Histórias de outras vidas (33)
O DESPERTADOR NO FORNO
O ano? Entre 1977 e 1979.
O lugar? Porto Alegre.
Esse tempo fez parte de oito anos do meu primeiro casamento, com seus altos e baixos como em qualquer casamento, embora até hoje eu não ache que tenha vivido uma situação muito comum.
Minha companheira era uma pessoa especialmente diferente, não porque tivesse qualidades ou defeitos excepcionais, mas porque tinha uma visão do mundo única e desconcertante.
Para mim, um jovem de classe média, atormentado por uma família conservadora e arrivista, o casamento foi uma espécie de fuga para minha própria vida, mas o que eu não esperava era encontrar nessa convivência outros tipos de pressão que mudaram completamente minha maneira de ver o mundo, para o bem e para o mal.
Invertendo minha expectativa de ajudá-la a superar uma situação de pobreza, ela me revelou um mundo de inteligência e perspicácia que nada tinha a ver com ter ou não dinheiro. Pelo contrário, me mostrou como minha formação me impedia de ver as coisas, me bitolava e me deixava preso a pressupostos.
Nossos primeiros dois anos foram muito conturbados. Moramos um ano na Bélgica, depois fomos para Porto Alegre, onde ela perdeu um filho, enquanto eu penava em empregos sem futuro. Depois passei no vestibular da Federal para arquitetura, o que era considerado um luxo para a época, pois só os filhos das famílias mais ricas entravam na arquitetura da UFRGS.
Em 1977 recebi um adiantamento de herança de meu pai e comprei um apartamento num conjunto habitacional, onde vivemos até bem. Éramos jovens e bonitos e tínhamos uma vida pela frente.
Mas sua percepção das coisas era muito ligada ao subjetivo, bem diferente da formação objetiva que eu recebera, como jovem de classe média preparado para conquistar meu lugar na sociedade, embora já me alinhasse com as idéias de esquerda que rejeitavam aquele mundo
Ao contrário, ela via o mundo sob outra ótica, separava as pessoas em
legais e
não legais. Tinha muito da visão hippie da década de 70, das comunidades onde vivera e olhava minhas aspirações profissionais com uma certa condescendência, como se eu não estivesse ainda pronto para entender o mundo e gastasse minhas energias com coisas inúteis.
Nossas diferenças nos levaram a episódios violentos, onde eu a atormentava com minha insistência para que encontrasse um caminho profissional e abandonasse aquela descrença em tudo e, por outro lado, ela me pressionava para que eu abandonasse uma militância política que considerava
coisa de burguês, o que para mim era de uma contradição incompreensível.
Com o tempo, conseguimos convencer um ao outro. Realmente observei que a política estudantil era apenas uma espécie de laboratório onde as elites treinavam para exercer seu domínio sobre a sociedade (e vejo hoje que José Serra e José Dirceu são a prova cabal disso), embora isso não tirasse a importância do movimento estudantil em plena ditadura.
Por outro lado, ela encontrou seu caminho profissional na informática, então nascente, onde conseguiu alcançar uma ótima posição, graças a seus próprios esforços.
Foi, portanto, uma época de crescimento para ambos e um período que teria sido feliz, não fosse a perda de três filhos prematuros, paridos sempre aos seis meses e meio. Fosse hoje, com o avanço da medicina, talvez algum tivesse sobrevivido.
Assim, vivíamos entre crises de crescimento e de puro sofrimento. Mas minha companheira tinha também outras características. Era mandona e não admitia ser contrariada, o que gerava grandes conflitos entre nós.
Havia domingos em que não saía da cama. Resolvia ficar deitada o dia inteiro e me torturava pedindo coisas, exigindo mimos e não recebia ninguém. Aliás, não fazia a menor questão de esconder quando não gostava de uma pessoa. Às vezes, com visitas em casa, simplesmente ia se deitar e ficava me gritando que fosse dormir também, para mandar as visitas embora. Um vexame!
Mas o pior era na hora de dormir. Eu não podia me mexer, porque senão ela se irritava e começava a reclamar. Tinha que ficar duro, o que não me deixava relaxar e aí quem não conseguia dormir era eu. Eram noites de tortura. Sexualmente até que nos dávamos bem, embora ela nunca tenha sido muito carinhosa, mas o problema era o sono. Não tolerava nenhum barulho.
Houve uma vizinha no andar de cima que andava de salto alto durante à noite e ela transformou aquilo numa guerra. Me instava a ir lá e tomar satisfações, mas não queria ir
porque senão ia acabar batendo nela e parando na polícia. A vida no simpático apartamento virou um inferno.
Tinha mania de acordar muito cedo. Se entrava no trabalho às sete da manhã, gostava de chegar às seis e meia,
para poder se arrumar. Assim, fazia questão de silêncio absoluto na hora de dormir, sempre alegando que tinha que acordar cedo porque era muito trabalhadora, batalhava sua vida e ajudava sua família, ao contrário de mim, que
era um burguês.
Muito bonito, mas eu não conseguia mais dormir e tinha minha própria sobrecarga de horários entre a faculdade e o trabalho. Misture isso com a dor da perda dos filhos e o desgaste em hospitais e médicos e tudo foi ficando muito estressante.
Mas houve um episódio emblemático, uma espécie de gota d’água, que fez com que toda a situação saísse do controle. Era um grande despertador vermelho, que havíamos comprado na Bélgica e que quando fomos viver juntos era nosso único bem, por isso gostávamos dele, apesar de barulhento.
Numa noite daquelas em que a cama virou um campo de batalha, ela se levantou irritada com o
tic-tac do relógio, que não a deixava dormir. Colocou-o no quarto ao lado e voltou para a cama. Passados alguns minutos levantou-se novamente irritada, dizendo que
ainda estava ouvindo e colocou-o na sala. Mais algum tempo e levantou de novo, cada vez mais irritada, porque ainda não conseguia dormir e colocou o relógio dentro do forno, na cozinha. Passados alguns minutos levantou-se novamente desesperada:
ainda estou ouvindo, dizia.
Enrolou então o relógio numa toalha e colocou-o novamente no forno, numa cozinha que ficava pelo menos a dez metros do nosso quarto.
Ela conseguiu dormir aquela noite. Eu é que não consegui mais dormir ao lado dela e comecei a sonhar em ter minha vida de volta.
Boa segunda-feira a todos.
Ricardo Stumpf Alves de Souza