciem sobre as políticas urbanas necessárias para nos libertemos desse caos anual e dessas tragédias onde famílias inteiras tem que morrer soterradas, para que uma minoria continue lucrando com a valorização imobiliária.

Abraço a todos, especialmente às famílias enlutadas da minha cidade maravilhosa, tão machucada.

Ricardo Stumpf

terça-feira, 6 de abril de 2010


 

Histórias de outras vidas (1)

NOITE AMAZÔNICA

O chefe me chamou e disse que eu teria de viajar para o interior.

Era um posto de gasolina em Maués, a umas doze horas de barco de Manaus, quase na divisa com o Pará.

Eu gostava daquele emprego, de projetar postos na Amazônia. A multinacional tratava bem seus funcionários, pagava bem, e esta seria minha primeira oportunidade de conhecer o interior do Estado do Amazonas.

Na tarde do dia seguinte, uma quinta-feira, embarquei.

Era um barco de tamanho médio, naquele universo de barcos do grande oceano amazônico, formado por rios, lagos e furos, que são aqueles canais que interligam tudo.

Peguei uma cabine, pequena, com beliche, no andar de baixo. Em cima, a cabine de comando, na frente, e o bar atrás, onde se podia tomar uma cerveja olhando a esteira do barco e sentir a brisa noturna que amenizava o calor da floresta.

Na sexta de manhã cedo, chegamos à Maués. A cidadezinha apareceu numa curva do Rio Maués, um rio largo, de águas verdes.

Fiquei hospedado em um pequeno hotel, no centro, próximo à pracinha do Fórum, na beira do rio.

Da minha janela eu via um quintal arborizado que terminava nas areias brancas da margem. Do outro lado, ao longe, algumas casas em meio a plantações indicavam a presença de sítios, na várzea do rio, onde costuma acontecer a produção agrícola nas pequenas propriedades da amazônia brasileira.

Ao longo do dia, enquanto visitava o local da obra e verificava o que precisava ser construído, me informei sobre aquele povoado e soube que se chamava Vera Cruz, um aglomerado de pequenos sitiantes.

À tarde arranjei um barco e fui conhecer Vera Cruz. O barqueiro me levou à casa de um casal diferente. Ele, gaúcho, louro, de cabelos compridos. Ela, cearense, traços levemente indígenas, e duas crianças pequenas.

A casa deles, feita com paredes de varas finas de madeira, bem juntinhas, era extremamente artesanal. Tudo era muito bonito, feito com gosto e cuidado. Me receberam muito bem e me convidaram para me hospedar lá. Fiquei o fim de semana todo.

No sábado à noite fui com eles a um festejo no interior do município. Era início da campanha eleitoral de 1992 e haveria um comício em um povoado, seguido de várias festividades e comes e bebes pagos por um candidato. Fomos à tarde numa voadeira comandada pelo gaúcho.

O lugar ficava numa curva de rio, um barranco alto que havia sido desmatado para abrigar meia dúzia de casa e um campinho de futebol, onde se realizou um disputado campeonato com os times dos caboclos que trabalhavam nos sítios e fazendas da região. No pequeno porto, repleto de canoas e voadeiras, realçava fulgurante, o iate branco do deputado candidato à reeleição, que patrocinava a festa.

O gaúcho começou a beber cerveja (de graça) e não queria parar. Fiquei preocupado com a volta, afinal ele iria guiar o barco. À meia-noite consegui tirá-lo da festa e rumamos de volta.

Ele, apesar da cerveja, dirigiu bem a embarcação, que deslizou no meio da noite, em meio a furos e igarapés, e minha preocupação com a capacidade do piloto em dirigir a lancha foi logo substituída pelo êxtase. Percebi o inusitado daquela ocasião que eu vivia, deslizando em meio à floresta, em noite de lua, naquele ambiente pleno de vida e mistério.

Os cheiros, os ruídos vindos do rio e da mata, eram ao mesmo tempo assustadores e fascinantes. O reflexo da lua nas águas e nas folhas me fez ter consciência da pequena dimensão do meu ser naquela imensidão da qual eu fazia parte naquele momento e de como era bom pertencer àquele mundo, a essa natureza que nos envolve e da qual nos afastamos tanto na vida urbana.

Naquele momento entrei em comunhão com a natureza e com a sua dimensão divina, que está em nós e que é a vida, e tive a certeza de que já tinha valido a pena ter vivido.

Abraço a todos
 
Ricardo Stumpf